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4 A FEIRA DOMINICAL DO NORDESTE DE AMARALINA

4.2 ORIGEM DA FEIRA DOMINICAL DE AMARALINA

4.2.2 Estrutura espacial da Feira

Com a pesquisa exploratória, realizada nos meses de maio, junho e outubro de 2014, em dias e horários diferentes, por meio de observações parciais e diálogos informais com moradores, frequentadores da Feira e feirantes, percebeu-se que a Feira assume, basicamente, uma importância econômica para a população do bairro e adjacências.

Foi verificada a existência de uma integração entre os feirantes locais e os não locais, consumidores e pessoas que transitam pelo local, durante algumas horas do domingo. O grande número de pessoas que circulam na feira e interagem informalmente entre si desencadeia alguns comportamentos previsíveis e imprevisíveis, que vão desde a relação comercial, social, cultural e econômica, até situações de desorganização e transtorno local, violência, com casos de morte, e doenças, com a manipulação e a exposição das mercadorias, além do tráfico de drogas.

Também foi observada mudança no itinerário do transporte coletivo e da localização do final de linha nos fins de semana. Segundo Claudio Nascimento, 53 anos, morador do local e frequentador da feira, a mudança de trajeto dos ônibus se deu por pressão popular: “Os moradores primeiro comunicaram aos motoristas, depois começaram a fazer barricadas, colocando barreiras de ferro para que os ônibus não entrassem no fim de linha”.

Conforme já se pontuou no Capítulo 2, nota-se a existência de uma hierarquia para a localização dos feirantes e a comercialização dos produtos. Na parte mais alta, localizada no largo da Delegacia, encontram-se os feirantes mais antigos, com predominância para os oriundos dos municípios de Amargosa e São Felipe, bem como os antigos vendedores locais e de outros bairros de Salvador, com mais de 30 anos de atuação na Feira. O principal produto comercializado nessa área é a banana verde vendida em cachos.

Figura 20 – Cachos de bananas verdes, principais produtos vendidos e expostos na FDNA

Fonte: ROCHA, 2016.

Os gráficos a seguir apresentam os resultados da aplicação dos questionários por setor da Feira.

Conforme se observa no Gráfico 1, a maior parte dos feirantes entrevistados nesse setor da Feira atua no local há mais de três décadas, revelando a aparente predominância dos feirantes antigos na parte alta.

Gráfico 1 – Tempo de comercialização dos feirantes da parte Alta da FDNA

Fonte: ROCHA, 2016.

Em conversas e aplicações dos questionários com esses agentes, em especial os da zona rural, nota-se um forte vínculo afetivo com o lugar: eles vendem na feira por prazer e por costume. Alguns frequentadores afirmaram que é para manter a tradição, pois, de acordo com o relato dos feirantes, eles possuem situação econômica já definida, garantida, por exemplo, por casas de aluguel e outras propriedades, além de filhos adultos e independentes.

Durante o caminhar, encontramos com um feirante de Valença-BA. Entre os vários produtos vendidos, destacava-se o cacau. Segundo o vendedor, ele vem à feira quinzenalmente para vender os produtos do seu próprio quintal. Ele vende para que esses

produtos não sejam desperdiçados e deixa bem claro que não necessita da feira para sobreviver.

Entretanto, conforme a declividade vai se acentuando, vão se estabelecendo os feirantes mais novos e os eventuais, ocorrendo a diversificação dos produtos. Nos gráficos 2 e 3, a seguir, é possível observar a distribuição dos feirantes das partes Intermediária e Baixa, conforme o tempo em que atuam na Feira.

Gráfico 2 – Tempo de comercialização dos feirantes da parte Intermediária da FDNA

Fonte: ROCHA, 2016.

Gráfico 3 – Tempo de comercialização dos feirantes da parte Baixa da FDNA

Fonte: ROCHA, 2016.

Na parte mais larga da feira, a parte Baixa, onde se localiza o ponto final do transporte coletivo, estão, em geral, os feirantes com menos tempo de atuação e que vendem durante toda a semana no Nordeste de Amaralina e em outros bairros da cidade. É a porção que mais se expande e também a mais complexa.

