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4. TENSÃO NO TRABALHO EM CONGLOMERADOS REGIONAIS

4.9. Estranhamento do trabalho na TV Integração

Na lógica organizacional do Grupo Globo, assumida pelo Grupo Integração, a gestão é técnica e racional. A seleção de trabalhadores, como se viu, se dá por análise de perfil por meio

de entrevistas, testes de domínio profissional ou análise de portfólios, avaliando as competências em detrimento da indicação pessoal. Trata-se de um processo “científico”. Pelo exposto, observa-se que, quando os entrevistados marcam o valor do controle do trabalho e a técnica no ambiente produtivo da TV Integração, fazem ver um ambiente simbólico no qual o poder sobre o saber-fazer do trabalhador é acionado como qualidade para a emissora e seu produto, ao mesmo tempo que é retido pela organização. No modelo Globo, as prescrições buscam garantir o padrão de qualidade e comunicam ao trabalhador sua coisificação, como mercadoria. Nas palavras de Marx (2004, p. 80-81),

a efetivação do trabalho tanto aparece como desefetivação que no trabalhador é desefetivado até morrer de fome. A objetivação tanto aparece como perda do objeto que o trabalhador é despojado dos objetos mais necessários não somente à vida, mas também, dos objetos do trabalho. Sim, o trabalho mesmo se torna um objeto, do qual o trabalhador só pode se apossar com os maiores esforços e com as mais extraordinárias interrupções. A apropriação do objeto aparece como estranhamento (Entfremdung) que, quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital.

Um exemplo dessa reificação é o contrato assinado pelos profissionais do setor de jornalismo da emissora que não podem usar de sua imagem pública para promover nenhuma marca que não seja associada à Globo ou à Integração. Pelo contrato, a imagem do profissional é um “produto” que pertence à empresa e foi expropriada do trabalhador.166 Em função do contrato e em defesa do posto de trabalho, a pessoa perde o livre arbítrio de si, de seu corpo e expressão. A técnica do Grupo Globo, por sua vez, pode ser ensinada e feita por outros. Na territorialização do capital, o fetichismo tecnológico,167 sustentado pelos valores da cultura

166 Cf. Anexo XI.

167 No capitalismo, com a autonomização do trabalho, do dinheiro e dos meios de produção (Marx, 2013), o saber- fazer abstraído pelo capitalista que se apropria do trabalho concreto e visa ao que a classe-que-vive-do-trabalho (ANTUNES, 2018, 2000) deve fazer no processo produtivo, apaga do resultado objetivado o trabalho vivo nele empreendido. Nessa medida, o capitalista expropria o trabalho que produzirá riqueza. Para aumentar produtividade e a extração de mais valor do trabalho, há um desenvolvimento da técnica alimentado pelo progresso das ciências, que contribuem, significativamente, para inovações das formas organizacionais do processo produtivo – que inclui inovações da própria técnica -, com objetivo de geração de valor. Como a técnica é o resultado de procedimentos testados, validados e autorizados a partir de um modo de controle, ela se sustentaria como “ideologia” de uma racionalidade instrumental, torna-se tecnologia, como discute Habermas (1987). Contudo, diferentemente do que o autor propõe, de que ao gerar valor a tecnologia finaliza com a teoria marxista da geração de mais valor, o que se vê na lógica da acumulação flexível é que a inovação tecnológica imputa maior pressão no fluxo tensionado que aumenta a exploração do trabalho. A crença de que a técnica possa produzir valor por si mesma é, a rigor, fetichismo, a que se dá o nome de tecnologia. Como explica Harvey, em diálogo com Marx, as “máquinas são capital morto ou constante e, como tal, não podem produzir nada por conta própria” (HARVEY, 2018, p.112). Harvey problematiza que o fetichismo tecnológico leva a generalizações de que haverá uma solução tecnológica para qualquer problema econômico ou social. Em contraposição a Habermas, Harvey busca na teoria do mais valor relativo, descrito por Marx (2013), as bases para compreender os investimentos tecnológicos e organizacionais que objetivam aumentar a produtividade do trabalho, por conseguinte, a geração de mais-valor.

organizacional, das prescrições e do controle do trabalho, da divisão de responsabilidades, participa um ambiente simbólico ideologicamente incorporado pelo trabalhador. O sujeito trabalhador, por sua vez, está refém da possibilidade de ser substituído. Trata-se de um processo de estranhamento do sujeito em relação à sua atividade, ao produto de seu trabalho e, consequentemente, ao gênero humano.

A ideologia da acumulação flexível também é manifesta pelos trabalhadores quando narraram a redução das horas extras, empreendida pela empresa como medida paliativa para redução de custos, sem, no entanto, gerar demissões:

A TV mandou um monte de gente embora por causa dessa... Dessa crise aí. E a gente está sempre escutando, a gente sempre vê o pessoal com medo dessa crise aí, que está cortando. “Ah, está cortando”. Hora extra também. Mas, por outro lado, a TV optou por cortar horas extras, mas por manter o emprego do colaborador (Cinegrafista, Caderno de campo, 2017).

