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Mapa 18: ZEIS inseridas em áreas de risco em Campina Grande

1.2 O IDEÁRIO DA REFORMA URBANA NO BRASIL: OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A

1.2.1 O Estatuto da Cidade

Nas diretrizes gerais do Estatuto, essencialmente em seu capítulo I, é delineado, como já citado anteriormente, o princípio das “funções sociais da cidade e da propriedade”. Entre as diretrizes do artigo 2º desse mesmo capítulo, são indicados alguns elementos que despertam, de forma singular, os interesses deste trabalho, cabendo destacá-los a seguir:

Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra

urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras

gerações;

II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações

representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e

acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; [...] IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente;

V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e serviços

públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características

locais; [...]

IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização; [...]

XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população

de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso

e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais; [...] (BRASIL, 2001, grifos nossos).

De maneira concisa, o texto apresentado no referido artigo evidencia claramente o caráter progressista e redistributivista que foi proclamado na lei. Frente a isso, Saule Jr. (2001, p. 11) considerou o Estatuto da Cidade como uma lei inovadora voltada para a promoção da inclusão social e territorial das cidades brasileiras. E, apesar de ter percorrido mais de uma década até ser promulgada, não se trataria de uma lei antiga e ultrapassada. Pelo contrário, seria “uma lei madura, que contempla um conjunto de medidas legais e urbanísticas essenciais para a implementação da reforma urbana em nossas cidades”. Um dos avanços apresentados no referido texto diz respeito à abertura de mecanismos de gestão democrática participativa (a participação popular como critério de validade jurídica) – amplamente restrita até então – e, nessa ocasião, foi incluído um capítulo específico para a gestão democrática da cidade.

Nessa perspectiva, o capítulo dedicado à gestão democrática disponibilizou, além de outros mecanismos, a criação de órgãos colegiados de política urbana nos três níveis de governos: a realização de debates, audiência e consultas públicas; conferências sobre assuntos

de interesse urbano; e iniciativas populares para a criação de programas e projetos de desenvolvimento urbano, considerando diferentes formas de participação popular nos processos decisórios e na elaboração legislativa (BRASIL, 2001).

A urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda e a regularização fundiária afirmadas no artigo 2º, inciso XIV, são aspectos cruciais. Esse mecanismo abre espaço para a regulamentação de áreas conduzidas historicamente às margens da legalidade urbana, sendo possíveis através da criação e instrumentalização de Zonas Especiais de Interesse Social, como mostraremos mais à frente.

No Capítulo II da Lei 10.257/2001, encontram-se os instrumentos da política urbana, com destaque para a criação de planos nacionais, regionais e estaduais de ordenamento do território e de desenvolvimento socioeconômico; planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões; o planejamento municipal (que engloba, entre outros, o plano diretor municipal, o zoneamento ambiental e o plano plurianual); os instrumentos tributários e financeiros (dentre eles o Imposto Predial e Territorial Urbano [IPTU]); e os instrumentos jurídicos e políticos (desapropriação, a instituição de Zonas Especiais de Interesse Social, concessão do direito real de uso, o usucapião de imóveis urbanos, a regulação fundiária, entre outros) especificados no artigo 4º da referida lei.

Especificamente em relação ao usucapião especial de imóveis urbanos, o Estatuto apresentou-se bastante promissor, pois, além de indicar a aquisição individual da propriedade como definido no artigo 183, foi possibilitado ainda o direito de o usucapião urbano ser reconhecido coletivamente.

Para a materialização efetiva do Estatuto da Cidade, foi colocada “nas mãos” do Poder Público Municipal a responsabilidade da aplicação dos devidos instrumentos através do provimento do Plano Diretor Municipal (PDM), devendo este ser regulamentado por lei específica que o caracterize enquanto plano urbanístico local. Sobre o plano diretor, Fernandes (2013, p. 216) afirmou que:

Anteriormente à aprovação da lei federal, a enorme maioria dos municípios não tinha um marco jurídico minimamente adequado para a disciplina dos processos de uso, ocupação, parcelamento, desenvolvimento, preservação, conservação, construção, e regularização do solo urbano. A maioria dos municípios não tinha sequer dados e informações básicas, mapas, fotos aéreas e outros materiais relevantes sobre seus próprios territórios e processos socioespaciais. Dos cerca de 1.700 municípios que passaram a ter a obrigação legal de aprovar PDMs de forma a materializar o Estatuto da Cidade, cerca de 1.450 já o fizeram de alguma forma – fato que em si mesmo é sem dúvida admirável.

