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Aluno: Daniel Verginelli Galantin Orientador: Prof. Dr. José Roberto Braga Portella Palavras-chave: Sade; iluminismo; racionalidade. Na monografia que apresentamos de forma resumida neste escrito procuramos examinar a relação da literatura do Marquês de Sade com o movimento iluminista. Devido à abrangência da temática, nos delimitamos, no caso de Sade, às obras “A filosofia na alcova” e “120 dias de Sodoma”. Quanto ao iluminismo, nos delimitamos ao tema da racionalidade. Desta forma, indagamos a relação que mantém as obras citadas com as concepções e debates ilustrados acerca da noção de racionalidade. De acordo com o desenvolvimento das pesquisas, percebemos que a literatura sadiana ainda coloca em questão a noção de natureza humana em sua relação com a moral.

Por volta dos anos de 1740 acelera-se o ritmo de mudanças socais significativas pelas quais parte do continente europeu vinha passando desde o século XV. Na França desenvolvem-se discussões intelectuais que abrangem as mais variadas esferas, “os manuscritos anti-religiosos se multiplicam, e alguns são até mesmo impressos”1. Neste momento grandes nomes do iluminismo trabalham em suas obras, como é o caso de Rousseau,

d‟Alembert, Diderot, La Mettrie e d‟Holbach. Quanto a este momento Franco Venturi sustenta que “a circulação de idéias é mais intensa de quanto poder-se-ia suspeitar (...)”2. A Europa passa a ser, neste período, a “Europa das

Luzes”.

No entanto, não podemos deixar de observar a heterogeneidade do grupo dos philosophes. Em seu interior havia dissensos que favoreciam a discussão sobre os mais diversos temas da política, economia e religião. “Basta ter em mente que se passara pouco mais de meio século desde que Pierre Bayle sustentara a hipótese de que era possível uma sociedade de ateus, para se ver quão longe tinha chegado o Setecentos”3. Da mesma forma clamava- se por maior racionalização das relações sociais, e muitos autores entraram em polêmicas contra elementos do feudalismo e a legislação baseada nas tradições e religião. A sociedade parecia necessitar cada vez menos de Deus para sustentar-se. As idéias ilustradas, tomando a forma do despotismo esclarecido e principalmente da fisiocracia, espalharam-se além da França, pela Lombardia e Gênova, e regiões de Baden e Leipzig.

Sérgio Paulo Rouanet aponta para uma divisão entre saber e prazer constituída no XVIII. A busca pelo primeiro caberia aos filósofos e a última aos libertinos. No entanto, a libertinagem erudita continuou ligada à libertinagem dos costumes na medida em que a primeira atacava as bases políticas do antigo regime, enquanto a segunda atacava suas bases morais4. A perspectiva de Eliane Robert Moraes é sensivelmente distinta daquela de

Rouanet ao propor outra divisão menos rígida. Moraes interpreta a libertinagem moral, aquela que envolve práticas (libertinage des moeurs) como uma potencialização da libertinagem de espírito (libertinage d‟esprit), aquela restrita às idéias. Da mesma forma, acreditamos que tal divisão colocada por Rouanet não procede, uma vez que ele próprio aponta para o fato de filósofos escreverem obras obscenas.

Para além das discussões entre os philosophes, Robert Darnton aponta para o fato de, no século XVIII, autores como Rousseau e d‟Holbach serem vendidos sob a mesma denominação, e às vezes nas mesmas caixas de livros que hoje seriam consideradas de cunho erótico ou pornográfico; todas elas eram denominadas livres philosophiques5. O comércio desses livros proibidos, segundo Darnton, favorecia a vertente mais extrema do

iluminismo, aquela onde as idéias de d‟Holbach e La Mettrie eram as bases de um ateísmo descarado que

1 VENTURI, Franco. Utopia e reforma no iluminismo. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2003, p.221. 2 IBIDEM, p.222.

3 IBIDEM, p.236.

4 ROUANET, Sérgio Paulo. O Desejo Libertino entre o Iluminismo e o Contra-Iluminismo. IN: NOVAES, Adauto. O Desejo. São Paulo, Companhia

das Letras, 1998, pp.167-168.

horrorizava mesmo Voltaire6. Tais idéias que fluíam pelos subterrâneos franceses “chegaram a perfurar até as

muralhas de Vincennes e da Bastilha, ecoando na obra de um escritor que concebeu um gênero específico de libertinagem, ao qual concorre não só o espírito, mas também a carne. A experiência, como defendia d‟Holbach terá um peso decisivo para os libertinos de Sade”7.

Durante o XVIII, por onde quer que circulassem as idéias filosóficas, podemos dizer que algumas palavras e conceitos tinham maior destaque. Dentre elas podemos colocar a razão. “La razón se le convierte en punto unitario y central, en expresión de todo lo que anhela y por lo que se empena, de todo lo que quiere y produce”8.