A fala do entrevistado mostra como a organização comunica estrategicamente suas práticas de gestão. Não é a empresa que realiza as demissões - é a “crise aí”. A organização é humanizada na expressão “a TV optou”. Segundo o trabalhador, a informação circulante no ambiente interno é de que há um problema causado pela “crise aí”. O “aí”, como síntese do que ele não consegue nomear, marca o estranhamento do trabalhador em relação ao fenômeno econômico que o domina. Se havia demanda por horas extras é porque há demanda por mais trabalho. Contudo, aumentar o número de trabalhadores na empresa significa reduzir os lucros, mas essa não é uma equação consciente manifesta pelo trabalhador. Reduzir a hora extra não reduz o volume de trabalho necessário. Ele sabe disso. Pior, cria um imaginário de que as horas extras não eram necessárias, como se fossem um subterfúgio do trabalhador para aumentar seus ganhos. Por sua vez, ao contrapor a fala do trabalhador com o responsável pela produção jornalística, vê-se que as demissões, que participam o clima de medo aos trabalhadores que continuam na emissora, não se deu por causa da crise econômica:

Nós fizemos ajuste sim, mas não enxugou equipe. O ano mais difícil foi 2016, final de 2016 e 2017 todo. Eu acho que agora a gente está recuperando fôlego. O que aconteceu foram investimentos que estavam previstos que não foram feitos. Éééé... Mas não teve nenhuma demissão em função disso. A gente teve demissão, mas por outras coisas que aconteceram (Gerente de Jornalismo,

Caderno de campo, 2018).

Demissões fazem parte da dinâmica do meio de produção comercial. O medo do desemprego, que no ambiente interno se deveu a uma “crise”, mobiliza o “colaborador” a “colaborar” para fazer mais no menor tempo possível, reduzindo a hora extra que não pode impactar nos custos da organização. Nesse sentido, o sujeito que vive do trabalho se desdobra para aumentar sua produtividade, no limite do tempo de trabalho. Há situações em que não há

como evitar e o trabalhador ultrapassa as horas de sua jornada. Nesse caso, segundo os entrevistados, que ainda estão na emissora, a Integração paga pelas horas extras, mas isso só deve acontecer em situações extremas. A ordem é evitar. “Então a gente está fazendo menos,

produzindo menos, pra fazer menos” (Gerente de Jornalismo, Caderno de campo, 2017). A

falta de trabalhadores impacta diretamente na produtividade do meio de comunicação. As questões financeiras ditam as condições de trabalho. Apesar de se mostrar como uma “grande empresa” pelo acúmulo de outorgas, as falas narram uma empresa com dificuldades estruturais. O ajuste econômico de controle das horas extras necessárias ao meio de produção televisivo diz respeito, a rigor, à produção de mais valor relativo (MARX, 2013). Como explica Harvey (2018), capitalistas em mercados sem concorrência vendem suas mercadorias a um preço social médio. Aqueles que detêm tecnologia ou lógicas organizacionais que aumentem a produtividade terão lucros extras, mais valor relativo, porque vendem pelo preço média social, apesar de terem um custo individual menor na produção. Quanto maior a concorrência, maiores são as probabilidades de haver saltos de inovação. Isto porque, à medida que uma empresa passa à frente de outra, as demais buscarão alcançá-la, ou superá-la, indo além do

mix tecnológico e da forma organizacional que refletem a média social. As forças que moldam o processo de trabalho no momento da valorização empurram incessantemente para a elevação da produtividade da força de trabalho. Conforme a produtividade do trabalho aumenta, o valor individual das mercadorias cai” (HARVEY, 2018, p. 112).

Se houver, por exemplo, redução dos salários, isso causará a queda do valor da força de trabalho e consequentemente sobrará uma quantia maior de mais-valor para o capital, como explica Marx na teoria geral da acumulação capitalista (2013). Harvey pondera que o aumento do mais valor relativo pode até retornar para o trabalho, mas isso dependerá “do estado da luta de classes” e das negociações das categorias. Em resumo, o impulso por mais valor relativo sustentará, segundo os autores, a busca incessante por inovações tecnológicas e de formas organizacionais na produção. A reserva industrial de trabalhadores, o medo da crise econômica, faz com que os trabalhadores se sujeitem a precarização do trabalho e não correlacionem a redução do valor do trabalho com a realização de investimento em tecnologias que, por vezes, retornam como impulso de produtividade sobre o próprio trabalhador.

O Grupo Integração empreendeu a redução do pagamento de horas extras, entre 2015 e 2016, na mesma época em que a emissora investiu em obras estruturais e equipamentos necessários para a migração da produção no sinal analógica para o digital. Contudo, não aparece nas falas a relação entre a redução dos salários, os investimentos em tecnologia e as formas

organizacionais empreendidas. Assim como se viu na Candidés, são narradas como partes autônomas, como se não estivessem diretamente relacionadas.