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2.1 O papel do leitor/ouvinte no processo de recepção de uma obra

2.1.2 O receptor musical

“Nem tudo o que lemos está escrito”

(Frank SMITH, 1999)

O receptor de música pode ser considerado todo sujeito que se encontra sob a ação ou em interação com a expressão musical, funcionando como leitor de música, de qualquer classificação concebível: cósmica, humana, animal ou vegetal.

Para que haja o receptor musical, é característica imprescindível que aquilo chamado música seja um movimento expresso em ritmo – pulsação da vida. Há outros elementos participantes da essência da música: o canto, a voz, a melodia, a harmonia, enfim, som e

tempo são os elementos cuja falta torna inconcebível a realização da arte em foco (cf.

STRAVINSKY, 1996: 35).

Desde as comunidades mais primitivas, o ser humano escapa da civilização e faz música; não existe registro de cultura totalmente desprovida de alguma expressão musical. Afirma-se isto não para desligar completamente o sujeito do seu meio, como condição para fazer música, mas no intuito de colocar a música na posição de arte primeira na liberação do interior das pessoas.

Nem todas as pessoas possuem domínio do conhecimento musical, no entanto, todos têm condições de experimentar algum prazer através da audição de música. É fato observável e comparável que a pessoa humana reage a um ruído repentinamente produzido, sem que tenha condições de refletir sobre aquilo que a está estimulando. É uma reação reflexa que pode ser demonstrada fisicamente através de expressões diferentes: sorrir, bater em alguma coisa, correr, chorar, calar, enfim, tudo vai depender do grau de sensibilidade e do contexto em que o receptor está inserido naquele momento.

A resposta de prazer ao ouvir uma música é liberada quando a tensão psicológica produzida pela audição, dentro de toda uma situação-contexto, é aliviada. Portanto, as reações podem ser diversificadas entre pessoas diferentes. Atinge-se, então, a descrição do processo desenvolvido no ouvinte de música: “Por meio da Música, cria-se uma situação psicológica

na qual o indivíduo é confrontado com um influxo não verbal, complexo, de estímulos auditivos que essencialmente, não podem ser compreendidos em outros termos”. (KOHUT e

LEVARIE, 2003).

KOHUT e LEVARIE (2003) distinguem três tipos de ouvinte de música: primeiro, o chamado não- musical, segundo o primitivamente musical (ou o do êxtase musical), e terceiro,

chamado “competente”, assim caracterizado: “a pessoa que desfruta do prazer estético de

reconhecer e acompanhar conscientemente a estrutura formal de criações musicais”. É nítida

a semelhança entre esses tipos de ouvinte musical e os três estágios de leitura organizados por Cornis-Pope e Woodclief (emocional = “through”; interativa = “into”; e analítico-crítica = “against”), no sentido da gradação, partindo do mais superficial ao mais consciente, compreendendo-se que o segundo e o terceiro tipo, de cada uma das duas classificações, podem ocorrer simultaneamente.

Por outro lado, pela própria classificação do primeiro tipo de ouvinte de Kohut e Levarie – o não-musical – fica reforçada a idéia de que o receptor musical pode perceber o estímulo sonoro, independentemente de possuir ou não o domínio sobre o estudo lógico e o conhecimento teórico da música, o que coloca esta arte em vantagem para uma aproximação, para o primeiro ponto de contato com a obra literária portadora de imagens sonoras. Seria um estímulo para a leitura de textos literários o encontro primeiramente com o mundo dos sons neles contidos ou referidos.

Paralelo a essas classificações baseadas num processo de aprofundamento, tanto no domínio do fato literário como no domínio do fenômeno musical, há os aspectos da vida do leitor / ouvinte de música que interferem também na recepção de uma obra musical, tais como: o misticismo que pode conduzi- lo a um processo de recolhimento, de intimismo; a extravagâ ncia que pode levá- lo por caminhos de percepção aguçada para as folias; uma certa doação à história que provavelmente o levará a uma perspectiva diacrônica, e assim por diante.

Como o receptor literário, o ouvinte de música deve incluir-se na sua interpretação. Somente assim, a música se tornará “audível” (leia-se compreensível, significativa) para ele. No momento em que o ouvinte é submetido à audição, a obra executada se torna um veículo de emoções, desperta a sensibilidade, requisita a memória e conduz para a imaginação. Então, ouvinte e música tornam-se emocionalmente uma coisa só porque, nesse instante, o ouvinte reconstrói a música ouvida, dentro dos parâmetros que conhece: o que escuta a partir de agora é exatamente a sua própria composição. O conhecimento aprofundado de partitura abre diversas possibilidades para essa recriação. Apesar da música parecer uma arte complexa, ela, paradoxalmente, leva o ouvinte às origens da simplicidade, atingindo diretamente o coração e o âmago da vida.

Por exemplo, sem possuírem profundo conhecimento e domínio sobre o fato sonoro, os contemporâneos de Beethoven e de Wagner censuraram duramente seus trabalhos que, inconscientemente, a sociedade percebeu e reagiu: o primeiro, em sua Primeira Sinfonia,

acrescentou a sétima menor ao acorde inicial da tônica de dó maior; e o segundo, porque não estabeleceu uma tonalidade básica no início de Tristão e Isolda, percorrendo uma série de modulações inesperadas. Paralelamente, STRAVINSKY (1996: 81) narrou a recepção musical de Schiller - o ilustre Friedrich Von Schiller23 - quando o poeta escreveu sobre a

Criação de Haydn: “É uma mixórdia sem caráter. Haydn é um artista lúcido, mas lhe falta inspiração. A coisa é fria.” Os artistas- músicos destacados foram vítimas de suas

composições que exigiam do ouvinte uma tarefa até então desconhecida, que fugia do plano de construção musical comum na época. Daí, a rejeição pela falta de referenciais porque, ao ouvir algo que já reconhece, o ouvinte poupa um pouco da energia exigida para uma primeira audição. E essa energia excedente é justamente uma das fontes de prazer para aquele que ouve.

Um exemplo de recepção musical (KOHUT e LEVARIE, 2003) em sentido contrário aos anteriores é o de Mozart, relatado em carta escrita a seu pai:

O andante também agradou, mas particularmente o último alegro porque tendo observado que, ao que parece aqui, os alegros sempre começam com todos os instrumentos tocando juntos e geralmente em uníssono, eu comecei o meu com dois violinos somente,(...) seguido imediatamente por um forte; como eu esperava, a platéia pediu silêncio de início suave, mas quando ouvira o forte, começaram logo a bater palmas. Fiquei tão feliz que logo que a sinfonia acabou fui para o Palácio Real e tomei um sorvete enorme... (Paris, 3 de julho de

1778).

Mozart descobriu o efeito da música sobre seus ouvintes. É possível provocar reações e/ou comportamentos através dos sons emitidos. A imagem musical não passa despercebida pelo público que a escuta. Assim é que se torna importante estabelecer a relação entre as duas artes.

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