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ESTRADAS E HOMENS : UM RETRATO DAPEREGRINAÇÃO À SANTIAGO DE COMPOSTELA ATRAVÉS DO CODEX CALIXTINUS

Aluno: Felipe Vieira Filippetto Orientadora: Profa. Dra. Marcella Lopes Guimarães A monografia resumida aqui tem como fonte primordial o Guia do Peregrino de Santiago de Compostela, ou seja o Livro V da compilação do Codex Calixtinus, também conhecido como Liber Sancti Jacobi. É no Guia que buscamos nosso personagem central, é a partir de suas linhas que escreveremos nossa conclusão. Esta monografia também trabalha com ferramentas de análise literária para construir o caminho para seu objetivo. O centro nervoso do trabalho é o Guia do Peregrino e o processo histórico em que está colocado.

O Codex Calixtinus foi assim chamado em homenagem ao Papa Calixto II (1119-1124) que ordenou a sua realização. Porém a real data do fim da obra como um todo oscila entre 1139 e 1173. 1 Ainda que o universo que cita remeta-se a séculos anteriores, o Codex é uma obra do século XII. Assim como as outras quatro partes da obra, o Guia se propõe a analisar e redigir o universo do movimento peregrinatório ao corpo do apóstolo Tiago. Cada livro se caracteriza por representar um aspecto específico das práticas e dos significados ao redor do culto compostelano. Dentre estes aspectos estão os ritos e hinos das missas e das celebrações feitas dentro da catedral (Livro I); a sacralidade do culto a Tiago de Compostela mostrado por diversos milagres operados pelo santo (Livro II); a ligação direta da terra da Galícia e do caminho de Santiago com o Imperador Carlos Magno (Livro III); a comprovação da existência do corpo no norte da Península Ibérica através do relato do translado do corpo (Livro IV) e finalmente as minúcias e os contornos do(s) caminho(s) que levam o peregrino até Santiago (Livro V).

A princípio, o livro visto como menos significativo e simbólico em relação àquela sociedade e suas práticas religiosas, converte-se neste estudo como a fonte para se tentar entender o processo peregrinatório. O foco não será a igreja, o santo, a rica simbologia dos milagres, a busca incessante da relação com Carlos Magno, ou mesmo o Apóstolo Tiago Maior e sim o peregrino. Ao destacar o Livro V, o principal personagem é o homem de cajado, chapéu, capa e a concha em local de fácil reconhecimento.

Porém, um problema surge junto à escolha do foco, quem é o homem sob toda esta vestimenta, sob a concha que o simboliza? O peregrino é a figura daquele que já em idade avançada abandona sua terra, que deixa para trás família, trabalho e possivelmente a sua vida, para caminhar centenas de quilômetros até a grande catedral compostelana com a visão de que essa é uma prova de fé ou o peregrino caminha com sua comitiva, sempre a cavalo, dormindo nos melhores quartos do Hospital e, uma vez completado o exercício cristão, voltará para sua vida e para suas obrigações? De certa forma a pergunta que esse trabalho respondeu não chegou a nem uma nem outra dessas possibilidades, mas sim a quem é a figura que o Guia do Peregrino de Santiago de Compostela pinta e idealiza. Como objetivo, este trabalho busca problematizar a partir da fonte as características colocadas ao personagem peregrino. Em outras palavras, buscamos ao final esboçar um retrato do viajante da forma como é posto e/ou visto pela fonte.

Após a leitura da fonte duas características se mostraram fundamentais para a escolha do aporte teórico, a primeira é o de se estar trabalhando com uma obra literária. Como um livro do século XIII que faz parte de um Codex pontifício (o Codex Calixtinus), não se trata de uma ficção ou romance, literatura como a entendemos nos tempos modernos2. Porém neste caso uma obra de cunho e objetivos específicos que era funcionar como guia para

os viajantes e para aqueles que queriam se informar sobre o caminho de Santiago. Assim temos características extremamente exploráveis e analisáveis em relação ao trato de uma obra literária, tais qual o autor, a estrutura, a

1 MELCZER, Willian . The Pilgrim‟s Guide to Santiago de Compostela. First English Translation, with Introduction, Commentaries, and Notes.

Italica Press, New York, 1993. Pp. 29.

