• Nenhum resultado encontrado

OS SENTIMENTOS DE UM REI NAS CANTIGAS MEDIEVAIS

Aluna: Nayara Elisa de Moraes Aguiar Orientadora: Profa. Dra. Marcella Lopes Guimarães Palavras-chave: Afonso X, cantigas medievais, cavalaria A monografia resumida aqui tem como base documental cantigas de escárnio e maldizer de autoria do rei de Castela e Leão, Afonso X. Para realizar uma apresentação do tema do trabalho é necessário realizar uma breve apresentação do contexto do reinado de Afonso X. O seu reinado começa com a morte de seu pai, o rei Fernando III, no ano de 1252 e termina com o seu falecimento no ano de 1284. Como vários de seus ascendentes e descendentes, Afonso X tomou parte nas disputas entre cristãos e muçulmanos pelo domínio de diversas regiões da Península Ibérica, movimento denominado Reconquista Cristã pela historiografia, no reinado de Afonso X é possível destacar as Campanhas de Múrcia e Granada e a Guerra de Andaluzia, repressão ao levante de muçulmanos em regiões dominadas pelo reino de Castela e Leão, no ano de 12621; destaca-se também o constante trabalho de defesa das fronteiras de Castela e Leão dos reinos muçulmanos.

Para auxiliar o rei nestes empreendimentos militares, Afonso X contava com a cavalaria de Castela e Leão. A função militar atribuída a esta parte da nobreza era de extrema relevância para a segurança do reino devido à constância das batalhas. Neste sentido, para assegurar que a cavalaria estaria preparada, em troca do serviço militar, o rei deveria fornecer um determinado valor, que serviria para a preparação do grupo para a guerra, este valor era chamado de soldada; esta troca entre o rei e os seus vassalos caracteriza as relações feudais em Castela e Leão.

O corpus documental deste trabalho traz à cena nobres cavaleiros que não cumpriram com as suas obrigações militares nas campanhas contra os muçulmanos, o que se remete as difíceis relações entre Afonso X e a nobreza do seu reino. A nobreza castelhana-leonesa gozou, por muito tempo, de privilégios e poder dentro do reino; a sua importância nas batalhas de Reconquista era a sua garantia na manutenção do poder. Mas, no reinado de Afonso X, a nobreza estava insatisfeita. Sob a liderança do nobre D. Nuño González de Lara, amigo de infância de Afonso X, e de D. Lope Díaz de Haro2, membro de uma família muito próxima da família real, vários nobres se reuniram em diversos momentos para discutir suas insatisfações com o rei. Estas insatisfações iam desde o impedimento do rei em relação ao casamento de um nobre até a falta do pagamento da soldada; mas é possível depreender uma característica em especial das reclamações desta parte da nobreza: que Afonso X retirava parte do seu poder.

Afonso X, que foi chamado pela posteridade de o Sábio, foi autor de diversas obras, algumas de cunho literário, algumas de cunho legislativo; a historiografia que estudou as obras legislativas do rei Afonso, como As Partidas e o Fuero Real, destaca a ênfase dada pelo autor ao tema do poder régio e da relação deste poder com os seus súditos que, segundo o rei, era maior que qualquer relação feudal3. Então, é possível considerar as reuniões

da nobreza como uma forma de se defender desse movimento de aumento do poder real e o resultado foi o afastamento desse grupo do rei e do reino. Parte do grupo de cavaleiros não compareceu aos chamados do rei para empreender as campanhas militares, foi-se do reino de Castela e Leão e jurou fidelidade ao rei de Granada.

Este é o caso mais agudo das falhas da cavalaria de Castela e Leão e que Afonso X aponta em suas cantigas de escárnio e maldizer. Fora este grupo que participou desse episódio específico, há uma série de outros exemplos de cavaleiros que não correspondem às expectativas demonstradas pelo rei em relação à cavalaria em várias de suas obras. E são passíveis de análise as opiniões e sentimentos que o rei desejava transmitir nas

1 O‟CALLAGHAN, Joseph. El Rey Sabio. El reinado de Alfonso X de Castilla. Sevilha: Universidad de Sevilha, p. 207. 2Ibid., p. 107.

3 KLEINE, Marina. O Fuero Real e o projeto político de Afonso X. In: PEREIRA, Nilton; ALMEIDA, Cybele; TEIXEIRA, Igor (orgs.). Reflexões sobre

cantigas em relação às falhas que aponta e aspectos da relação entre o ele e a nobreza de Castela e Leão num contexto de Reconquista Cristã.

