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Estrutura funcional do ônus da prova: ônus da prova subjetivo e ônus da prova

2. ÔNUS DA PROVA: ASPECTOS GERAIS

2.5. Estrutura funcional do ônus da prova: ônus da prova subjetivo e ônus da prova

Em sua estrutura funcional, o ônus da prova pode ser analisado sob dois aspectos: o ônus da prova subjetivo e o ônus da prova objetivo.

O ônus da prova subjetivo “é uma regra de conduta dirigida às partes,

que indica quais os fatos que a cada um incumbe provar70”. Já o ônus da prova objetivo “é uma regra dirigida ao juiz (uma regra de julgamento, portanto), que indica como ele deverá julgar acaso não encontre a prova dos fatos; que indica qual das partes deverá suportar os riscos advindos do mau êxito na atividade probatória, amargando uma decisão desfavorável71”.

Assim, o ônus da prova em sentido subjetivo exerce a função de organizar a conduta das partes quanto à produção da prova dos fatos alegados, indicando aquilo que cada parte deverá provar, enquanto que o ônus da prova em sentido objetivo proporciona meios objetivos para que o juiz decida a demanda em casos de insuficiência ou inexistência de prova das alegações, diante da vedação legal de emissão do non liquet,

69“As normas acerca do ônus da prova possuem natureza de direito processual, pois regulam o modo e as

condições da atuação da lei no processo. Constituem critérios de proceder, cuja violação importa em error

in procedendo. Por decorrência lógica, são normas de ordem pública, imperativas, principalmente por tratar

da realização do interesse público que lhe está adjacente em prol da ordem e da paz social” (PEGO, Rafael Foresti, Ônus da prova, p. 168); “Impossível negar, nessa perspectiva, que o problema dos ônus probatórios é daqueles em que mais se percebe o diálogo entre o direito material e o processo. Tanto o direito material

como o direito processual exercem marcada influência na distribuição dos esforços probatórios, pelo que compreendemos sua natureza seja mista, muito embora, pelos argumentos traçados, sua essência seja predominantemente processual” (CARPES, Artur, Ônus dinâmico da prova, p. 51).

70

DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil:

Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela, p. 75. Negando a existência de uma função subjetiva do ônus da prova: MÚRIAS,

Pedro Ferreira, Por uma distribuição fundamentada do ónus da prova, p. 23.

71

DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil:

Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela, p. 75.

prevista no artigo 126 do Código de Processo Civil72, evitando-se o mero arbítrio73. O ônus da prova em sentido objetivo, portanto, determina prévia e abstratamente quem deve suportar os riscos da ausência ou insuficiência de provas.

Vale dizer: a distribuição do ônus da prova exerce dupla função: a um, desempenha importante e significativo papel no que tange à estruturação da atividade probatória das partes (função subjetiva); a dois, funciona como regra de julgamento, a ensejar, no caso de insuficiência de provas aptas a formar o convencimento judicial, sentença contrária aos interesses da parte que não se desincumbiu de seu encargo (função objetiva), na medida em que é vedado ao juiz pronunciar-se pelo non liquet74.

O artigo 333 do Código de Processo Civil disciplina essas duas funções. Com efeito, ao determinar que ao autor incumbe comprovar o fato constitutivo de seu direito alegado, enquanto que ao réu cabe à prova dos fatos impeditivos, modificativos e extintivos da pretensão do autor, a norma processual está organizando a conduta das partes quanto à produção da prova das alegações deduzidas em juízo (função subjetiva do ônus da prova). Caso, ao final da instrução probatória, haja insuficiência ou inexistência de provas, se o autor não tiver produzido provas a respeito do fato constitutivo de seu direito, a demanda será julgada improcedente, e se o réu é quem não tiver comprovado os fatos impeditivos, modificativos e extintivos da pretensão do autor, a ação será julgada procedente, vez que a regra processual estabeleceu, aprioristicamente, quem deverá suportar os riscos de insuficiência ou ausência de provas (função objetiva do ônus da prova), não podendo o juiz deixar de julgar o processo (vedação legal ao non liquet), nem decidir de acordo com seus critérios subjetivos.

No entanto, a função subjetiva do ônus da prova é minimizada pela doutrina, prestigiando-se a função objetiva. Isso porque, alega-se, é inútil verificar, ainda na fase de instrução probatória, qual prova a cada parte incumbe produzir (ônus da prova subjetivo), pois, pelo princípio da aquisição processual ou da comunhão da prova, caso a

72 “Art. 126. O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No

julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes

e aos princípios gerais de direito”. Se bem que, em sede de tutela de direitos metaindividuais, sustenta-se

que, com a utilização da técnica da coisa julgada secundum eventum probationis, o juiz estaria autorizado a não julgar a causa em face da insuficiência de provas produzidas pelo autor coletivo, como no exemplo do artigo 18 da Lei da Ação Popular (Lei 4.717/65) (GRINOVER, Ada Pellegrini, Ações coletivas ibero-

americanas: novas questões sobre a legitimação e a coisa julgada, p. 8-11).