2 A noção de Literatura dentro da Medievalidade é ainda um campo de análises históricas diversas. Vale aqui citar o entendimento de

Michel ZInk no seu verbete no Dicionário Temático do Ocidente Medieval. “ Sem dúvida, existe na Idade Média uma consciência da atividade literária em seu conjunto e em sua especificidade, consciência também de um corpus literário. Isso é visível no latim e no olhar lançado às letras antigas. Compreende-o a palavra litterae, no sentido de “cultura literária”.

forma de escrita, o público objetivado e outros. A segunda característica é a importância central que o peregrino tem para a obra, inclusive criando uma necessidade de foco por parte do autor de uma análise, não apenas dentro da estrutura e da narrativa, mas no contexto e no cenário em que a obra foi escrita. É necessário pesar a figura do peregrino como possível leitor, público objetivado, a existência ou não do viajante pintado pelo autor, enfim, são inúmeras as possibilidades. No caso deste trabalho, o peregrino assume duas facetas, primeiro o de personagem central e fundamental do Guia. Assim é importante compilar as características, entendê-las no contexto e aos poucos construir sua imagem. A outra está ligada diretamente à primeira e é a postura do narrador frente ao personagem peregrinatório, ao mesmo tempo em que fica clara sua diferenciação, por muitas vezes ele se inclui no grupo, se identifica como um. Com essas duas ferramentas trabalhamos a fonte. Exclui-se assim o raciocínio do peregrino como leitor real da obra ou a reflexão sobre o público objetivado pelo autor no contexto, apenas a figura construída dentro da obra literária para o personagem peregrino e a relação que o processo histórico nos ajuda a construir o papel desta figura na época com a confecção do Guia por seus autores e patrocinadores.

O conceito central utilizado para analisar este peregrino do Guia é o de leitor modelo de Umberto Eco, relacionado diretamente à análise literária e à relação de autor/obra/leitor. Além de Eco, Vincent Jouve (outro autor dos estudos da análise literária) contribuiu diretamente para o entendimento do aporte. Seu estudo apresenta primeiramente uma divisão necessária entre o autor e o narrador, duas instâncias diferentes, segundo ele é um erro confundir o escritor de uma obra com a “entidade” que nos guia durante uma leitura, seja a escrita em primeira ou em terceira pessoa. 3 Da mesma forma, a figura do leitor tem de ser relativizada, a imagem requerida pelo autor como receptor não é a mesma daquele que realmente lê o livro. Toda escrita subentende um leitor e se baseia nessa relação, porém o ato de realmente ler a obra é um movimento diferente e facilmente evitável, como o próprio Jouve diz “só basta fechar o livro”. 4 Em outras palavras, são dois planos diferentes os da narração e da recepção e o da escrita e da leitura.

O conceito de leitor modelo de Eco foi útil à leitura da fonte como ferramenta para o entendimento da relação do autor com a figura do peregrino por ele escrita. Independente da reflexão do leitor real, daqueles que realmente receberam a obra em mãos, ou a forma como ela repercutiu na época, procuraremos analisar o peregrino colocado pelo Guia, construído por seus autores e, assim afirmamos, visto por eles como o leitor modelo da obra, ou seja, o peregrino que pela fonte é pintado é o mesmo que é visto como a ponte perfeita para o entendimento global daquilo que é proposto.

Contudo, em se tratando de um trabalho de análise histórica, fica esvaziada a discussão sobre o peregrino pintado pelo Guia se não a localizamos temporal e contextualmente. Como visto no início deste resumo, o principal pano de fundo na Península Ibérica durante o século XII era o contexto de Reconquista. Dito isto, ratifica-se o entendimento deste momento dentro da região como fundamental para a compreensão da escrita do Guia do Peregrino. O surgimento e o início do processo de solidificação dos reinos peninsulares, a empresa do clero e do rito românico de se estabelecer na região e a necessidade de ambos em ter para si uma ligação forte com a tradição e a história da cristandade do além-Pirineus é parte integrante e importante dessa relação.5

Pois bem, em manuais de História da Espanha a definição de Reconquista normalmente é a de um período dentro da Península Ibérica onde dois povos conviveram e contra os quais guerrearam de forma incessante, até o inevitável fim e a vitória cristã e expulsão dos muçulmanos.6 Grosso modo, esse momento dura alguns séculos e

passa por diferentes fases. Como todo objeto histórico este período pode ser interpretado de muitas maneiras e de acordo com a historiografia mais recente pode-se adicionar a definição de sociedade dada acima a um conjunto infinito de relações sociais e culturais entre esses povos. A inserção de personagens e momentos em que as duas fés não eram inimigas, não buscavam se destruir a todo custo e não se dispunham antagonicamente ilustra várias passagens importantes desta história. No caso dos cristãos, os mozarabes se constituem como um grande exemplo

3 JOUVE, Vincent. A Leitura. Op. Cit. pp. 35 4Idem, Ibidem, pp. 38

5 MELCZER, Willian. Op. Cit., pp. 15.

dessa convivência, já que embora cristãos até a sua língua materna era o árabe, realizaram diversas traduções de evangelhos e salmos para a escrita árabe, além de trabalharem para os emires e outras autoridades andaluzes.

