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REFORMA DO ESTADO, POLÍTICAS EDUCACIONAIS E O MAL-ESTAR DOCENTE

2.2. O mal-estar docente

Esteve (1999), em seu livro intitulado Mal-estar docente: a sala de aula e a saúde dos

professores, explica que o termo malaise enseignant introduzido pela bibliografia francesa,

traduzido para o espanhol por malestar docente, na bibliografia anglo-saxã, aparece como

burnout, frequentemente associado ao conceito de estresse e bastante difundido a partir dos

anos 80. O termo burnout aparece num sentido bem próximo do original traduzindo-se literalmente por "sair queimado" ou "consumir-se em chamas", sendo utilizado, pela primeira vez, segundo Esteve (1999), em pesquisas bibliográficas em um artigo de Pamela Bardo (1979), intitulado "The Pain of Teacher Burnout: A Case History". Já o termo "esgotamento" apareceria como consequência do "mal-estar docente", pois "viria designar o conjunto de consequências negativas que afetariam o professor a partir da ação combinada das condições psicológicas e sociais em que se exerce a docência" (ESTEVE, 1999, p. 57). De acordo com Esteve (1999), não obstante, essa evolução negativa do contexto (social e psicológico) não afeta os professores igualmente. Muitos conseguem encontrar saídas. Outros reduzem sua eficácia e renunciam a um ensino de qualidade, mesmo se mantendo na profissão. Alguns são contraditórios em sua ação: sabem que os antigos modelos não mais funcionam e ainda assim o fazem por não saber como substituí-los. E, um último grupo, acaba sendo atingido em consequência da evolução negativa do contexto e o "mal-estar docente" acaba "queimando" esses trabalhadores. Esse mal-estar difuso acaba por se concretizar em constantes pedidos de transferência, absenteísmo, estresse, "em doenças mais ou menos fingidas para abandonar

momentaneamente a docência e, por fim, em doenças reais, em neuroses reativas ou depressões mais ou menos graves" (ESTEVE, 1999, p.58).

A respeito do tema burnout - "consumir-se em chamas", para Heinhold (1996),

refere-se a uma reação de stress crônico em profissionais cujas atividades exigem um alto grau de contato com pessoas; caracteriza-se por três componentes: (1) exaustão emocional e/ou física; (2) perda do sentimento de realização no trabalho, com produtividade diminuída; (3) despersonalização extrema, manifestando-se através de atitudes negativas para com as pessoas no trabalho (HEINHOLD, 1996, p.172).

O burnout é um síndrome multifatorial e parece resultar de uma conjugação entre fatores externos (o ambiente de trabalho) e internos (vulnerabilidade fisiológicas e psicológicas). Esses fatores são percebidos e avaliados pelos professores baseado em suas "atitudes, crenças e valores, de suas experiências passadas e de seu estilo de vida" (HEINHOLD, 2002, p. 71). Caso sejam interpretados negativamente e se o professor não dispõe de técnicas de enfrentamento suficientes, poderão levá-lo ao burnout com seus sintomas típicos de exaustão física, emocional e mental (HEINHOLD, 2002). O burnout não acontece como resultado de eventos traumáticos isolados; é um processo cumulativo. A pessoa que vivencia o burnout identifica o trabalho como desencadeante deste processo (BENEVIDES-PEREIRA, 2002).

De acordo com Heinhold (2002), o trabalho do professor é visto como oferecendo condições propícias ao desenvolvimento do burnout. Ele apresenta diversas fases, a saber:

1) Idealismo: a energia e o entusiasmo são ilimitados, o trabalho parece preencher todas as necessidades e todos os desejos; a escola constitui o fator mais importante na vida do professor; 2) Realismo: o professor percebe que as expectativas iniciais foram irrealistas; a atividade de ensino não satisfaz todas as necessidades; as recompensas e o reconhecimento são escassos e a desilusão aumenta; o professor trabalha ainda mais e assim se torna cada vez mais cansado e frustrado, começando a questionar sua competência e suas habilidades para lecionar perdendo a autoconfiança; 3) Estagnação e frustração, ou quase-burnout: o entusiasmo e a energia iniciais se transformam em fadiga crônica e irritabilidade em relação a colegas e alunos. Mudam os hábitos e podem ocorrer comportamentos de fuga, como atrasos e faltas. Diminuem a produtividade e a qualidade do trabalho. O professor torna-se cada vez mais frustrado, culpando os alunos, colegas e direção pelas suas dificuldades; 4) Apatia e burnout total: o professor tem a sensação de desespero, fracasso e perda da autoestima e autoconfiança, torna-se depressivo e sente-se só e vazio. A vida perde o sentido; um pessimismo paralisante sobre o futuro se instala. O professor quer abandonar

seu trabalho, sentindo-se exausto física e emocionalmente; 5) O fenômeno fênix: embora essa fase nem sempre ocorra, é possível para o professor ressuscitar como uma fênix das cinzas de um burnout (HEINHOLD, 2002, p. 66).

