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O ensino da literatura nas escolas de nível médio e até mesmo nas universidades, em cursos de licenciatura e de pós- graduação, volta-se logo de início quase que exclusivamente para a estrutura do texto, ou melhor, para uma teorização da literatura. Pouco se trabalha realmente de literatura, do texto artístico. Isso não é difícil de constatar porque trata-se de fato corrente, desde os tempos em que freqüentávamos o curso de Licenciatura em Letras, pelos anos da década de 70. E como profissional da área de arte, esse fato ficava sempre em suspense para nós.

Numa primeira tentativa de verificar o caminho para uma leitura apoiada na arte, especialmente em imagens sonoras, aplicamos, em três situações bem distintas, uma oficina com a proposta aqui delineada. Neste capítulo, fazemos uma análise das oficinas e seus resultados para, em seguida, partirmos para o estudo do diálogo entre as obras de Walt Whitman, Antônio Francisco da Costa e Silva e Léopold Sédar Senghor. Neste momento, interessa saber se o que está sendo proposto tem realmente ressonância no leitor e se a experiência que ele faz com o texto é significativa, porque vã seria qualquer proposta para a pedagogia da literatura se não estivesse alicerçada sobre uma prática de resultados positivos.

Apesar de já ter experimentado uma prática de trabalho voltada para a imagem sonora, em aulas de história da arte e de língua inglesa, tanto no ensino médio como no superior,

54 “Isotopia é a unidade do plano do conteúdo dentro da variedade do plano de expressão” (D’ONOFRIO, 2000b:

quando usamos textos literários, não dispúnhamos de dados registrados e observados especificamente para uma pesquisa, como é o caso. Portanto, passamos a relatar sobre as experiências feitas com o objetivo deste trabalho especificamente.

A primeira oficina foi um pequeno exercício aplicado inicialmente a quinze pessoas de diversas categorias sociais (professores, sociólogos, padres, estatísticos, alunos de Letras...), de lugares também diversos (Teresina, Fortaleza, Recife, no Brasil, e uma dos Estados Unidos) no segundo semestre de 2002. Os leitores foram escolhidos aleatoriamente entre pessoas de nosso relacionamento cotidiano, sem a preocupação de que fossem ligadas ao campo de conhecimento da literatura ou da música.

Selecionamos três poemas de cada autor estudado (ver Anexo A), para que nossos leitores privilegiados os analisassem todos ou apenas os que preferissem, já que partimos do princípio de que o leitor deve ter uma certa liberdade para decidir o que ler. Seria uma condição para que acontecesse o prazer da leitura.

Em seguida, procuramos cada leitor em particular. Fizemos assim exatamente para evitar que um influenciasse a decisão do outro ou até mesmo a sua percepção. Queríamos observar como seria a reação de cada um per se.

Entregamos o material e determinamos um prazo de quinze dias para recolhermos as respostas. No final do ano de 2002, estávamos com as respostas em mãos (ver Anexo A). Oito pessoas atenderam à nossa solicitação. Isso vem confirmar a posição que ocupa a leitura (quinto lugar) na preferência do público jovem para o lazer, falada na Introdução deste texto.

Apesar do pequeno retorno, ficamos inteiramente satisfeitos. Era nítido que todos eles foram capazes de determinar imagens sonoras nos textos e o que é mais importante, essas imagens sonoras provocaram identificações e, por conseguinte, de prazer por encontrar naquelas páginas líricas, situações de sua terra natal ou de culturas conhecidas.

Destaque para um leitor piauiense, na descrição do efeito da imagem sonoro-musical do canto do Aboio sobre ele:

