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4. TENSÃO NO TRABALHO EM CONGLOMERADOS REGIONAIS

4.5. TV Educativa x TV Profissional

Quando a TV Candidés parou de trabalhar com estagiários e contratou profissionais jornalistas, a TV perdeu sua identidade de educativa. Para quem se manteve na emissora, isso se tornou um problema conceitual:

A TV saiu de uma condição do que a gente chama de TV educativa, né? Essencialmente TV educativa, isso a gente não vai perder por ser ainda uma TV afiliada a um grupo que é educativo, que tem essa proposta filantrópica, né? Mas ela perdeu essa proposta essencial educativa, que é trabalhar estagiários na formação profissional. Hoje, todos os profissionais do jornalismo são contratados. Então, ela subiu, talvez, para uma condição... A gente chama aí de uma TV deixando de ser educativa... Se transformou em uma TV profissional. Porque hoje todos os profissionais, eles são formados no jornalismo e contratados pela emissora. Hoje eu não tenho mais nenhum estudante de jornalismo. (Editor de Jornalismo, Caderno de campo, 2017).

A fala em destaque é rica por revelar os confrontos do entrevistado que visam a explicar - e ao mesmo tempo justificar - o que faz uma TV ser educativa. Ao confrontar educativa e profissional como opostos, os nexos desencadeados revelam que, na visão do narrador, uma TV educativa não é profissional. Seu raciocínio é dedutivo: a TV educativa forma profissionais e deve ser feita apenas por estudantes. Por essas premissas, o enunciador contrapõe o trabalho de profissionais e estudantes como definidor da “essência” de uma TV educativa e de uma TV profissional. Por outro lado, uma TV profissional, para o “Editor”, é aquela que tem condições de contratar profissionais formados. Fica subentendido que uma TV educativa não tem essas

condições. Nessa medida, ao contratar os profissionais formados e não ter mais estudantes estagiários, na visão do entrevistado, a TV Candidés deixou de ser educativa. Trata-se, parece claro, de uma falácia. A TV educativa é uma TV profissional. Se ela explora trabalho de estagiários isso reverberará na qualidade dos produtos midiáticos, que serão lidos como de menor valor. Não existe a categoria de TV “amadora” no conjunto de outorgas da regulamentação brasileira, por isso todas se enquadram na categoria profissional. A fala também marca que ter trabalhadores formados permitirá a emissora qualificar seus produtos; por isso ela “sobe”, ganha um novo valor socialmente partilhado que reforça sua “idoneidade” e seriedade junto à opinião pública. É nesse sentido que, para o narrador, ela passa a ser profissional. O que, por sua vez, também revela que a emissora era muito amadora em suas condutas organizacionais e, consequentemente, o produto seria amador. Em função das mudanças, o entrevistado espera que haja reconhecimento dessa “qualificação” do jornalismo a partir do aumento de uma suposta qualidade que agregará valor à informação dada pela TV à população, em comparação com o produto informação ofertado pela concorrência.

O raciocínio silogístico do enunciador parte de uma premissa falsa: a de que a TV educativa não é profissional e a TV comercial é. A fala revela dúvidas e incertezas do narrador expressa pelo conjuntivo “talvez”. A expressão “deixando de ser” denota que a TV, mais do que nunca, é educativa. Porém, o discurso coloca em dúvida se ela deixará – ou conseguirá deixar - de ser “educativa” ou que conseguirá ser “profissional”. No todo, a fala indica que o entrevistado não compreende ao certo o que faz uma TV educativa e como ela se diferencia, especialmente, da TV comercial. Algumas perguntas ficam sem respostas, a partir da narrativa – a despeito do desejo de que suas convicções estejam certas. Mas afinal: o que ela precisa fazer para se configurar-se como educativa? Ou deixaria de ser se fizesse? Sem o estagiário que marcava simbolicamente as diferenças entre a TV Candidés e outras organizações comerciais, o narrador perdeu a referência do que vem a ser a TV educativa na qual trabalha. Para tanto, lança mão do léxico “essência”, “essencial”, que bastariam para explicar a natureza educativa da outorga.

