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Estratégias utilizadas pelo falante em contextos exolíngues e bilíngues: o transfer

A estratégia denominada transfer fonético é uma estratégia linguística que não consta na taxonomia de Dörnyei e Kormos (1998)139. Dado que sua presença é relevante numericamente, consideramos oportuno destacá-la.

Pertencem a essa categoria dois tipos de transfer. O transfer do primeiro tipo encontra- se no contexto bilíngue e serve para obter efeitos e funções comunicativas que a LE não possui; o segundo tipo aparece na conversação exolinguística e é utilizado para suprir lacunas linguísticas.

Os exemplos que pertencem ao primeiro grupo são, sem dúvida, mais numerosos em comparação com os do segundo. Isso depende, em parte, do fato que uma das tarefas propostas consistia precisamente na descrição da cidade do Rio de Janeiro, assunto que, como era previsível, facilitaria o emprego da L1 por parte dos estudantes.

O transfer fonético como falta de recursos linguísticos não é precedido nem por sinais temporais (hesitações, pausas, partidas falsas, autocorreções, etc.), nem por sinais extralinguísticos (risos, expressões faciais, olhares, abaixamento da voz, etc.). A impressão que se tem é de que os interactantes não percebem que estão usando formas da sua própria L1, dado que seu uso não é seguido nem por auto ou heterocorreções, nem por pedidos de ajuda, com exceção do exemplo 27, no qual o grupo está corrigindo um texto escrito. Nesse caso, o pedido direto de Anna, no qual manifesta sua dúvida entre “spiritoso e espiritoso”, origina duas intervenções de reparação em que a resposta de Laura será resolutiva. Essa sequência confirma que as estratégias estão condicionadas pelo tipo de atividade que está sendo realizada. Por isso, será mais provável que atividades como a produção escrita ou a correção induzam os interactantes a prestarem mais atenção nas formas que se afastam da língua-alvo.

EXEMPLO 27

Os estudantes devem reler o texto que escreveram e verificarem se há erros.

An: ((lendo)) che si veste in modo spiritoso o (espiritoso) TF F: (espiritoso) TF

L: abbiamo visto sul dizionario spiritoso

Os transfer fonéticos causados pela falta de recursos linguísticos ocorrem com as palavras que, em italiano, iniciam com o grupo consonantal seguidas por uma explosiva. O aprendiz acrescenta a elas, por influência da sua LM, um “e” no começo da palavra. Esse fenômeno de epêntese é muito frequente, dado que para os brasileiros é difícil a pronúncia daquele grupo consonantal. Veja-se o exemplo anterior, em que “spiritoso” é pronunciado “espiritoso” ou a sequência 28, em que a palavra “stadio” se transforma em “estadio” (em português, “estádio”). É interessante observar também que essa interferência ocorre somente em relação à pronúncia e que essas palavras, no momento da formalização no papel, costumam ser escritas corretamente140.

EXEMPLO 28

Estão escrevendo as respostas.

Pa: però c’è un altro elemento molto importante che quando una::: una di loro dice che::: non sapeva se mussolini::: guardava::: lo (estadio) TF o no siccome mussolini era::: come si dice abitava a roma la capitale del governo era a roma

C: era a roma sì

Pa: eh::: andava allo (estadio) TF mussolini doveva essere::: dovrebbe essere vicino allo (estadio) TF no? Exemplos semelhantes aos anteriores são “istoria” em lugar de “storia” (em português, história), ou a pronúncia de sons complexos como a trigrama “gli” ou as consonantes geminadas. No momento em que os aprendizes passam para a complexa operação de transposição dos fonemas em grafemas, a pronúncia segue sempre o sistema de referência português/brasileiro. Como mostram as sequências a seguir, parece que os alunos utilizam esses recursos não tanto porque não conhecem a pronúncia em LE (no exemplo 29, Pasquale intervém prontamente com uma autocorreção e diz “emme”, em lugar de “em”), mas porque a L1 ajuda a dirigir a atenção para a forma (ver, entre outros, ANTÓN; DiCAMILLA, 1998; SCOTT; de la FUENTE 2008; SWAIN; LAPKIN, 2000):

EXEMPLO 29

O grupo, após ter lido o texto, responde às perguntas que pedem para que seja feita a análise do trecho. Pa: sì… come si scrive immobilità con la doppia (em) TF emme

Ad: non lo so bene le doppie sono::: un mio problema EXEMPLO 30

Estão escrevendo as respostas

L: ((escrevendo)) fin sin dal no dois (ele) TF da F: mettiamo il titolo?

Os transfer que definimos discursivos acontecem quando, tendo de referir-se a um aspecto que pertence a seu país, como, por exemplo, uma localidade, o nome de uma personagem ou um elemento enraizado na sua cultura, o falante sente-se quase na obrigação de usar a palavra em português, mantendo intacta a pronúncia. São raras as vezes em que a pronúncia é adaptada à pronúncia italiana. Essa tipologia de transfer tem um valor expressivo forte e, diferentemente dos exemplos precedentes, em que se usa a pronúncia da L1 por dificuldades de tipo articulatório, os aprendizes mantêm inalterada a pronúncia para salientar uma carga afetiva, dado que a LM, como lembra Revuz (1998, p. 217), é “material fundador de nosso psiquismo e de nossa vida relacional”. Vejamos as sequências selecionadas:

EXEMPLO 31

A dupla está formulando hipóteses sobre o conteúdo do vídeo. L: è è molto bello il (pão de açúcar) TF il bonde il bondinho F: è molto bello

EXEMPLO 32

Os estudantes estão formulando hipóteses sobre o trecho de vídeo que acabaram de ver. An: qui sta (mostrando) TR eh::: il (marcanã maracanã) TF

M: ((anuindo))

An: c’è anche il museo di::: arte moderna in niteroi che è quello di::: M: ah non so non conosco rio ((risos))

An: io (amo) TF rio ((risos)) eh::: dio santo ho dimenticato il nome… (niemeyer) TF quello che sembra un::: disco voador141

M: sì

An: il museo di arte moderna di::: di arte contemporanea il mac (del) TR (rio) TF che::: si (in realità) ES è

Selecionamos esses dois exemplos, em que os participantes acabaram de ver um vídeo sobre o Rio de Janeiro e devem comentá-lo juntos, porque são representativos do fenômeno acima referido. No primeiro exemplo, Laura fala do “pão de açúcar”, uma localidade turística do Rio, com a pronúncia brasileira, e do “bonde”, outro símbolo do Rio, palavra que é preferida a “tram” pela carga expressiva que possui. No segundo exemplo, entretanto, os falantes acabam alternando formas híbridas de pronúncia, utilizando ora a L1, ora a pronúncia italiana. Quando isso acontece, esse fenômeno suscita risos “non so non conosco rio ((risos))”, como se, renunciando à pronúncia da LM, o aprendiz se sentisse diante de uma realidade diferente, desprovida de carga afetiva.