Ainda a autora destaca que, alguns professores não chegam à fase do "fenômeno fênix" e acabam deixando a profissão por não conseguir lidar com os fatores estressantes; outros permanecem, mas contam os dias para os finais de semana, férias e até aposentadoria (HEINHOLD, 2002). Veremos, inclusive, em uma das entrevistas, a contagem dos dias feita por um dos professores para a chegada do fim do ano letivo em que irá exonerar seu cargo de professor na rede pública estadual que atua há 22 anos.

Esteve (1999) apresenta indicadores do mal-estar docente ao utilizar as contribuições de Blase (1982) para classificar o estresse do professor. Ele distingue em "fatores primários", referindo-se aos que incidem diretamente na ação docente em sala de aula, gerando tensões relacionadas a sentimentos e emoções negativas; e, "fatores secundários", referentes às condições ambientais, ao contexto em que o professor exerce sua docência. A ação dos "fatores secundários" ocorre de maneira indireta e afetam a eficácia docente ao promover uma diminuição da motivação do professor no seu trabalho. Isolados, os "fatores secundários" têm apenas valor intrínseco. Todavia, sua influência atua a médio ou longo prazo, de forma cumulativa, mediante sua interconexão com outros fatores provenientes do contexto social ou escolar, interferindo na imagem que o professor tem de si mesmo e de seu trabalho, gerando uma crise de identidade. Ambos os fatores ("primários e secundários") incidem negativamente, propondo dificuldades na relação professor-aluno, que é o centro do modelo compreensivo de mal-estar docente de Esteve (ESTEVE, 1999).

O autor sugere um repensar nos cursos de formação inicial que prepare o professor para enfrentar o processo de interação com o aluno ou uma formação em exercício que capacite este trabalhador para dominar com êxito os problemas práticos gerados por esta interação. De nosso ponto de vista, são proposições relevantes, mas insuficientes quando se considera o quadro de precarização social e do trabalho e o processo de mercantilização das instituições públicas e educacionais. Com base em Alves (2009, p.182), podemos apontar haver uma "desefetivação" do ser social no trabalho; ou ainda, uma "corrosão" do "ser genérico" do homem enquanto "ser social". Tal "desefetivação" e "corrosão" se articulam à "dissolução de coletivos de trabalho" (ALVES, 2009, p. 183). Este conjunto de elementos se relaciona diretamente às noções de degradação e desgaste.

Retomando Esteve (1999), este autor também apresenta um estudo sobre as licenças médicas oficiais dos professores de ensino "não universitários", seguindo o modelo elaborado na primeira edição de seu livro (1987). Ele buscou estudar as principais tendências que, ao longo de sete anos (1982 a 1989), puderam caracterizar a evolução da saúde dos professores. O estudo foi realizado em Málaga, interior da Espanha, com professores de EGB (Educação Geral Básica) e EE.MM (Ensino Médio). Como resultados, houve um aumento significativo do número de professores em licença, de 425 registros no período letivo 1982-83 para 1.346 no período letivo de 1988-89. Em sete anos, multiplicou-se por três o número de professores em licença. O autor destaca que, mesmo que o número de professores tenha aumentado nesse período, o aumento de licenças é muito superior, "mais que o dobro, ao aumento que corresponderia à ampliação da amostra dos professores" (ESTEVE, 1999, p. 93). Os diagnósticos mais frequentes foram as licenças traumatológicas, as otorrinolaringológicas e as psiquiátricas, nesta ordem, para os anos 1988-89, aparecendo quase na mesma ordem para os anos anteriores.