Assim, antes mesmo de explicitar fatos, é importante elucidar que durante a maior parte destes oito séculos de presença muçulmana na Península Ibérica, aqueles que lá viviam estavam sob a influência direta de duas grandes forças, a islâmica e a cristã. Em outras palavras, durante toda a existência do Califato, período que equivale ao início e estabelecimento do processo de Reconquista, tal como da formação dos reinos cristãos espanhóis, o povo ibérico viveu entre duas grandes influências, a européia e a oriental. Ou seja, a vida orbitava entre duas culturas e dois modos de ser não necessariamente paralelos.7

O Guia se encontra entre o lado daqueles que buscavam impor e intensificar a força da órbita cristã, da cultura românica, da tradição da cristandade. A partir da derrocada do califato, no séc. XI, os cristãos se viram para a Europa e nela buscarão ferramentas para mudar o seu cenário político e religioso. Principalmente as elites dos reinos em formação no norte da península irão buscar ajuda para crescer. Da mesma forma, a cristandade ao norte dos Pirineus irá patrocinar essa mudança, irá contribuir para a Reconquista, e principalmente para a romanização da região. É dentro desta conjuntura que o Caminho Peregrinatório é “protocolado”, que o Codex Calixtinus é escrito e que Santiago de Compostela se torna a Sé da península.

Sendo o personagem principal do Guia, e portanto deste trabalho também, o peregrino, é importante analisar brevemente seu papel naquela sociedade. Não será por acaso que as principais características destacadas pela análise da fonte estarão ligadas diretamente a valores sustentados pela força cristã romanizadora do norte dos Pirineus. Esse contexto de busca de uma ligação histórica e cultural dos Ibéricos com a Cristandade Franco - Romana é fundamental para a compreensão dos traços mais evidentes do retrato do Peregrino composto no trabalho. Três fatores base foram ressaltados na imagem de nosso personagem caminhante, as cores fundamentais de seu retrato: a figura do homem estrangeiro dentro da Península, a de baluarte dos valores cristãos (das virtudes que se espera de um bom fiel) e a de um indivíduo que pode observar e contemplar a estrada, as igrejas, a catedral.

Em especial à ideia de estrangeiro, são diversos os momentos na narrativa em que o peregrino recebe avisos e conselhos para atravessar as terras desconhecidas, como se espera de um guia, uma obra de função utilitária. Contudo, podemos perceber a conceituação do estrangeiro também na comparação com as características próprias da região, dos povos que ali vivem, com as informações culturais que podem assustar, que podem causar danos para aqueles que não estão acostumados. Em outras palavras, pelas letras do Guia, o peregrino é um indivíduo que por toda a sua jornada terá de conviver com o estranho, o novo, o diferente, ou seja, será sempre um forasteiro, um estrangeiro. Outro ponto fundamental é a relação próxima do narrador com a figura do peregrino. Ele, por diversas vezes, se insere no grupo, apresentando sua experiência prévia como viajante de Santiago. Em alguns momentos, passagens de sua viagem servem como exemplo e pano de fundo para conselhos e avisos aos peregrinos. Assim, se ele é também um viajante e dá conselhos a iguais como ele e se sabemos que o Guia é uma obra de origem pontifícia e cluniacense (não apenas sabemos historiograficamente, como na época e na escrita do Codex isso era claro, inclusive com o registro da autoria), a característica do estrangeiro se torna evidente.

Como comentado acima, esse traço fundamental da figura do caminhante no Guia tem conexão direta com a busca de relação da Península com a cristandade Trans-Pirenaica. O principal traço da figura esboçada neste trabalho do peregrino do Guia é o fato desses viajantes serem de fora das terras Ibéricas, deles trazerem consigo a cultura, os valores, as virtudes cristãs e romanizodoras. Sendo que todos estes pontos podem se chocar com suas contrapartes Ibéricas, o que será bom e certo. Em um longo discurso contra o povo Navarro, baseado na colocação de muitas características opostas àquelas consideradas a de um bom cristão; ao fim é declarado:“Se eles pudessem, um basco ou um Navarro mataria um homem franco por não mais de uma moeda.” 8

7Idem, pp. 120.

8 MELCZER, William. Op. Cit. pp. 94. Traduzido livremente do inglês pelo autor: [“If they could, the Navareese or the Basque would kill a

Dito em virtudes e valores, a segunda característica do peregrino é a de um baluarte da fé cristã. Por meio de comparações e oposições, fica claro que o estrangeiro e caminhante é diferente dos povos, como os Navarros e os Bascos que vivem ali. Uma vez que estes são colocados como nêmesis das virtudes da cristandade, o peregrino acaba como um espelho da fé real.