73 YARSHELL, Flávio, Antecipação da prova sem o requisito da urgência e direito autônomo à prova, p. 57. 74 CARPES, Artur, Ônus dinâmico da prova, p. 52.

prova seja produzida pela parte a qual não detinha o ônus respectivo, ainda assim poderá ser valorada pelo juiz. Desse modo, a necessidade de análise do ônus da prova surge no processo no momento do julgamento (ônus da prova objetivo), em razão da insuficiência ou inexistência de provas produzidas, constatada pelo magistrado apenas no momento de proferir a decisão final.

Analisar, na fase de instrução probatória, qual a conduta esperada de cada parte, de acordo com o ônus da prova subjetivo, seria, para esta corrente, desperdício de tempo, pois a prova que era esperada da parte poderá ser produzida pelo adversário. Assim, a análise judicial do ônus da prova apenas faria sentido no momento do julgamento (ônus da prova objetivo)75.

No mais, sustenta-se que o reconhecimento dos poderes instrutórios do juiz teria mitigado a função subjetiva do ônus probatório76.

No entanto, sustentamos posição diversa, valorizando o ônus da prova subjetivo e sua função de organizar, disciplinar e estimular a conduta das partes quanto à produção de provas.

75“Em última análise, não é o comportamento da parte onerada que está em causa. Os resultados da atividade

instrutória são apreciados pelo órgão judicial sem qualquer valoração, positiva ou negativa, desse comportamento. Se persistiu a obscuridade, em nada aproveita à parte onerada alegar que fez, para dissipá- la, tudo que estava ao seu alcance, e portanto nenhuma culpa se lhe pode imputar. Inversamente, se a obscuridade cessou para dar lugar à certeza da ocorrência do fato, em nada prejudica à parte onerada a circunstância de que ela própria não tenha contribuído, sequer com parcela mínima, e ainda que pudesse

fazê-lo, para a formação do convencimento judicial, devendo-se o êxito, com exclusividade a outros fatores.

Ao juiz, por conseguinte, toca ver se são completos ou incompletos os resultados da atividade instrutória. Não lhe importa, na primeira hipótese, a quem se deve o serem completos os resultados. Importa-lhe-á, sim, na segunda, a quem se deve o serem incompletos; ou, mais precisamente, a quem se hão de atribuir as consequências da remanescente incerteza. Se quisermos usar a terminologia habitual, poderemos dizer que o órgão judicial só tem de preocupar-se, a rigor, como o aspecto objetivo do ônus da prova, não com seu aspecto subjetivo” (MOREIRA, José Carlos Barbosa, Julgamento e ônus da prova, p. 75); “Importante não é a conduta das partes na instrução (ônus subjetivo), mas o resultado da instrução e sua avaliação e

julgamento pelo juiz (ônus objetivo). Não interessa quem produziu a prova, mas sim o quê se provou e sua análise pelo magistrado. (...) A expressão ‘ônus da prova’ sintetiza o problema de se saber quem responderá

pela ausência de prova de determinado fato. Não se trata de regras que distribuem tarefas processuais (regra de conduta); as regras de ônus da prova ajudam o magistrado na hora de decidir, quando não houver prova do fato que tem de ser examinado (regra de julgamento). Trata-se, pois, de regras de julgamento e de aplicação subsidiária, porquanto somente incidam se não houver prova do fato probando, que se reputa

como não ocorrido” (DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil: Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela, p. 78).

76“Ora, seja reconhecendo poderes instrutórios ao juiz de uma forma autônoma e concorrente aos das partes,

seja subsidiariamente, em ambos os casos há mitigação da necessidade de provar das partes, relativizando o conceito de ônus subjetivo da prova. Se o juiz determina – desde logo e em caráter principal – a produção de uma prova para a verificação de determinado fato, ou se a determina subsidiariamente, somente após realização infrutífera da prova requerida pela própria parte interessada, em qualquer uma das hipóteses fica

seriamente abalada a concepção subjetiva de ônus da prova. A importância do encargo subjetivo fica

minimizada em ambas as situações, na medida em que o êxito ou o malogro das pretensões deduzidas não

fica na dependência exclusiva da atividade instrutória da parte onerada” (PACÍFICO, Luiz Eduardo

É certo que o juiz apenas irá aplicar a regra de julgamento (ônus da prova objetivo) no momento da prolação da decisão final. No entanto, essa aplicação apenas se justifica em caso de insuficiência ou inexistência de provas produzidas, o que, muitas vezes, é configurado em razão da ineficácia das regras de conduta (ônus da prova subjetivo), tendo em vista que as partes oneradas, no caso concreto, não detêm condições de se desvencilharem das cargas probatórias. Ainda que esta constatação seja posterior - apenas no momento do julgamento -, sua causa é pretérita, pois ocorre na fase da instrução probatória.