Segundo Villaça (1999), a utilização de planos diretores é antiga no Brasil, sua difusão data os anos 1940, mas foi ganhando outras nomenclaturas a partir de 1960. Já no final dos anos 1980, esse nome tornou a ser utilizado pela CF, alterando seu conteúdo como parte de muitas transmutações. Portanto, há uma clara mudança na concepção dos planos diretores proclamados pelo Estatuto da Cidade.

Para Moreira (2008), a pretensão do Plano Diretor, após a aprovação da lei federal, não seria espelhar um plano de governo – na medida em que sua duração extrapola um mandato governamental –, mas um plano de cidade, englobando seus problemas de forma abrangente, considerando as irregularidades urbanísticas, os processos espontâneos de crescimento das cidades, edilícias e seus reflexos econômicos e sociais. Dessa forma, a atribuição dada ao plano diretor seria instituir um novo modelo de gestão urbana, abandonando uma concepção puramente tecnicista, identificando as forças sociais que coexistem no espaço urbano, bem como seus respectivos interesses em torno da garantia de direitos que promovam a redução das desigualdades socioespaciais. Para tanto, devem ser considerados os mecanismos de gestão urbana democrática, capazes de garantir uma ampla participação popular nos processos decisórios (de elaboração, fiscalização e avaliação de políticas públicas). O Plano Diretor tornou-se obrigatório para os municípios cuja população seja superior a 20 mil habitantes ou integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e municípios que tenham um potencial interesse turístico.

No entanto, há de se destacar que são muitos os problemas de eficácia jurídica e social que afetam os Planos Diretores. De acordo com Fernandes (2013), além de muitos PDMs estarem sendo marcados por burocracias e formalismos jurídicos excessivos, os planos têm se apresentado ainda como essencialmente tradicionais, com caráter técnico e regulatório, não havendo, de modo geral, uma territorialização adequada de suas propostas e boas intenções. Outro problema constante na geração atual de PDMs é que muitos desses são meras cópias de modelos, resultado de uma verdadeira indústria de consultores que se constituiu no Brasil nos últimos anos.

Contudo, apesar dos embates e dos impasses na aplicação dos PDMs, os avanços promovidos na trajetória da política urbana brasileira são inegáveis. Muitos dos instrumentos propostos na legislação brasileira, embora não sendo aplicados em sua integridade, abriram uma série de caminhos para a transformação do contexto urbano brasileiro.

As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) se apresentam como instrumento jurídico da política urbana previstas pelo Estatuto da Cidade (alínea “f” do inciso V do artigo 4º), que

possibilita a regularização de áreas informais já ocupadas pela população de baixa renda, bem como de espaços vazios, os quais infringem o cumprimento da função social da propriedade.

Romeiro (2010, p. 58), discutindo sobre a existência de um novo paradigma no tratamento dos assentamentos informais ocupados, afirmou que:

A demarcação de uma área como ZEIS, que permite estabelecimento de um regime especial para urbanização e regularização fundiária do assentamento, mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização e regularização fundiária, possibilita a materialização do novo paradigma no tratamento de assentamentos informais, na medida em que conduz tais assentamentos dentro de uma política pública executada pelos municípios de urbanização e regularização fundiária, que viabilize o exercício do direito à cidade e a proteção do direito à moradia por parte da população moradora do assentamento (grifos nossos).

Por meio da mudança de paradigma que a ZEIS materializa, há uma nova possibilidade de tratamento para os assentamentos precários nas cidades, deixando de serem tratados como ilegais e omitidos pelo planejamento urbano municipal, passando a serem reconhecidos como objeto de urbanização e regularização fundiária, pautada na execução da política habitacional do município (ROMEIRO, 2010).

Apesar da importância das ZEIS para o tratamento da questão urbana brasileira, essencialmente da chamada cidade “informal”, o Estatuto da Cidade, infelizmente, não foi claro no que se refere a como deve ocorrer sua instituição, o processo de identificação, demarcação e regulamentação de áreas, sendo incumbida aos municípios a referida tarefa por meio dos PDMs. Essa presença absolutamente pontual do instrumento na ordem legislativa inspirou a afirmação retórica de que “o Estatuto da Cidade não tem ZEIS”, sendo transformado em um instrumento de guias, cartilhas e manuais (SANTO AMORE, 2013), como se verá no próximo capítulo.