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3.1 Da literatura comparada

3.1.3 Da titrologia

O que se denomina título de uma obra literária faz parte do processo de nomeação, atividade própria do ser humano, cuja ação consiste em atribuir uma palavra ou mesmo uma expressão, ou ainda uma frase para designar um ser, um fenômeno, enfim, tudo o que possa ser rotulado e determinado como possuidor de existência concreta ou abstrata. Ao confirmar a sua existência, retira-se o objeto, o ser animado ou o fenômeno do anonimato. Tirando esta existência do anonimato, pode-se, então, determinar peculiaridades e conseqüentemente, submeter essa existência a estudos e análises.

O primeiro passo para o aprofundamento do conhecimento sobre o objeto desta pesquisa é a identificação das possíveis partes que o compõem. Cada poema participante do

corpus em estudo possui uma identidade física composta, segundo Michel BUTOR (1969), de

um título e um corpo de texto: “toute oeuvre littéraire peut être considerée comme formée de

deux textes associés: le corps (essai, roman, drame, sonnet) et son titre” 47(p. 11). Veja-se a importância assumida pelo título na citação do escritor francês, considerado como uma parte especial.

São várias as maneiras de apresentação de um título: uma frase completa (“Juno recebe a cabeça de Argos” - óleo sobre tela, de Jacopo Amigoni); um grupo nominal (“A adoração dos magos” - têmpera sobre madeira, de Gentile da Fabriano); uma expressão popular (“Nas horas de Deus, amém!” – canto pastoral de José Vicente). Em todos esses tipos em que se classificam os títulos, observamos a propriedade de responder a uma questão do tipo: Quem? Quando? Onde? Como?

O título de uma obra de arte não acontece por acaso, sem função. Vejamos o conceito de Leo Hoek (apud GENETTE, 1987: 73): “Ensemble de signes linguistiques [...] qui peuvent figurer en tête d’un texte pour le désigner, pour en indiquer le contenu global et pour allécher le public visé”. 48

47

[Toda obra literária pode ser considerada como formada de dois textos associados: o corpo (ensaio, romance, drama, soneto) e seu título].

48 “Conjunto de signos lingüísticos [...] que podem figurar no início de um texto para o designar, para indicar o conteúdo global e para convidar o público visado”.

Estamos de acordo com Vincent JOUVE (1997: 13-16), bem como, com Charles Grivel, citado por Gérard GENETTE (1987: 73-89), quando determinam quatro funções para o título de uma obra de arte: a função de identificação ou de designação – “dans la pratique,

la plus importante fonction du titre,[...]” (GENETTE, 1987: 77)49.

A função descritiva, também chamada função de indicação do conteúdo, faz referências àquilo de que trata a obra ou à sua forma, como é o caso de títulos como: Hino, Conto, Poemas. Um exemplo é “Les Misérables”, de Victor Hugo, onde o título se refere aos personagens que vivem a fábula. Ainda como tipo de função descritiva temos a função mista, composta de um elemento de conteúdo e outro de forma. Citamos como ilustração “Livro das Linhagens”50.

A última função citada dentro da categoria descritiva trata dos títulos ambíguos. Recorrendo ao artifício da polissemia, um título pode designar sua forma ou seu conteúdo, ao mesmo tempo. Tomemos o exemplo citado por Vincent JOUVE (1997: 15): Une page

d’amour, de Zola que pode designar tanto a relação entre Hélène Mouret e seu médico

(portanto, conteúdo), como o texto, o romance que se conta (a sua forma).

Como terceira função, Vincent Jouve, Grivel e Genette citam, na verdade, um efeito que acontece em qualquer dos dois principais tipos já abordados – é a conotação – a maneira como o título faz sua nomeação à obra. A conotação pode ser construída pelo leitor, sem dúvida. Este último, baseado no seu conhecimento a respeito do contexto da obra, estabelece um valor diferente daque le que o título expressa diretamente. Percebe-se, então, a ironia, uma deferência, uma filiação literária.