Certamente o título evoca uma imagem muito forte para o homem nordestino que tem no vaqueiro uma espécie de “herói solitário do sertão”. São muitas as histórias de vaqueiros que soltam seu grito cantador para arrebanhar a boiada. Geralmente a figura do vaqueiro é acompanhada de aventuras perigosas junto a bois valentes ou histórias de amor, onde o vaqueiro cantarola as paixões por sua amada, muito semelhante aos cavaleiros da Idade Média que faziam acrobacias em seus cavalos para conquistar as ladies da corte. De qualquer forma, o aboio de um vaqueiro é uma melodia muito conhecida para o homem nordestino. O som meio melancólico muitas vezes é acompanhado por um instrumento muito simples feito de chifre de boi chamado “berrante”. O som ecoa longe e a melodia traspassa a alma do nordestino que se despede dos últimos raios de sol. É o momento em que o vaqueiro põe-se a colocar o gado nos currais e geralmente isto é acompanhado por uma serenata de

aboio dos vaqueiro para o gado não se dispersar. Este ritual, acompanhado do aboio, mais parece uma grande dança dos vaqueiros em seus cavalos. Com passos fortes, difíc eis e acrobáticos, os vaqueiros representam uma verdadeira peça musical, onde a voz, o berrante, a carreira dos cavalos e bois e o cenário vespertino dão uma impressão catártica ao homem comum do campo que pára e assiste atentamente o desenrolar da cena. Não me atrevo a dizer que esta impressão é inferior a qualquer outra causada a um culto ao assistir uma execução do Concerto de Bradenburg de Bach. (cf. Anexo A).

Podemos perceber tanto a satisfação do leitor diante de uma imagem que lhe é familiar, que faz parte de seu viver como a consciência da importância de tal forma musical no contexto artístico nordestino, não se diminuindo diante do considerado grande fenômeno da música universal – Bach.

A importância capital do leitor, como o construtor do sentido de qualquer texto, pode ser observada quando um americano simplesmente não coloca uma única palavra no espaço destinado à resposta sobre a mesma imagem sonoro-musical do poema “O Aboio”, de Da Costa e Silva.

Com este pequeno exemplo, demonstramos que ficou confirmado que a proposta feita por esta tese trata de uma prática viável e operacionalizável. Isso animou a continuação dos trabalhos.

A segunda oficina aconteceu quando estávamos em Paris, cumprindo o período do estágio de doutorado, no ano de 2003. Fomos convidados pela APEB (Associação dos Pesquisadores e Estudantes Brasileiros) para uma palestra sobre nossa pesquisa em andamento, dentro do Ciclo APEB de conferências. O objetivo dessas conferências era exatamente o de divulgar as pesquisas que estavam sendo realizadas pelos moradores da Cité e provocar o debate sobre os trabalhos.

Aconteceu no dia 10 de outubro de 2003, na Maison du Brésil55 (Cité Universitaire), às 18 horas. O público era formado de aproximadamente trinta pesquisadores, a grande maioria moradora das várias maisons da cidade universitária. Eram, portanto, não apenas brasileiros, mas pesquisadores de nacionalidades distintas como: espanhóis, ingleses, indianos, dinamarqueses, alemães, franceses, argentinos, portugueses, japoneses, chineses e inclusive, um senegalês.

Exatamente por desconhecer o público que atenderia ao convite da palestra56, preparamos dois possíveis encaminhamentos: o primeiro seria uma palestra tradicional onde colocaríamos o tema da pesquisa, o corpus explorado, a metodologia usada, os resultados

55 As conferências eram realizadas na Maison de origem do pesquisador. 56 O qual foi dirigido a todas as maisons.

obtidos até então e abriríamos espaço para o debate; para o segundo, pensamos fazer a experiência da leitura de trechos líricos dos três autores em foco através das imagens sonoro- musicais. Preparamos material para as duas possib ilidades: o roteiro da exposição tradicional e slides que provocariam a leitura nos moldes do segundo encaminhamento pensado.

Ficamos à entrada da sala preparada para o evento, a fim de observar e cumprimentar a todos que comparecessem. O público superou as expectativas em termos de quantidade. A professora Márcia Ferran (presidente da APEB e coordenadora do evento) fez a abertura e a apresentação de nosso breve currículo. Em seguida, consultamos os presentes sobre os dois encaminhamentos pensados e eles optaram pelo segundo.

O uso dos slides confeccionados no programa power point (ver Anexo B) e projetados através de data show facilitou a participação de todos. Após anunciar o título da pesquisa, iniciamos de pronto a abordagem de um pequeno trecho poético de Walt Whitman57. Como a grande maioria dos presentes compreendia a língua inglesa, facilmente apontou as imagens sonoro-musicais do trecho apresentado. Em seguida, fizemos uma pequena apresentação do autor. Adotamos o mesmo procedimento para os outros dois autores: Antônio Francisco da Costa e Silva e Léopold Sédar Senghor.

