• Nenhum resultado encontrado

2.1 O papel do leitor/ouvinte no processo de recepção de uma obra

2.1.1 O receptor literário

“As letras desvendam o mundo”

(Autor desconhecido)

O sujeito aqui denominado por nós como o receptor literário é aquele que se expõe ao estímulo de uma obra em prosa (de maneira geral, não sujeita a medida ou acentuação) ou em versos (submetida à medida, à cadência), enfim, de um texto escrito com signos lingüísticos. Assim, faz-se indispensável a comunicação entre o texto e o leitor para que a obra de arte literária aconteça, viva. A distinção feita por Roland Barthes entre textos legíveis e textos escrevíveis19 torna-se de suma importância para o enfoque sobre o destinatário literário. Silviano SANTIAGO (1978: 11-28) explica que:

O texto legível é o que pode ser lido, mas não escrito, não reescrito, é o texto clássico por excelência, o que convida o leitor a permanecer no interior do seu fechamento. Os outros textos, os escrevíveis, apresentam ao contrário um modelo produtor (e não representacional)

18

Aliás, haveria interpretação? Não seria o que se diz interpretação uma outra obra?

19

“Roland Barthes na sua recente leitura-escritura de Sarrasine, este conto de Balzac incinerado por outras gerações. Em S/Z, Barthes nos propõe como ponto de partida a divisão dos textos literários em textos legíveis e textos escrevíveis, levando em consideração o fato de que a avaliação que se faz de um texto hoje esteja intimamente ligada a uma ‘prática e esta prática é a da escritura" (SANTIAGO, 1978: 11-28).

que excita o leitor a abandonar sua posição tranqüila de consumidor e a se aventurar como produtor de textos: ‘remettre chaque texte, non dans son individualité, mais dans son jeu’

(reconstituir cada texto, não em sua individualidade, mas em seu jogo) - nos diz Barthes.

Portanto, a leitura em lugar de tranqüilizar o leitor, de garantir seu lugar de cliente pagante na sociedade burguesa, o desperta, transforma-o, radicaliza-o e serve finalmente para acelerar o processo de expressão da própria experiência. Em outros termos, ela o convida à práxis. Citemos de novo Barthes: ‘quels textes accepterais-je d'écrire (de ré-écrire), de désirer, d'avancer comme une force dans ce monde qui est le mien?’ (que textos eu aceitaria

escrever (reescrever), desejar, afirmar como uma força neste mundo que é o meu?)

Mallarmé (Um lance de dados), Marcel Proust (Em busca do tempo perdido), seriam exemplos de artistas produtores de textos não legíveis, porém escrevíveis.

A essa comunicação, vista pelo ângulo do leitor, damos o nome de recepção. Não uma recepção passiva, mas a participação do chamado segundo elemento sujeito do processo de comunicação (o primeiro seria o emissor), em integração com a obra.

Pela hermenêutica literária, existem dois tipos de recepção: o primeiro, sincrônico, que trata do processo no tempo atual em que se realiza o efeito e o significado do texto para o leitor contemporâneo; o segundo tipo tenta reconstruir o processo histórico, anacrônico, da recepção do texto, levando em conta as diferenças entre as interpretações conferidas ao mesmo texto, em tempos cronológicos distintos.

Considerem-se os dois tipos de recepção, cada um a seu tempo, quando se fizer necessário. Quando se focaliza a recepção sincrônica, atual, não se elimina a presença da recepção diacrônica porque ela está presente em cada corte que se faça do todo, no sentido de que (a recepção sincrônica) constitui um momento da evolução da recepção da obra (sincrônica), sem que nenhuma possua existência independente, portanto, a recepção sincrônica seria, antes, modificada pela experiência de vida do sujeito receptor, que acumula um universo a cada momento. “Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado

na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois” (BENJAMIN, 1994: 37). Estamos, portanto,

de acordo com o pensamento de Heráclito quando diz que ninguém entra duas vezes nas águas de um mesmo rio, bem como, com a afirmação de Wofgang Iser: “The art of reading is

a process of becoming concious”. (apud CORNIS-POPE & WOODCLIEF, 2002). A partir da

formulação de Iser, são pertinentes os estágios do processo de leitura, organizados por Cornis- Pope e Woodclief, da Universidade de Virgínia Commonwealth e citados no “paper”: “Stages of Reading Literature as Aesthetic Experiencing” (Idem)..