Alguns feirantes trazem sobras de outras feiras para serem comercializadas, provocando indignação entre os feirantes antigos, que veem o acontecimento como concorrência. Nota-se falta de entrosamento entre os feirantes novos e os antigos do interior. Foi detectado, em várias falas, certo desejo de distanciamento, a partir de referências como “eles do interior”, para os feirantes antigos.

Vale expor que, nesse espaço, houve dificuldade para aplicação do questionário. Os vendedores alegavam não ser do bairro, não ter tempo, ou mesmo não quererem falar. Acreditamos na existência do medo, por serem novos no espaço. Sempre perguntavam se éramos da Prefeitura e qual o objetivo da pesquisa. Percebemos também contradições nas respostas dadas, em relação ao local de moradia e ao tempo na feira.

Como exemplo, citamos a contradição entre as questões n°1 e n° 7 (vide apêndice A), respondida pelo o entrevistado 27, ele afirma que era de Nazaré das Farinhas, porém, apontou que vende na Feira por ser perto de casa. Em conversas informais com outros feirantes recentes, notamos a mesma prática, contudo não podemos afirmar ser uma atitude generalizada e até que ponto essas respostas são utilizadas como estratégias de valorização. Trata-se, também, da parte da feira com maior presença de familiares e com maior desperdício de mercadorias.

Em relação à procedência dos feirantes, verifica-se um grande número de vendedores residentes no bairro, que estão na feira há mais de vinte anos, porém o que desperta a atenção é a quantidade de feirantes vindos de outros municípios. Eles chegam de caminhão durante a tarde de sábado, por volta das 14 horas e retornam para as suas localidades às 12 horas de domingo, fato que já chamou a atenção da imprensa de Salvador, que publicou em agosto de 2012 uma notícia intitulada Feirantes do interior migram para a capital:

[...] duas feiras montadas no Nordeste de Amaralina e da Boca do Rio não seguem a lógica do mercado e acabam sendo uma das opções mais baratas da cidade. Elas acontecem todos os finais de semana e possuem muitos feirantes vindos do interior, como Amargosa, Castro Alves, São Felipe e Cruz das Almas, que vendem diretamente para os moradores (TONIELLO FILHO, 2012, p1).

Contrariando a regulamentação, Capítulo V, Art. 22, alínea “e”, que proíbe a colocação de mercadorias diretamente ao solo ou sobre lonas, plásticos ou papelões e similares, salvo aquelas previamente autorizadas pela SESP, grande parte das mercadorias são vendidas no próprio chão, contudo, são encontrados alguns equipamentos como tabuleiro, carro de mão, barraca (pouquíssimas), isopor, mesa, caminhonete etc. Essa peculiaridade despertou a atenção da imprensa, que publicou uma matéria no jornal A Tarde, em 04 de março (2002), intitulada “Feira do Nordeste: passagem obrigatória para a economia”. Na reportagem, a jornalista Sílvia Nascimento ressalta que o principal atrativo da feira são os preços baixos, enfatizando que “Na feira do Nordeste de Amaralina, cuja maioria dos itens à venda é exposta no chão, sobre plásticos, o comprador encontra de tudo” (NASCIMENTO, 2002, p. 4).

Figura 21 - Mercadorias vendidas diretamente ao solo sobre lonas, na FDNA

Fonte: ROCHA, 2016.

Entretanto, ao analisarmos a Feira seguindo a proposta metodológica da divisão em três partes encontramos as situações descritas adiante, em cada uma das zonas.

Na parte Alta, verifica-se a presença de feirantes produtores, com maior contato entre o rural e o consumidor, ou seja, esses agentes comercializam mercadorias da sua propriedade. Ressaltamos, todavia, que são pequenas propriedades agrícolas ou quintais das suas residências.