Boa parte dos sistemas de pensamento do XVIII tende a encarar a razão como sendo fixa e invariável, o que tende a universalizar suas conclusões. A razão teria um fundo único para todas as culturas, nações, épocas e homens.

Podemos dizer que o pensamento filosófico do século XVIII europeu se preocupa em estruturar o conhecimento seguro diferentemente do século anterior. No XVII predominava na filosofia a construção de grandes e complexos sistemas com embasamentos metafísicos. Aquele que investiga partia de uma certeza fundamental, a qual só podia embasar-se num ente supremo, para, a partir de então, desenvolver o pensamento através de derivações e deduções sistemáticas. O pensamento do século XVIII, por outro lado, entende a verdade e a filosofia de forma marcantemente diferente. Cassirer aponta para um relativo abandono de sistemas como os de Descartes, Leibniz e Spinoza e detecta uma tendência a se considerar as idéias de Newton abandonando-se a dedução em proveito da análise: “Los fenómenos son lo dado y los principios lo inquirido”9. Ou seja, ao invés de se partir dos

conceitos para entender os fenômenos, parte-se dos últimos para, a partir de então, buscar conceitos que os expliquem. Tal mudança não implica no abandono do espírito sistemático, mas sim do espírito de sistema. O pensamento parte do particular para atingir o universal, sendo este universal muitas vezes admitido como não sendo, ainda assim, um princípio absoluto10.

Mas há uma continuidade entre os pensamentos do XVII e XVIII que nos é cara: em nenhum momento dos grandes pensamentos desses séculos a razão desconfia de si mesma. “El concepto de unidad y el de la ciencia siguen siendo puros conceptos recíprocos”11. Os movimentos de dissonância, de desconfiança para com a razão são

encontrados nas margens. Nesta monografia encontramo-los em Sade.

A idéia de razão confunde-se com a definição de uma natureza humana universal, imutável e transcultural. Muitos filósofos acreditavam ser possível extrair leis naturais do mundo humano através da razão cartesiana, como na geometria. As diferenças entre os povos não são deixadas de lado, mas segundo Voltaire,

Embora o que chamamos virtude em um clima seja precisamente o que chamamos vício em outro, e a maior parte das regras do bem e do mal difiram como as línguas e o vestuário, entretanto, parece-me que há leis naturais que os homens são obrigados a respeitar em todo o universo, malgrado as demais leis que possuam (...)a virtude e o vício, o bem e o mal são, portanto, em todos os países aquilo que é útil ou daninho à sociedade;(...)12.

Sade, por sua vez, dialoga diretamente com esse pensamento em muitas de suas obras, e aqui podemos contrapor a tese de Voltaire aos ensinamentos de Dolmancé, que está iniciando a jovem Eugénie na libertinagem,

Ah, não duvideis, Eugénie. Palavras como vício e virtude só nos dão idéias puramente locais. Não existe nenhuma ação, por mais singular que se possa supor, que seja verdadeiramente criminosa, e nenhuma que possa realmente se chamar virtuosa. Tudo se dá em razão de nossos costumes e do clima em que vivemos. O que é crime aqui, freqüentemente é virtude cem léguas além. E as virtudes de um outro hemisfério poderiam muito bem, ao contrário, ser crimes para nós. Não há horror que não tenha sido divinizado ou virtude que não tenha sido execrada. Dessas diferenças puramente geográficas nasce o pouco caso que devemos fazer da estima ou do desprezo dos homens, sentimentos ridículos e

6 DARNTON apud MORAES, 2006, p.91. 7 IBIDEM, p.91.

8 CASSIRER, Ernst. Filosofia de la ilustración. México; Buenos Aires: Fondo de la cultura econômica, 1950, p.20. 9 IBIDEM, p.22.

10 IBIDEM, pp.37-38.

11 CASSIRER, Ernst. Op. Cit. p.38.

frívolos acima dos quais devemos nos colocar, a ponto mesmo de preferir sem medo o seu desprezo, pelo pouco que as ações que no-lo merecem sirvam de alguma volúpia para nós13.

Através da contraposição entre as palavras de Voltaire e as de Dolmancé, podemos entender a diferença entre o pensamento sadiano e aqueles que normalmente são colocados na tradição iluminista. Em Sade não há esta procura por uma natureza humana da mesma maneira que nos iluministas. Ele não procura uma harmonização da multiplicidade humana, apenas ressalta as diferenças e ainda debocha de qualquer tentativa de se estabelecer uma moral universal. Nos “120 dias de Sodoma” temos a voz do próprio narrador indagando algo semelhante: “Será que nos cabe sondar as leis da natureza, ou decidir se, sendo-lhe o vício tão necessário como a virtude, ela talvez nos inspire de modo igual um pendor para um ou para a outra, em razão de suas necessidades próprias?”14.