Para realizar esta análise foi necessária uma bibliografia básica e cabe citar a sua importância aqui. Em primeiro lugar, apontamos a compilação realizada por Manoel Rodrigues Lapa que reúne todas as cantigas de escárnio e maldizer na língua galego- portuguesa, já que foi através desta compilação que as fontes deste trabalho se tornaram acessíveis. Além das cantigas, há comentários de Lapa que pretendem contextualizar e discutir resultados de pesquisas com outros autores da sua área, a Lingüística, e um glossário que auxilia a compreensão das fontes. Além da acessibilidade que essa edição proporciona, as pesquisas detalhadas sobre o contexto foram importantes para a formação de um corpus; até porque o autor também aponta a proximidade temática entre as cantigas escolhidas.

Outro autor que foi importante, especialmente, para a parte contextual do trabalho foi Joseph O‟Callaghan. Historiador que possui várias obras dedicadas ao rei Afonso X, fez um grande apanhado do seu reinado na obra El Rey Sabio; o livro é extremamente detalhado e baseado em muitas fontes, mas não realiza uma análise mais detalhada, se dedicando, principalmente, à descrição. Para complementar a contextualização, foi utilizada uma crônica do reinado de Afonso X, escrita na época de seu bisneto, o rei Afonso XI. A utilização destas duas obras serviu de contraponto uma em relação à outra já que apontam para os mesmos episódios diferentes motivações; a sua utilização foi realizada levando em consideração as características de cada uma, em especial da Crônica que foi produzida para exaltar os reis do passado de Castela e Leão, o que deve ser considerado quando utilizada para uma contextualização.

A obra de Yara Frateschi Vieira, Poesia Medieval, que também reúne várias cantigas pretende realizar uma síntese do que foi produzido em galego-português, além de realizar uma introdução extremamente útil que consiste em um apanhado geral sobre a lírica trovadoresca. Essa edição possui um glossário que também foi utilizado para a análise das fontes. Sobre a natureza das cantigas medievais em geral, foram utilizados vários autores que se dedicam às Letras e que complementaram as informações da Introdução do trabalho de Vieira, como Segismundo Spina, Cabral do Nascimento, Fernando V. Peixoto da Fonseca e Massaud Moisés, autores que se dedicam ao estudo da literatura portuguesa.

Para a análise das relações entre a cavalaria e o rei, foi utilizada uma bibliografia específica sobre o grupo dos bellatores. Um dos maiores especialistas é o historiador Jean Flori. Na obra A Cavalaria: a origem dos nobres guerreiros da Idade Média, o autor se dedica a analisar diversos aspectos deste grupo social, mas com ênfase para a formação do imaginário em torno da cavalaria. Apesar de utilizar, principalmente, fontes de origem francesa, é possível utilizar suas conclusões para o caso das cantigas de Afonso X, com a devida consideração pelas especificidades de cada contexto. Flori também é o autor do verbete Cavalaria, no Dicionário Temático do Ocidente Medieval, também utilizado na análise das relações sociais.

O Dicionário Temático, organizado por Jean-Claude Schmitt e Jacques Le Goff, possui vários verbetes que auxiliaram em todas as etapas do trabalho, inclusive como instrumento metodológico já que aborda questões como a mentalidade medieval e que tiveram grande importância na análise das fontes e da sua produção. Outro texto de grande importância metodológica foi o de Carlo Ginzburg, Sinais: raízes de um paradigma indiciário, no qual o autor demonstra uma forma de análise de fontes históricas que busca enfatizar a importância dos detalhes e das “características negligenciáveis”, a análise das fontes realizada utilizou-se deste método como, por exemplo, na análise da escolha das palavras por parte do rei.

Ainda para a análise das relações sociais foram utilizados os textos de Jacques Le Goff, O ritual simbólico da vassalagem; de Fátima Regina Fernandes, A nobreza, o rei e a fronteira no medievo peninsular e Marina Kleine, O Fuero Real e o projeto político de Afonso X, especialmente, os últimos dois que tratam das relações sociais no contexto da Península Ibérica.

Depois de realizar uma síntese dos principais autores que auxiliaram na composição deste trabalho, cabe demonstrar as principais características das fontes que lhe serviram de base. No período medieval, dentre as diversas formas de expressão literária, uma das principais foram as cantigas, que eram poemas musicados. A origem da lírica trovadoresca se localiza na região da Provença, no Langue d‟Oc; mas logo migrou para a Península Ibérica, que era próxima geograficamente. Na Península, as cantigas foram compostas em galego-português, língua

falada ao norte do Douro4 e de grande importância na Península Ibérica. Sabe-se de composições que datam do

século XII até o século XV.