No capítulo referente aos povos encontrados no caminho de peregrinação, ainda na parte inicial do Guia, os dois reinos são detalhados. As características atribuídas ao seus moradores engloba um conjunto muito grande de defeitos dignos aos não cristãos. Uma sorte variada que passa pela obviedade da falta de justiça, discernimento, solidariedade, perseverança, amor ao próximo e fraternidade. Todas estas virtudes cristãs básicas, históricas, ensinadas por Cristo e que estes dois povos não têm. Encontramos também características relacionadas à civilização construída na Cristandade. Principalmente os Navarros, não sabem comer, se comunicar, relacionar em sociedade, viver em família, ou se organizar para viver em comunidade. É destacada também sua falta de pudor e valorização da humanidade, uma vez que convivem e se relacionam intensamente com animais. Por fim, encontramos até o destaque da herança destes dois povos de tribos bárbaras e origens que combatiam os romanos, raiz civilizatória de que a cristandade tanto se orgulhava.

Pois bem, o ponto principal deste raciocínio é a colocação do peregrino como contraponto a estes dois povos, como o estrangeiro que deve ser alertado e avisado da barbaridade de Bascos e Navarros. Em nenhum momento são atribuídas virtudes e características diretamente à figura do viajante, mas através de nossa ferramenta teórica, do conceito de “leitor ideal”, entendemos que a reprovação e principalmente o espanto do viajante perante todo esse plantel de características anti-cristãs são respostas esperadas pelo autor. Resumindo, o peregrino visto pelo Guia é aquele que carrega consigo uma noção muito clara das virtudes do bom cristão, e dos costumes do povo civilizado, da cristandade franca.

A última cor do nosso retrato esboçado a partir do Guia para os peregrinos de Santiago é a de Observador, um homem que vai não apenas viajar até o corpo do apóstolo mas saber ver e valorizar a viagem, no caso específico da fonte, a cidade de Compostela.

Nos últimos capítulos da obra, a ênfase recai sobre a descrição da cidade apostólica, seus hospitais, os locais de bela construção (fontes, capelas, imagens) e a grande Catedral. Contudo, esta descrição não se limita a dar uma ideia vaga ao leitor da organização e vista da cidade, mas sim uma concepção nos mínimos detalhes. No caso dos hospitais e da catedral, as características arquitetônicas das construções são colocadas extensivamente. Incluindo o uso da nomenclatura formal de colunas, arcos, abóbodas, contrafortes, capelas abissais e naves cruciformes. No caso da catedral, a descrição alcança a minúcia das medidas de altura, cumprimento e largura da nave principal e das auxiliares, do número de janelas e vitrais, da quantidade de colunas sustentadoras da construção.

Fica claro que era uma preocupação muito grande dos autores da compilação registrar a cidade e seus locais feitos em prol dos peregrinos. Assim como a beleza e complexidade das construções dedicadas ao apóstolo. O contorno que ganha essa preocupação é a de requisitar um leitor que as entenda. Independente da discussão da relevância e do alcance da descrição com termos técnicos, destacamos o fato de se esperar uma valorização, a observação destas características. O peregrino ao chegar a cidade, não devia apenas valorizar o espiritual e as relíquias, mas se admirar com a catedral, sua altura, seus vitrais. Da mesma forma, deviam ser valorizados os hospitais e as fontes de Compostela.

Através das ferramentas teóricas, encontramos a preocupação dos autores da obra em subjetivar a figura do viajante como um personagem protagonista e singular no universo Ibérico. Relacionado com as questões contextuais do século XII entre a Península e a cristandade franca, o esforço para se construir uma identidade correlata e ao mesmo tempo que respeitasse a romanização se traduz neste caminhante. Assim, o aspecto de estrangeiro natural do peregrino se confunde com a identidade do cristão do norte dos Pirineus nas terras confusas da Península. A profissão sagrada do viajante se torna um espelho das boas características e virtudes do cristão, localizado em um tempo que a Igreja busca a moralização através das novas ordens monásticas. Por fim, o observador que deve estar atento às diversas formas de demonstração do sagrado pelo homem, em um momento que o contorno das igrejas está sendo discutido e reinventado.

Enfim, apesar de questionar a visão de uma fonte literária sobre um personagem específico e interno, este trabalho acabou por problematizar um contexto muito maior ao redor da peregrinação e suas relações no século XII. E, mesmo sem estipular justificativas concretas para as características encontradas, desenhou um esboço do peregrino de Santiago de Compostela em suas formas fundamentais. Um desenho do viajante a partir da obra que mais tentou lhe certificar.

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