O primeiro estágio de leitura é classificado como uma experiência emocional, no momento em que o leitor lê “através” (through) do texto. Constitui-se numa leitura seqüencial, linear, subjetiva, acrítica, superficial, seletiva. Depois deste estágio, o leitor pode

fazer outras leituras, desta feita, caracterizadas como direcionadas para “dentro” (into) do texto, em busca de descobertas ou de solução de problemas. São leituras interativas, holísticas, questionadoras, recriativas e culturais. É neste momento que o leitor relaciona o que lê com outros conhecimentos anteriores, com outros textos, com experiências anteriores, etc. Por último, os estudiosos Cornis-Pope e Woodclief propõem um terceiro estágio de leitura com o objetivo de análise e de crítica. Seria a leitura “contra” (against) o texto, no sentido de negociação, caracterizada como intersubjetiva, analítico-crítica e comparativa. É o momento da apreciação e análise dos elementos formais, da busca pelos detalhes; é ainda o tempo propício para avaliar os valores, as atitudes e os interesses do texto, interpretando e construindo o sentido, reconfigurando a obra.

Pode-se traçar relação entre os estágios de Cornis-Pope e Woodclief com os níveis de leitura de Mª Helena Martins, mencionados anteriormente, pois ambos os trabalhos tratam do contato que se estabelece entre leitor e obra, partindo de uma experiência sensível para uma análise mais detalhada, mais aprofundada.

No nosso caso, a obra literária pode ser então conceituada uma manifestação que tem como elemento primeiro a palavra. Mas esta manifestação somente terá sentido para o leitor se vier carregada de motivação para provocar o interesse deste receptor. Quanto mais plural for o texto em termos de códigos envolvidos, maior é a possibilidade de atingir o destinatário. Ao suscitar o interesse, a literatura será por ele percebida, abrindo caminho para seu desfrute e/ou análise. Um exemplo de obra literária não atraente seria aquela expressa em língua desconhecida do leitor. A competência lingüística se constitui requisito primeiro e indispensável para o processo da leitura de um texto. Contudo, não será apenas o conhecimento da língua o responsável por essa leitura, mas um universo de relações interpessoais, bem como, a complementaridade de várias áreas do conhecimento, enfim, do contexto da vida. Nesse sentido, damos a palavra para o que Leyla Perrone-Moisés afirma no Prefácio de O Rumor da Língua (BARTHES, 1988: 12): “Em sua produção como em sua

recepção a obra literária tem estratos mais numerosos e mais imbricados do que os que a metalinguagem estruturalista pode descrever, e o signo verbal tem aí mais funções e mais aberturas de sentido do que aqueles que a semiótica pode nomear”.

Então, é preciso que o leitor seja “convidado” à fantasia para responder às necessidades íntimas do ser humano de “ver imagens”, que não constituem a realidade mesma, mas o ajudam a formular a sua própria vivência de mundo, pelo caminho do prazer para, através da imaginação, “transmutar o irreal em real ou de desrealizar a realidade para

quando releu o romance A Montanha Mágica, de Thomas Mann (cf BARTHES, 1997: 45 – 46). O leitor Barthes percebe “com estupefação” sua experiência com a tuberculose presente no romance, inclusive com detalhes. Ele pode ver seu corpo no corpo de Hans Castorp, o herói de A Montanha Mágica. Ele “vê imagens”, ele “transmuta o irreal no real” ; no dizer de Doctorow (em: BARROS, 2003: 2), “em vão a busca em tentar estabelecer uma margem

divisória entre fato e ficção”. Até mesmo a existência independente de um e do outro pode

ser questionada, como o faz também Doctorow, pois o fato que se pensa relatar com toda a carga de realidade não passa de uma narrativa sobre o que realmente aconteceu. Por outro lado, a ficção que se constrói, pensando ser pura imaginação, não parte do nada, é antes, alicerçada sobre o que se vive ou sobre aquilo de que se toma conhecimento. Dentro desse quadro, citamos o próprio Walt Whitman, acompanhado por Mark Twain e por Ernest Hemingway, como poetas e novelistas da literatura americana que iniciaram suas carreiras literárias em salas de redação de jornais, numa comprovação da proximidade do jornalismo à literatura, entre o fato e a ficção.