Concluída essa parte de oficina, passamos para uma exposição sobre o projeto da pesquisa em desenvolvimento: sua posição dentro do quadro de estudos músico- literários, objetivos a serem atingidos, a fundamentação teórica (de poesia, de música e de intersemiose) sobre a qual trabalhamos, os procedimentos metodológicos adotados para a realização da pesquisa, e por fim, alguns resultados já obtidos. Uma observação cabível é que na época desta conferência, nós ainda não tínhamos o conhecimento do método de análise lexical, textual e discursiva do professor André CAMLONG (1996). Por isso, falávamos unicamente em densidade do vocabulário, como se apenas a freqüência de uso de determinados vocábulos ou expressões determinasse sua importância dentro da obra.

A resposta do público foi incrivelmente positiva. Não imaginávamos como pessoas de origens diversas e de linhas de pensamento também bastante diferentes pudessem ser tão sensíveis aos apelos sonoro- musicais dos textos. Infelizmente, não foi feito registro do que aconteceu.

Durante o debate, dúvidas foram levantadas e esclarecidas, o que nos chamou a atenção para pontos ainda não bem focalizados; sugestões interessantes foram feitas e afinal, podemos dizer que o saldo foi bastante proveitoso para nosso trabalho.

A terceira oficina aconteceu quando do minicurso sobre Literatura e Música, com duração de 12 horas, para o qual fomos convidada a ministrar durante a reunião regional da Sociedade Brasileira de Pesquisa Científica – SBPC, no Piauí, especificamente em Teresina, na Universidade Federal, no período de 19 a 21 de abril de 2004. A população alvo foi de setenta e oito professores (ou estudantes de Licenciatura em Letras ou em Música) de literatura e de música de nível fundamental, médio ou superior.

Desta feita, optamos por trabalhar apenas com o poeta piauiense Antônio Francisco da Costa e Silva. Realizamos a oficina com o objetivo de também verificar a reação dos cursistas em frente à uma leitura literária a partir das imagens sonoro- musicais. Inicialmente, por não dispormos de poemas de Da Costa e Silva gravados, usamos três poemas do artista cearense Zé VICENTE (2000) (repentista, poeta e compositor), “Urgência”, “Não custa tentar” e “Sonho sertanejo”, gravados no cd que acompanha o livro Tempos urgentes: poemas (ver Anexo C). A solicitação era que os cursistas ouvissem cuidadosamente cada poema e tentassem descrever se havia ali alguma imagem sonoro- musical. Terminada a audição dos poemas, pedimos que em grupos de três pessoas eles discutissem como foi a experiência de cada um. Por fim, foram partilhadas com todo o grupo as suas impressões.

Mais uma vez, ficou bem claro que a experiência foi positiva: a grande maioria, que, diga-se, nunca tinha realizado uma leitura/audição nesse sentido, afirmou que foi bastante agradável. Alguns se sentiram tão à vontade com a atividade que, nos dias seguintes, trouxeram textos feitos a partir de leituras músico- literárias que realizaram após essa primeira oficina.

Nos dias seguintes, o minicurso se desenvolveu sobre a relação que se estabelece entre literatura e música, sobre os enfoques possíveis para pesquisas e também para serem aplicados em sala de aula. Apenas um cursista não concordou em se chamar de música os sons provenientes da natureza (como a turma havia encontrado tanto nos poemas de Zé Vicente como nos de Da Costa e Silva, explorados no decorrer do mini-curso): o canto dos pássaros, o som da ventania, das águas de uma cachoeira e das diversas emissões sonoras dos animais. Para ele, a música é produto unicamente do ser humano e não é possível dizer que existe música da natureza.

Essas experiências foram responsáveis por alimentar um desejo de ver a pedagogia da literatura trilhar caminhos realmente mais voltados para a arte que se aprecia num texto literário, caminhos que certamente serão bem mais agradáveis aos estudantes que iniciam a trajetória de pesquisas e de trabalhos acadêmicos.

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