As dúvidas do trabalhador também colocam em questão sua própria qualificação profissional. Como editor de uma TV educativa, ele precisa reconhecer a diferença entre as emissoras: o cargo que ocupa o torna responsável por pensar sobre o que a TV produz. A emissora, por sua vez, com a finalidade de problematizar o senso comum, mais do que nunca, deve ser profissional. Ela precisa dispor de trabalhadores com ampla formação cultural, histórica, crítica e de compreensão do bem público, das regulamentações que regem o setor produtivo da comunicação, das disputas das quais o trabalho do profissional participa junto ao

público e as organizações de comunicação. Trabalhadores que dominem a técnica, a linguagem e o discurso - que sejam conscientes de seu papel político. Nesse sentido, a dúvida do entrevistado mostra seu despreparado em relação ao papel social que lhe impõe a outorga.

Outro ponto relevante da fala é o otimismo em relação à transformação da TVE depois da contratação de jornalistas formados. A mudança estrutural do perfil dos trabalhadores pode qualificar a produção jornalística da emissora porque os jornalistas serão cobrados como profissionais. Além do mais, como editor responsável pelos trabalhadores e pelo resultado do trabalho de sua “equipe”, o trabalho do editor tende a diminuir. Espera-se que um profissional consiga lidar com os problemas do cotidiano com maior autonomia do que um estudante. Estagiários demandam mais sua atenção. Um grupo de jornalistas profissionais daria ao editor chefe do jornalismo mais “liberdade” para realizar o que realmente é importante na sua função: qualificar o material jornalístico local ofertado à população e investir na interação com o público.

Mas, apesar da alteração na relação trabalhista da organização com os profissionais, a lógica da exploração do trabalho se manteve – e mais uma vez o discurso, que pretende mostrar a superação das fragilidades, ou justificá-las, acaba por expô-las:

Ainda acontece o acúmulo de função e isso na verdade é uma herança que a gente tem da época que a gente fazia a formação profissional de estagiários, mas é algo que a TV ainda pretende manter, porque, além de conseguir completar algumas lacunas pela deficiência, às vezes até de recursos humanos, porque para fazer o jornalismo e mais quatro programas que hoje é responsabilidade do jornalismo, eu necessitaria de um volume maior de profissionais. Trabalhando dentro da realidade, o que a gente incentiva muitas vezes é a capacitação de áreas semelhantes para que ele exerça mais de uma função e que a gente ainda mantenha essa oportunidade de formação, de formar, aí eu não diria profissionais, mas de formar o perfil daquele jornalista que está dentro da emissora (Editor Jornalismo, Caderno de campo,

2017).

No processo produtivo, a polivalência é narrada pelo profissional como formação permanente dos trabalhadores do jornalismo, porque, segundo o entrevistado, ainda se mantém a lógica de rodízio de funções como meio de “incentivar a capacitação” que qualifica a “equipe” para trocas de responsabilidades. Ao dizer que a organização continua “trabalhando

dentro da realidade”, o narrador reafirma a máxima da empresa enxuta: fazer mais com menos.

O “acúmulo de função”, que na fala diz respeito ao domínio de várias etapas do fazer jornalístico, otimiza a produção sem que haja aumento do número de trabalhadores. Permite lidar com ausências, como em períodos de férias e com “lacunas” por falta de sujeitos para executar as tarefas. Isso acontecia com os estagiários e era compreendido como parte da dinâmica de formação do estudante/trabalhador. A polivalência era apresentada como

oportunidade para conhecer o processo produtivo em sua totalidade, auxiliando o estagiário a escolher a atividade que mais lhe interessaria executar. A prática vela e naturaliza a lógica do enxugamento, acúmulo e desvio de funções.

Como se vê, se a lógica enxuta se mantém, a justificativa mudou. O fato é: se confrontarmos a fala do Editor com a fala dos demais trabalhadores, observamos que nem mesmo os trabalhadores querem ficar em apenas uma função, indicando tratar-se de um valor internalizado. O valor da especialização em uma atividade “alocada” não é partilhado pelos trabalhadores. “Antes eu apurava, passava as informações para o editor e o editor finalizava o

texto. Hoje já tem essa liberdade. Tanto no meu caso, quanto no caso de produtor que tenha a vontade de ser repórter” (Produtor, Caderno de campo, 2017). Na fala, a polivalência aparece

como “liberdade”, como reconhecimento de uma competência. E de fato é preciso compreender o fenômeno dialeticamente. O trabalhador, ao conhecer mais e conseguir realizar novas atividades, sente-se autônomo, confiante em relação à sua capacidade. Assumir novas tarefas é visto como desafio, não como sobrecarga. Por outro lado, a organização utiliza-se dessa vontade de participar e conhecer para apropriar-se desse impulso e produzir mais valor.