O acesso que temos às cantigas medievais provém de algumas compilações chamadas de cancioneiros e num deles foi encontrado ainda uma Arte de Trovar5 que nos traz a informação da divisão formada no período de

produção das cantigas em três tipos: cantigas de amor, cantigas de amigo e cantigas de escárnio e maldizer. As cantigas de amor e de amigo têm temática romântica, a diferença entre elas está no eu lírico que, no caso da cantiga de amor é um homem e no caso da cantiga de amigo é uma mulher. As cantigas deste trabalho são de escárnio e maldizer; cantigas cômicas que têm o intento de ofender, quando o fazem através de palavras encobertas são de escárnio e quando o fazem através de palavras diretas são de maldizer, no caso do corpus documental escolhido há os dois tipos. A autoria das cantigas poderia ser de um trovador6, que se tratava de um

membro da nobreza e que não dependia economicamente das suas composições, ou de um segrel, que alugava sua arte. Eram cantadas pelos jograis em feiras, festas religiosas e, principalmente, nas cortes; por fazer parte da tradição oral, sua estruturação possui muitas rimas e repetições para facilitar sua memorização7.

As cantigas escolhidas são sete, todas de autoria de Afonso X, que versam sobre as faltas dos nobres cavaleiros de Castela e Leão. O trabalho de Carlo Ginzburg, já citado, foi importante para orientar a análise das cantigas; buscou-se compreender a utilização de determinados termos por parte do rei de Castela e Leão e deduzir o porquê da produção da cantiga, qual era a intenção do rei ao compor sobre um tema de importância política e social para o reino; assim como porque utilizar de uma composição lúdica que tem como objetivo o entretenimento. Neste sentido, foram analisadas cada uma das cobras das cantigas de Afonso X; cobras são as estrofes das cantigas, na Arte de Trovar há também este esclarecimento a respeito da terminologia e que foi mantida no trabalho, as cobras são formadas por um grupo de palavras, que seriam os versos, e ao final da cantiga há a finda.

Outra forma encontrada para facilitar a análise foi realizar uma divisão das fontes em eixos temáticos elaborados a partir das principais faltas cometidas pelos cavaleiros apontadas pelo rei Afonso X; mas, cabe salientar que estes eixos temáticos não representam, de forma alguma, um enquadramento estático das fontes que podem ser analisadas sob inúmeros outros aspectos e temas. Destacam-se, portanto, aquelas cantigas que versam sobre cavaleiros que são omissos, aqueles que são interesseiros e aqueles que se revoltaram; algumas cantigas podem ser incluídas em mais de um caso, como a cantiga número 268 que é uma cantiga grande e, na qual, o rei realiza uma crítica a cavaleiros que não atenderam ao seu chamado para cumprir com as obrigações militares, cada uma das cobras trata de um cavaleiro e de razões diversas para sua ausência. Aliás, a exemplo da cantiga 26 este grupo possui cantigas grandes e que apresentam a repreensão do rei a várias formas de comportamento.

Para exemplificar como são as cantigas utilizadas no trabalho e como foi efetuada a análise das fontes cabe transcrever aqui uma cantiga e realizar uma pequena análise:

“Don Meendo, Don Meendo, por quant‟ ora eu entendo, quen leva o baio, non leixa a sela. Amigo de Souto Maior,

daquesto soon sabedor:

quen leva o baio, non leixa a sela. Don Meendo de Candarei,

per quant eu de vós apres‟ei,

4 VIEIRA, Yara Frateschi. Poesia Medieval. São Paulo: Global, 1987, p. 10. 5Ibid., p. 12.

6Ibid., p. 11.

7 SARAIVA, António José. LÓPEZ, Oscar. A Poesia dos Cancioneiros Primitivos. In: História da Literatura Portuguesa. Cidade do Porto:

Porto Editora, Lda, p. 45.

quen leva o baio, non leixa a sela.”