Mas os libertinos sadianos usam o discurso ilustrado quando enfrentam o discurso religioso. Em diversos momentos encontramos libertinos invocando a razão através das filosofias materialistas da época. Dolmancé defende que, se Deus existisse, este “deveria agir sempre, e a natureza, cuja ação perpétua é uma de suas leis, só poderia encontrar-se em concorrência e em oposição perpétua a ele”15, pois haveriam dois agentes regendo o movimento perpétuo. A religião também ataca os princípios republicanos, tal como notamos no panfleto “Franceses mais um esforço se quereis ser republicanos”.

Que jamais se duvide que as religiões sejam o berço do despotismo. O primeiro déspota foi um padre; o primeiro rei e o primeiro imperador de Roma, Numa e Augusto, associaram-se ambos ao sacerdócio; Constantino e Clóvis foram mais bispos que soberanos; Heliogábalo foi sacerdote do Sol. Em todos os tempos, em todos os séculos, houve entre o despotismo e a religião uma tal conexão, que está mais do que demonstrado que destruindo um se derrubarão o outro, pela considerável razão de que o primeiro sempre servirá de lei ao segundo16.

Mas, ao invés deste ateísmo reter-se na constatação da inexistência de Deus e nos inconvenientes da religião, os libertinos vão além. A morte de Deus priva o libertino do prazer da blasfêmia, e, diante disso Dolmancé não hesita, e escolhe se contradizer para não perder a oportunidade de desfrutar de um prazer a mais.

(...) um dos meus maiores prazeres é injuriar a Deus quando fico de pau duro. Parece que meu espírito, então mil vezes mais exaltado, execra e despreza muito mais essa quimera nojenta. Queria encontrar um modo de injuriá-la, de ultrajá-la ainda mais; e quando minhas malditas reflexões me levam à convicção da nulidade desse repelente objeto de meu ódio, irrito-me, e gostaria de poder reedificar imediatamente o fantasma, para que minha raiva se dirigisse ao menos sobre alguma coisa17.

O anticristianismo sadiano tem várias máscaras através das quais contrapõe-se ao iluminismo: dentre elas podemos colocar a máscara da razão ilustrada, do sarcasmo, do republicanismo, do paganismo clássico e até mesmo a fúria atéia que assume a existência dos nomes sagrados da tradição judaico-cristã-islâmica apenas para execrá-los, retornando ao evento da morte de Deus para fazer dela um motivo para a continuação da orgia.

Assim como Rouanet, acreditamos que Sade tem uma relação ambígua com as idéias ilustradas, sendo esta uma das peculiaridades de sua obra. Ele as difunde como os outros libertinos, mas ao mesmo tempo as perverte levando-as às suas últimas conseqüências. Disso resulta que os ideais da ilustração acabam por ter seu conteúdo subvertido na direção oposta ou divergente daquela preconizada. Sade agride o antigo regime, e por isso é colocado por Rouanet como aliado às luzes, porém ele também agride seus valores. “Ele subverte a sociedade e subverte a subversão”18. Aqui termina nossa convergência com Rouanet, pois acreditamos que sua interpretação de

Sade não considera toda a riqueza da obra, submetendo o texto ao contexto da França revolucionária criado por uma historiografia marxista. Com o referido jogo de palavras de “subverter a subversão” poderia surgir um

13 SADE, Marquês de. A Filosofia na alcova. BORGES, C. (trad.). São Paulo : Iluminuras, 2003, p.46. 14 _________________. Os 120 dias de Sodoma. Op. Cit. pp.19-20.

15 _________________. A filosofia na alcova. Op. Cit. p.39. 16 IBIDEM, p.135.

17 IBIDEM, p.69.

18 ROUANET, Sérgio Paulo. O Desejo Libertino entre o Iluminismo e o Contra-Iluminismo. IN: NOVAES, Adauto. O Desejo. São Paulo,

problema interpretativo. Se pensarmos através de uma ótica binária, subverter a subversão faz com que simplesmente se volte ao mesmo, mas não é esse o sentido da literatura sadiana de acordo com nossa leitura. Para entendermos seu pensamento precisamos ir além da ótica binária; não basta também permanecermos na dialética, que coloca um terceiro termo – a síntese – que seja a aufhebung19 dos dois outros termos – tese e antítese.

Parece-nos ser mais profícuo continuar a desbravar o caminho trilhado por Georges Bataille, Eliane Robert Moraes, e outros intelectuais que procuraram entender Sade sem lançar mão de um pensamento que procure resolver suas contradições.