Demasiado é o número de referências feitas à recepção de obras literárias, nas sociedades e grupos humanos; livros didáticos, revistas especializadas e periódicos são alguns dos meios através dos quais se toma conhecimento desse indicativo. Um exemplo: Guedes de MIRANDA20 (em FALCÃO, 2000), na saudação aos estudantes de Coimbra21, proferida no auditório da Faculdade de Direito de Alagoas, quando destaca algumas das obras literárias trazidas pelos portugueses, bem como, a recepção a elas conferida pelos brasileiros: Gil Vicente é visto como o genial, o arguto e sarcástico, nas suas 45 peças de teatro; aquele que

“não respeitou nem ricos, nem pobres e atacou o próprio Deus nesta quadra: ‘Mas Ele de traiçoeiro / Sem ganhar nisso Ceitil, / Vai dar chuvas em Janeiro / E geadas em Abril”.

Outro exemplo é Walter BENJAMIN (1994: 40), quando desenvolve a seguinte idéia sobre a obra proustiana:

No que diz respeito ao século XIX, não foram nem Zola nem Anatole France, mas o jovem Proust, o esnobe sem importância, o trêfego freqüentador de salões, quem ouviu, de passagem, do século envelhecido, como um outro Swan, quase agonizante, as mais extraordinárias confidências. Somente Proust fez do século XIX um século para memorialistas.

20 Sócio efetivo da Academia Alagoana de Letras.

Benjamin despeja uma quantidade significante de apreciações pessoais que também podem ser fruto de observações sobre a reação da sociedade para com o artista (Proust), comparando-o a outras expressões da época (Zola e Anatole France), mas, coloca-o de maneira clara na condição de leitor / ouvinte, marca distintiva do trabalho que realizou.

A recepção literária da obra de Proust é, na ótica benjaminiana, um processo encadeado: “O verdadeiro leitor de Proust é constantemente sacudido por pequenos sobressaltos. Nessas me táforas, ele encontra a manifestação do mesmo mimetismo que o havia impressionado antes,(...)” (p. 43). A visão que o artista nutre como leitor privilegiado do mundo transpira através da sua arte e pode ser percebida pelo seu receptor. Ou, pode-se dizer que a visão de mundo percebida através da obra de arte está em harmonia com reações expressas anteriormente pelo artista, diante de outras situações.

No século XX, Jeanne Marie Gagnebin escreveu no prefácio do livro Magia e

Técnica, Arte e Política, de Walter BENJAMIN (1994), a diferença por ela observada entre a

vivência base do artista através dos tempos: “A experiência vivida por Proust (“Erlebnis”),

particular e privada, já não tem nada a ver com a grande experiência coletiva (“Erfahrung”) que fundava a narrativa antiga” (p. 15).

Trazendo à tona um dos poetas de nossa proposta de leitura, Léopold Sédar Senghor, evocamos a visão que dele nutre Michel COLLOT (1997), no livro La matière-émotion, como um poeta que confere valor de excelência à emoção, bem como, ao lirismo (p. 229-242 passim). Collot percebe inclusive uma diferença fundamental entre o lirismo tradicional (onde emoção é um estado de alma) e o de Senghor – em quem emoção é um estado do corpo, uma “comoção”, no que este termo possui de mais físico (p. 232). O próprio sentido atinge o receptor através da sensibilidade, aquela que, no dizer de NANCY (1995), Aristóteles classifica como produto “dois-em-um”, unindo aquele que sente (le sentant) e aquilo que sente (le senti). O sensível considerado como erótico, não um semântico, “une érotique ne

représente pas d’abord un pathos du désir, mais plutôt une syntaxe du sentir” (p. 47)22. Finalmente, uma obra que se dirige ao receptor como inacabada, como um desenvolvimento, nunca chegada, mas como enviada.

Documentos relacionados