Esta cantiga é de maldizer, já que é direcionada diretamente para uma pessoa em especial, o nobre Don Meendo e possui três cobras com duas palavras e um refrão cada uma. Ela está classificada como uma cantiga que possui tanto o exemplo do cavaleiro ausente, como do cavaleiro interesseiro; já que no corpus documental há outra cantiga que também se remete a Don Meendo, na qual o rei informa que sempre que encontra o nobre este lhe pede dinheiro e que, por isso, não quer encontrá-lo. Utilizemos o exemplo do refrão que se refere, segundo Lapa, a um provérbio popular e que significa algo como quem leva o cavalo, não deixa a sela, ou seja, quem recebe algum valor não deve se ausentar quando seus serviços são solicitados; este exemplo demonstra que o rei utiliza vários recursos de linguagem, principalmente da ironia e que alguns são próprios desta forma de literatura. A cantiga permite uma análise mais detalhada e que é realizada no trabalho de monografia.

Afonso X criticava seus cavaleiros porque não atendiam aos seus chamados para cumprir com os serviços militares, ou seja, eram desobedientes e porque alguns chegavam ao local de batalha e fugiam para as suas terras, logo eram covardes. Jean Flori afirma que houve uma idealização da cavalaria que não correspondia à realidade. Podemos perceber que Afonso X também idealizava a cavalaria, de forma muito semelhante àquela indicada por Flori, que exaltava a obediência e a coragem do cavaleiro. Mas é necessário lembrar o que Afonso X considerava sobre o poderio real; logo, é possível analisar as suas críticas sob duas perspectivas diferentes: Afonso X era um homem do medievo e estava inserido na mentalidade da ética idealizada da cavalaria; ao mesmo tempo, era rei e buscava atingir um poderio cada vez maior e, conseqüentemente uma maior obediência dos seus súditos, dado verificável através do estudo do contexto.

Como rei, Afonso tinha a possibilidade de apontar os erros cometidos e quais dos seus súditos não estavam seguindo os preceitos cavaleirescos. Estes elementos fazem com que voltemos à questão da escolha deste tipo de literatura para realizar uma crítica. Afonso X sempre se dedicou à escrita em diversas áreas, mas podemos pensar na escolha das cantigas por ter maior apelo público. Como se tratam de composições de um rei eram musicadas, primeiramente em suas cortes e sabe-se que nas cortes itinerantes de Afonso X, sempre houve jograis que interpretaram as cantigas, ou seja, era elemento essencial do entretenimento e da sociabilidade e o seu público primordial eram os membros da nobreza. Desta forma, se tornava presente, mesmo no momento de entretenimento, o mau exemplo que aqueles cavaleiros representavam; se tornando objeto de crítica e riso na corte.

Diante destas respostas fornecidas pela análise das fontes e que nos permitem esclarecer esta faceta dos pensamentos de um rei é possível apontar alguns aspectos das relações entre Afonso X e a nobreza. Primeiramente, percebemos que havia expectativas relacionadas ao comportamento da cavalaria e as cantigas de Afonso X demonstram que a realidade não correspondia a esta expectativa. Podemos considerar também, que as cantigas e a literatura para um rei que valorizava o conhecimento, como era o caso de Afonso X, eram um instrumento político e que foi utilizado com inteligência objetivando disseminar aquilo que o rei aceitava como correto.

Sobre as relações de poder, podemos considerar que o reinado de Afonso X apresentava tensões que eram comuns nos séculos XIII e XIV. Tensões representadas por um lado pela nobreza, que possuía insatisfações relacionadas à sua situação social e se manifesta prejudicando o serviço militar que era tão importante diante do contexto ibérico, ou seja, com o auxílio da bibliografia podemos atribuir um caráter político para omissão dos cavaleiros. Por outro lado, encontra-se a figura do rei, que concentra cada vez mais poder em suas mãos, mas tem que enfrentar os grupos que ainda querem sua parcela de participação e do qual o rei tem necessidade para apoiar suas guerras.

Estes resultados permitem concluir que o reinado de Afonso no âmbito político e das relações régio- nobiliárquicas foi instável e através da biografia do rei sabemos que a revolta da nobreza o prejudicou já que perdeu poder dentro do próprio reino culminando com a crise sucessória, em que seu filho, o futuro rei Sancho IV, é nomeado pelas Cortes de Castela e Leão como o responsável pelo reino no ano de 1282, mesmo tendo se tornado rei somente após a morte de Afonso X. Mas permitem também, realçar a riqueza cultural do reino de Afonso; muito já se falou sobre a produção científica e literária e a nova bibliografia permite pensar na relação próxima que a

cultura possuía com a política, resultado do apreço de Afonso X pela literatura a ponto de torná-la o modo de sua expressão maior.

POR SANTA MARIA! A FINA FLOR DA CAVALARIA NAS CANTIGAS DE

Outline

Documentos relacionados