O autor, portanto, defende a necessidade da elaboração de um modelo compreensivo do mal-estar docente que possa explicitar as relações existentes entre os múltiplos fatores que lhe servem de indicadores. O modelo que ele propõe baseia-se no modelo de Blase (1982) e Polaino (1982) que buscam explicar, segundo Esteve, de forma ideal, o "ciclo degenerativo da eficácia docente" e a "gênese da conduta ansiosa dos professores", respectivamente. "Neles se pretendem relacionar as condições psicológicas e sociais em que se exerce a docência com a produção de uma única resposta nos professores: a "ansiedade como estado dos professores", no caso de Polaino, e a "degeneração da eficácia docente", no de Blase" (ESTEVE, 1999, p. 102).

O que Esteve (1999) propõe, como faz Polaino, é que "uma determinada combinação de fatores pode conduzir os professores a um estado de ansiedade, ou melhor, a uma série de repercussões negativas que afetam sua personalidade" (ESTEVE, 1999, p.102), que ele mesmo descreveu como "esgotamento docente" (teacher burnout). Entretanto, não concorda que a "degeneração da eficácia docente", como argumenta Blase, possa ser explicada de maneira linear uma vez que, três maneiras são apresentadas, a saber:

1. A dos professores que deixam de atuar com qualidade porque sua personalidade fica afetada; 2. A dos professores que se inibem e rotinizam seu trabalho profissional como mecanismo de defesa ante as condições que exercem o magistério; 3. A dos professores que não acabam de traçar uma linha clara de atuação, operando com uma conduta flutuante, impregnada de

contradições, que não acaba de responder às transformações exigidas pela mudança do contexto social do magistério (ESTEVE, 1999, p.102).

Além disso, o autor aponta outro fato inegável e qualitativamente importante que se trata de professores felizes e eficientes que, segundo ele, são trabalhadores que se autorrealizam na docência, que souberam elaborar respostas efetivas e integradas perante o aumento de exigências e transformações que perpassam a profissão docente, representando 34% dos professores da EGB (Educação Geral Básica), segundo amostras estudadas.

Como alternativa para se evitar o mal-estar docente, Esteve (1999) destaca a importância de uma formação inicial que busque uma maior adequação às novas exigências e problemas do ensino e também a possibilidade de articular estruturas de ajuda ao professor em exercício utilizando um enfoque descritivo em que os êxitos do magistério correspondem à ação correta do professor em consonância ao conjunto de condições que influem na relação professor-aluno ao contrário do enfoque normativo, mais frequentemente presente nos programas de formação do professor, que se baseiam em um molde do professor "eficaz" ou "bom", causando efeitos negativos, uma vez que estabelece uma relação direta entre a personalidade do professor e o êxito no magistério, sendo o professor o único responsável pela eficácia docente. No enfoque descritivo, caso haja fracasso, o professor irá questionar suas ações e não a si mesmo. Nosso reconhecimento e ressalvas às proposições de Esteve já foram explicitadas.

Outros autores também se dedicaram a tentar explicar esse sentimento de mal-estar entre os professores. Muitos concordam em dizer que, nos últimos anos, têm aumentado as responsabilidades e exigências que se projetam aos educadores, coincidindo com um processo de transformação do contexto social, provocando uma modificação no papel do professor o que implica, para muitos deles, uma fonte importante de mal-estar.

Para Eslabão et al. (2009), o mal-estar docente pode ser considerado a partir da relação entre doença e processo de trabalho docente. O autor destaca que a este processo de mal-estar estão relacionados as condições de trabalho e as posições identitárias criadas por meio de discursos que idealizam uma imagem a ser perseguida pelos docentes. Em sua pesquisa, os autores evidenciam que as doenças que mais acometem os professores da rede municipal da cidade de Pelotas - RS, concentram-se nos capítulos X (doenças do aparelho respiratório), V (transtornos mentais e comportamentais) e XIII (doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo) do CID - 10 (Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde).

Todavia, ressaltam que o conceito de mal-estar docente, utilizados por muitos pesquisadores que abordam o tema do adoecimento, não seja suficiente para dar conta dos afastamentos por motivo de saúde por se relacionar à sintomatologia das doenças e tender a compreendê-las com base em aspectos do indivíduo. Nas palavras dos pesquisadores, "o processo de trabalho que leva ao adoecimento, parece não estar contemplado neste conceito, e não pode ser abstraído das análises feitas, necessitando outro tipo de pesquisa que consiga relacionar os sentidos dados pelos professores as suas atividades docentes e o adoecimento" (ESLABÃO et. al., 2009, s/p).