Como exemplo, destacamos o senhor Antonio do Porco, que vende plantas do seu próprio sítio, localizado no bairro Jardins das Margaridas, um vendedor de Valença que comercializa cacau e laranja da sua chácara, D. Lourdes, que vende beiju de fabricação própria, os baganeiros de Corta Mão (Amargosa) e vendedores de São Felipe, que comercializam bananas verdes, laranja e jaca retirados das suas propriedades, porém completam com produtos comprados nas roças e feira dos seus municípios.

Gráfico 4 – Local de aquisição das mercadorias pelos feirantes da parte Alta da

FDNA

Fonte: ROCHA, 2016

Nota-se

concentração de

alguns produtos nessa

parte da Feira. As bananas

verdes em cacho, originárias

maior expressividade e, em menor proporção, vindas de São Felipe e de Ubaíra, constituindo a paisagem predominante. Também nesse espaço, encontramos a farinha de Maragogipe, laranja e jaca, vindos de São Felipe, além de temperos diversos, plantas, duas barracas de carne e uma barraca de beiju. Ressalta-se que os feirantes de Amargosa (Corta Mão) e outras cidades do interior, em geral, são produtores.

Gráfico 5 – Principais produtos comercializados pelos Feirantes da parte Alta da FDNA

Fonte: ROCHA, 2016.

Por sua vez, na parte Intermediária, são encontrados feirantes que compram os produtos na Ceasa e na feira de São Joaquim para serem revendidos, embora também sejam encontrados feirantes que negociem com mercadorias da sua propriedade. No Gráfico 5, ilustra-se a situação dos feirantes entrevistados nessa área, conforme o local de aquisição de suas mercadorias.

Gráfico 6 – Local de aquisição das mercadorias pelos feirantes da parte Intermediária da

FDNA

Fonte: ROCHA, 2016

Como foi possível observar durante o trabalho de campo, a principal mercadoria negociada por esses sujeitos, depende do cultivo mais propício durante a estação climática vigente, sendo as frutas, de modo geral, sempre prevalentes. Esse quadro é observado no Gráfico abaixo.

Gráfico 7 – Principais produtos comercializados pelos feirantes da parte Intermediária da

FDNA

Fonte: ROCHA, 2016.

Por fim, na parte Baixa, estão estabelecidos os feirantes com pouco contato com o rural. São os que mais dependem dos intermediários e do Circuito Superior. Em sua maioria, adquirem suas mercadorias, na Ceasa e na feira de São Joaquim. Uma pequena parte produz sua própria mercadoria. Essa situação é apresentada no Gráfico 8.

Gráfico 8 – Local de aquisição das mercadorias pelos feirantes da parte Baixa da FDNA

Fonte: ROCHA, 2016

Aqui são comercializados produtos diversos: hortifrutigranjeiros, roupas, pano de prato, calçados, alumínios, bolachas e uma infinidade de mercadorias. Não há, portanto, um item prevalente nessa região da Feira, destacando-se, apenas, frutas diversas, como se percebe no Gráfico 9.

Fonte: ROCHA, 2016

Em relação aos estoques das mercadorias elas são adquiridas pelos feirantes em pequenas quantidades e, como observado nos gráficos, em maior parte, em três centros distribuidores: um regional (municípios do Estado), um centro de abastecimento (CEASA) e a feira de S. Joaquim. Porém, como já foi dito, foi observado que alguns vendedores residentes no bairro, que comercializam folhas verdes (alface e tempero verde), por muitas vezes compram nos mercados existentes nas imediações.

Em visita à residência de uma mulher de 60 anos, nível superior completo, funcionária pública, moradora do bairro há cerca de quarenta anos, ouviu-se um protesto contra um feirante. Segundo a residente, o comerciante compra toda a alface encontrada nos mercados da localidade, para revendê-lo na feira aos domingos. Santos (2004) esclarece que, o Circuito Inferior é o resultado da demanda, tende a ser controlado, subordinado e dependente, mesmo que esta esteja deformada pelo efeito-demonstração. Sendo assim, o feirante se utiliza de táticas para a compra do produto no circuito marginal, garantindo a revenda aos seus clientes.