Como tentei demonstrar através de excertos das obras “A filosofia na alcova” e “120 dias de Sodoma”, a transgressão e o desejo desempenham nesta literatura, um papel mais importante que a necessidade de coerência lógica de não-contradição interna. Os libertinos não exitam em contradizer-se para aumentar a volúpia, isso será feito, e um texto concebido dessa maneira escapa a diversos paradigmas explicativos. Assim, o texto sadiano se recusa a entrar em simples acordo com a ilustração, pois dela se interessa por suas rachaduras. Outra conseqüência de tal construção literária não seguir preceitos básicos de argumentação lógica, é que esta apresenta o intuito de convencer, de apresentar como as pessoas devem se comportar, o que devem fazer – não há normatividade. Por sua vez, diante da pergunta sobre a natureza humana, Sade coloca nela tantos elementos que ficamos diante de um grande vazio, assim as obras tratadas colocam em questão a maneira como a filosofia ilustrada e a moral cristã partilham o mesmo chão.

Em “O homem soberano de Sade”, Georges Bataille comenta alguns pontos da vida de Sade mostrando a possível relação entre a solidão na prisão e a verdade aterradora de um momento de excesso de imaginário. Nas obras sadianas observamos a negação dos parceiros, que passam a ser vítimas. Porém Bataille afirma que em sua vida, Sade levou o outro em consideração, o que poderia gerar suspeitas de charlatanice se primássemos por certo purismo dogmático ingênuo (cobrando que Sade fosse tão vil quanto seus libertinos); mas o pensamento sadiano não é tão simples. Tendo a literatura como única saída enquanto esteve preso na Bastilha, local onde escreveu “Os 120 dias de Sodoma”, Sade conseguiu criar a imagem de um mundo onde o objeto das paixões fosse anulado20. Bataille afirma que é impossível concebermos o homem como estando isolado, independente das relações que os outros mantém com ele e ele com os outros. Porém o pensamento de Sade, como já apontado, é mais complexo,

ele é a negação da realidade que o funda, mas, em nós, existem momentos de excesso: esses momentos colocam em jogo o fundamento sobre o qual nossa vida repousa; para nós é inevitável chegar ao excesso no qual temos força de colocar em jogo o que nos funda. E, ao contrário, se negássemos tais momentos estaríamos desconhecendo o que somos (...). Em sua integralidade, o pensamento de Sade é a conseqüência desses momentos que a razão ignora21.

Por fim, acreditamos que Sade pode ser melhor entendido quando colocamos em questão, a partir de autores como Hayden White e especialmente Dominick Lacapra, o fechamento da história em fronteiras departamentais e apontamos o valor dos estudos literários e da filosofia para a historiografia22. Nossa pesquisa

não seria possível sem um diálogo entre história, filosofia e literatura. Lacapra aponta para a pobreza do uso meramente documental dos romances como fonte para a história; como se estes fossem janelas translúcidas a partir das quais se pode contemplar o passado. Esta abordagem nada mais faz do que tomar um romance como fonte para fatos do passado, “em vez de considerá-lo um texto que também suplementa ou reconstrói o que ele representa”23. É demasiado reducionista utilizar Sade como uma ferramenta, como uma janela para falar de sua

19 Este termo é praticamente intraduzível para o português. Significa uma negação-conservação-superação ao mesmo tempo. É mais fácil

entendê-lo quando sabemos que ele faz parte da operação da síntese na dialética hegeliana, onde este terceiro termo traz elementos da tese e da antítese, porém num outro estágio, onde haveria a superação destes dois elementos. O entendimento desta operação me foi facilitado através da leitura da obra: LÖWY, Michel. Romantismo e Messianismo. São Paulo : EDUSP & Editora Perspectiva, 1990, pp.24;41- 47.

20 BATAILLE, Georges. O erotismo. São Paulo, Arx: 2004, pp. 261-262. 21 IBIDEM. p.263.

22 KRAMER, Lloyd S. Literatura, crítica e imaginação histórica. IN: HUNNT, L.A. (org.). A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes,

2001, pp.131-132.

época. Da mesma forma, as divergências entre o que vemos nos romances sadianos e muitos aspectos de seu tempo – o que é parte da singularidade e especificidade da sua obra – não podem ser deixadas de lado. A possibilidade de Sade suplementar ou reconstruir seu contexto é de grande consideração, e esta pode ser evidenciada quando pensamos sua relação com a ilustração. Ao invés de subsumir o texto ao contexto e ignorar o fato de o contexto ser um texto, ressaltamos que “toda época, todo texto importante e toda personalidade histórica encerra tendências que desafiam e contradizem os rótulos dos quais depende a historiografia”24. Sade parece ter essa dimensão intempestiva significativamente destacada com sua escrita hábil em esquivar-se de qualquer forma de fixação.

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