Os estudos de Oliveira (2006) abordam manifestações do “mal-estar docente” – desinteresse, apatia, desmotivação – e sintomas psicossomáticos (angústia, fobias, crises do pânico) e apresenta resultados de entrevistas com 120 professores da cidade do Rio de Janeiro. Como resultados, o magistério não se apresenta ameno e acolhedor. Os professores são pressionados por tensões e dificuldades vividas no cotidiano de seu ofício. São vítimas da dita "modernidade" e não se encaixam perfeitamente nos novos ideais de beleza, limpeza e ordem que ela exige. Consideram o trabalho mal remunerado, demonstrando cansaço e exaustão. Muitos perderam a autoestima e sentem vergonha em declarar a profissão ou falar de seu trabalho.

As pesquisas de Pires e Beranger (2009) buscam entender o fenômeno do mal-estar docente discutido por Esteve (1999) e suas implicações como desânimo no exercício da profissão e desprestígio social provocando baixa procura pelas novas gerações de curso de formação de professores, tratando especificamente dos professores de Matemática. Esta pesquisa apontou a necessidade de se enfrentar o mal-estar generalizado entre os professores e de se compreender profundamente as influências resultantes de mudanças sociais sobre a função docente. E assim, refletir a respeito de políticas de intervenção coerentes que levem em consideração as condições em que os professores realizam seu trabalho.

Sobre o assunto "mal-estar", Quiroga (2015), em sua recente pesquisa intitulada "O

Mal-estar na Contemporaneidade e suas Expressões na Docência" realizada com professores

da cidade de Itu, interior paulista, questiona Esteve ao falar que sua crítica fica restrita aos fatores desencadeantes do mal-estar (ou por ele desencadeados). Para o autor, seu esforço consistiu em

investigar o mal-estar não como produto dos fatores que caracterizam a perda de legitimidade do sistema escolar (pois isso consistiria apenas outro fator), mas o de enxergar o mal-estar vinculado a um aspecto mais amplo da sociedade contemporânea que se manifesta nas representações dos atores que

compõem a escola e que, por isso mesmo, ancoram seus discursos em símbolos próprios deste campo (QUIROGA, 2015, p.98).

Ele analisa que mesmo que o mal-estar seja dificilmente enquadrado em um conceito, existe uma ideia comum a este sentimento, uma maneira quase geral de nomeá-lo ou expressá-lo como desconforto, angústia, sofrimento etc. "O mal-estar como anticonceito não pode advir de uma causa definida, mas de contextos cuja interpretação passe a indicá-lo" (QUIROGA, 2015, p.183). O mal-estar indica, desta maneira, um estado, uma condição situada no tempo, em que o indivíduo se encontra entre o passado e o futuro, entre o ideal e o real (representações idealizadas da docência e a realidade efetiva do trabalho), entre o gênero e o indivíduo (a questão da heterogeneidade das salas após a massificação do ensino onde há um todo numeroso de alunos para o qual se exige uma atenção cada vez mais individualizada), entre o pessimismo e o otimismo. Isto é, sempre numa relação de antinomia e conflito.

O autor também destaca que o mal-estar docente implica e solicita a análise do contexto, pois só assim pode-se verificar a produção de sentidos sociais que ele gera, ou seja, "de que forma o mal-estar passa a ser representado socialmente, seja por situações, comparações, expressões de angústia etc." (QUIROGA, 2015, p.182). Segundo o autor, o mal-estar, dado a sua filiação ao contexto social, pode ser representado inúmeras vezes, ou seja, o próprio contexto de uma situação narrada pode indicar a ocorrência de mal-estar. Nesse sentido, ele seria expresso ou representado tantas vezes fosse reconstruída a situação de conflito em que ele estivesse presente.

Desta forma, o tema mal-estar docente está presente em muitas pesquisas e cada uma delas traz suas maneiras de analisar a questão. Para nós, a expressão "mal-estar" parece um tanto ambígua, quase como um conceito difuso e amorfo. Quando usamos o termo sabemos que algo não vai bem, mas não somos capazes de definir o que não funciona e por quê. Desta maneira, a expressão "mal-estar docente" funciona como um elemento de passagem e, assim, passamos a considerar o sofrimento, que na perspectiva da Psicodinâmica do Trabalho, inevitavelmente integra o trabalhar e, consequentemente, o trabalho do professor. E é sobre este assunto que entraremos no capítulo a seguir.

CAPÍTULO 3

O TRABALHO DO PROFESSOR NA CONTEMPORANEIDADE: PROCESSOS DE