A feira atende às diferentes classes de renda, com diferentes níveis de escolaridade, mesmo estando em uma área considerada pobre e estereotipada como violenta por alguns consumidores residentes em outros bairros. Esse fato é registrado na fala dos próprios compradores.

Todavia, ao serem indagados sobre se conseguiriam ver o Nordeste de Amaralina sem a Feira, as respostas dos informantes revelam o papel do evento para a vitalidade do bairro. O informante n° 46 responde que não: “O bairro possui histórico de violência, se não houvesse a feira não viria aqui, pois com a feira há maior aglomeração de pessoas e eu me sinto mais protegido”. A mesma pergunta foi realizada a informante n° 47, que respondeu: “Nem viria, devido não ser seguro, não ser bonito. Só venho por causa da feira”.

Quanto à permanência da feira, P. L. morador antigo do Vale das Pedrinhas e integrante da Comissão do Bairro do Vale das Pedrinhas, afirma que “o bairro não tem um

grande mercado, e os existentes iniciaram no próprio local, geralmente com os moradores em casa de farinha” 24 – ele cita o Sol Nascente, um dos mercados mais antigos do Vale das

Pedrinhas.

Assim sendo, levando em conta a ausência dos grandes mercados no bairro, a Feira se cristaliza como um pólo de atração de vendedores e consumidores. Funciona como ponto de encontro que norteia as atividades econômicas, suprindo as necessidades básicas alimentares da população e ao mesmo tempo gerando emprego, renda e valores que são consubstanciados através de uma rede material e imaterial. Temos por exemplo a questão n° 15, onde se pergunta ao consumidor/morador: qual a importância dessa feira para o Nordeste de Amaralina?

Entre as várias respostas destacamos: “Existe família que se sustenta aqui, e os produtos que não são comercializados hoje, circula durante a semana, pois abastece os pequenos comerciantes”. Outro consumidor responde; “[...] é tipo uma Ceasa, as pessoas compram para colocar em suas barracas, em seu mercado”. Os informantes nº 37 e n° 42 se referem aos donos dos mercadinhos locais, que compram na feira para revender em seus pontos comerciais durante a semana.

Realizamos a mesma pergunta para os feirantes. Citamos as seguintes respostas dadas pelos informantes 5, 38, 44 e 55. “Mata a fome de muita gente”; “A feira é de grande importância para o bairro, principalmente com relação aos produtos, que são mais vendidos baratos”; “Ajuda aos pobres”. Essa trama comercial se consolida formando circuitos e fluxos que possibilita a aproximação dos agentes sociais entre si, estabelecendo dinamicidade comercial do espaço geográfico estudado.

Porém, a FDNA além da sua função comercial, exerce papel de local de encontro e de lazer para a população do bairro e de alguns consumidores não locais, pois muitos aí vão para rever os amigos, comer o feijão de D. Lourdes, conversar nos bares. Como descrevem os entrevistados: A informante nº 47, expõe: “Rotina de domingo. É uma visgueira! Bar do Senhor Careca, toma Poronga25 (salva casamento). Trouxe um chefe de cozinha da Austrália

para conhecer a Feira. Tem dono de bar, cineasta, que frequentam esta Feira.”. O informante senhor W. J.G, diz “A Feira é ótima! De graça! No carnaval vem muito turista, muito gringo comer o feijão.” Para J. C. S. N, informante n° 41, conhecido como o fofoqueiro da Feira

24 Refere-se a pequenos estabelecimentos que iniciaram vendendo farinha no bairro e transformaram-se em mercados.

25 Porongo, bebida, segundo a informante, considerada afrodisíaca. Vendida em um bar do Circuito da Feira, de acordo com o dono do estabelecimento, é feita com conhaque de alcatrão, limão mel e jurubeba (vinho).

“Venho compro, tenho um ciclo de amizades, independente de comprar ou não. Brinco. Após a missa, venho comprar e brincar.”.

Desse modo, pode-se inferir que o espaço de comercialização estudado não é um simples local para a circulação de mercadorias, mas um espaço marcado pela territorialidade e sociabilidade que resiste e persiste dentro de um sistema capitalista contemporâneo.