A última das quatro funções essenciais que consideramos neste trabalho é a sedutora, desempenhando um dos mais importantes papéis dos títulos – o de conferir valor à obra. E aqui o artista pode jogar com vários elementos para seduzir o público: sonoridades, imagens, concisão, extensão. Os critérios de sedução variam com o tempo, lugar e leitores visados. O autor predispõe o seu leitor a uma recepção do texto como se esse fosse uma partitura musical e o seu leitor, um tipo de ouvinte. O poema acolhe o leitor pelos recursos expressivos, entre eles o musical que se constitui motivação, estímulo para a recepção.

Consideremos, ainda, que a pista indicada pelos títulos pode ser direta ou indireta. Direta quando o título já nos introduz no mistério da obra; o tema, o ambiente, ou ainda o clima já foram alcançados no título. Um exemplo que nos esclarece a respeito desse ponto é o poema que leva o título de “Prelúdio do pingo d’água”, do poeta piauiense Raimundo de

49 [Na prática, a mais importante função do título,]

Moura Rego o qual já nos coloca diante do elemento pingo d’água, destaque na obra. Partimos da expectativa de que a chuva deve estar presente no poema ou alguma outra forma em que a água caia em poucas quantidades.

Pinga, pinga o pingo d’água, Monótono semitom;

Preludia a minha mágoa Pausadamente: Tom... Tom... A chuva é fraca lá fora, Aqui dentro é intenso o frio. _ Por dentro minha alma chora, Por fora disfarço: rio.

...

(REGO, 1979: 85 – 86)

A poeticidade se inscreve pelo jogo das palavras rir (demonstrar alegria) / rio (de pingos de água / mágoa).

Outro exemplo de título direto se verifica em: Anchieta escrevendo na areia, pintura de Benedito Calixto, que introduz muito claramente o tema (Anchieta escrevendo) e o ambiente (na praia) da obra.

Muito próprio também é “Marcha fúnebre”, do polonês Frédéric François Chopin (1810-1849) cujo título já é anunciador do clima que se cria ao executá- la51. O caráter solene e fúnebre predomina e conduz para sua execução isolada dos outros dois movimentos.

A singularidade dessa maneira de se conduzir na nomeação da obra poética coloca os poemas em posição favorável no âmbito da receptividade, pois quando nos deparamos com um título como “Cântico do Sangue”, de Da Costa e Silva, a expressão “Cântico” já configura, já dinamiza a obra. Em todos esses casos acima citados, o título é uma mão estendida para o leitor; conduz- nos mistagogicamente à experiência estética.

O título indireto é um “enganador”. Tem o objetivo de desviar o apreciador da obra do principal mistério ali expressado (ou será que desperta para isso?). Um exemplo para esse tipo de título é o poema “Moça linda bem tratada”, de Mário de Andrade:

Moça linda bem tratada, Três séculos de família, Burra como uma porta:

Um amor.

Grã-fino do despudor, Esporte, ignorância e sexo, Burro como uma porta:

Um coió. Mulher gordaça, filó De ouro por todos os poros Burra como uma porta:

Paciência...

Plutocrata sem consciência, Nada porta, terremoto

Que a porta do pobre arromba Uma bomba.

(ANDRADE, apud NICOLA, 1998: 305)

Ao ver o título, é natural pensar que a obra fará referência a uma moça que, além de muito bela é fina no trato, é educada para o bom relacioname nto na sociedade. Mas o que nos é mostrado no poema leva- nos a um caminho contrário. O artista usa de adjetivos que qualificam não apenas a moça em questão, mas toda a sua família como sendo exemplo de que tudo falta para ser considerada e incluída socialmente. Na verdade, esse título é uma ironia.

Além desta relação que o título estabelece com o seu co-texto (o corpo do texto), Leo HOEK (1981: 183-184) abre a possibilidade de relacioná- lo a outros títulos e a outros textos, configurando a sua função dupla de que fala Michael RIFFATERRE (1978: 99-105): o título se relaciona tanto com o seu co-texto como com o título ou com o texto de uma outra obra. Eis que Leo Hoek particulariza a intertextualidade de Julia Kristeva, no caso de um título de poema trazer presente o título de outro texto, chamando de “intertitularidade”.

Na verdade, o título da obra facilita o trabalho quando nos referimos a ela ou quando precisamos identificá- la dentre muitas outras. Além disso, o título de uma obra pode ser uma pista para a interpretação, para a sua apreciação, para a sua degustação.

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