Assim, a valorização da regra de conduta das partes (ônus da prova subjetivo) está diretamente relacionada à prevenção da ocorrência do quadro de insuficiência probatória e, consequentemente, do julgamento segundo o ônus da prova objetivo. Organizar corretamente a conduta probatória das partes na fase instrutória é diminuir a chance de incidência da regra de julgamento.

O magistrado deve buscar, na maioria dos casos, julgar de acordo com as provas produzidas, com base na formação plena de seu convencimento, e não de acordo com regras formais de julgamento, diante da insuficiência de provas produzidas77. Com efeito, uma decisão proferida com base em provas produzidas é muito mais eficaz, do ponto de vista do escopo social do processo, do que uma sentença emanada de acordo com regras abstratas de julgamento, a qual atende apenas ao escopo jurídico do processo.

Em outras palavras: uma decisão obtida a partir da aplicação das regras de julgamento não é tão justa quanto uma proferida com base em provas efetivamente produzidas nos autos.

Ora, se a repartição do ônus da prova possui influência na participação das partes

– na medida em que vai servir à estruturação da sua respectiva atividade

probatória -, e tal participação constitui elemento fundamental para a construção da decisão justa, não se pode mais minimizar a importância da função subjetiva. Com efeito, ao contrário do que enunciava Rosenberg ainda no primeiro quartel do século passado, o problema dos ônus probatórios não se apresenta apenas quando a prova não se produziu, mas, pelo contrário, muito antes disso, ou seja, ao longo de toda a atividade probatória. Pode-se ir mais além: a distribuição do

ônus da prova serve justamente para evitar a ausência de prova, na medida em que serve de estimulante para que as provas sejam produzidas.

(...)

Vale dizer: é preciso que fique clara a importância e o significado da função

subjetiva dos ônus probatórios no Estado constitucional. Não se pode mais compreender que tais ‘regras só interessam ante a ausência de prova eficaz para

77 É nesse sentido que Jorge W. Peyrano defende a aplicação excepcional, restritiva da regra de julgamento

suscitar certeza ao juiz’ ou que ‘somente são aplicáveis quando uma circunstância de fato [...] não se aclarou’, como ainda insiste grande parte da

doutrina, quiçá de maneira acrítica. A função subjetiva dos ônus probatórios é tão ou até mais importante que a função objetiva: dada a devida atenção àquela, afasta-se o perigo de formalização da decisão judicial e, por via de consequência, aumenta-se a probabilidade de se alcançar a justiça material78.

No mais, o entendimento de que as regras sobre ônus da prova somente serão aplicadas no julgamento, diante de um quadro de inexistência ou insuficiência probatória, não afasta, por si só, a concepção de que essas mesmas regras também estão relacionadas com a conduta desempenhada pelas partes na atividade instrutória79. Ou seja, o ônus da prova objetivo não absorve totalmente a relevância do ônus da prova subjetivo.

Portanto, a valorização do ônus da prova subjetivo se revela de suma importância para a obtenção de um julgamento mais justo, que mais se aproxime da realidade dos fatos, prevenindo-se a constatação de insuficiência ou inexistência de provas e, consequentemente, o julgamento de acordo com regras formais e abstratas de distribuição do ônus da prova80.

78 CARPES, Artur, Ônus dinâmico da prova, p. 54-55. Nesse mesmo sentido, Eduardo Henrique de Oliveira

Yoshikawa: “Embora o aspecto objetivo do ônus da prova tenha inegável relevância, por repercutir

diretamente sobre o julgamento do mérito, não se pode, nem por isso, minimizar ou até mesmo negar a importância do seu aspecto subjetivo, alegando, por exemplo, tratar-se de fenômeno psicológico e não jurídico. Semelhante concepção, além de anti-histórica, ignora que o estímulo à atividade instrutória das partes tem precisamente o propósito de evitar que o julgamento seja feito mediante a aplicação de regras como as do art. 333 do CPC. Concede-se às partes a possibilidade de provar suas alegações para que depois não venham reclamar da justiça da decisão” (Considerações sobre a teoria da distribuição dinâmica do

ônus da prova, p. 121).

79 “Ainda que a aplicação direta das regras sobre ônus da prova somente será realizada quando do

julgamento, na ausência, insuficiência ou equivalência de provas, isto não afasta o entendimento de que o

onus probandi está inserido em um contexto de motivação das partes para que participem da instrução probatória” (PEGO, Rafael Foresti, Ônus da prova, p. 169).

80“Afinal, a noção de ônus da prova não pode prescindir de um componente subjetivo, porque não é uma

categoria jurídica que pode ser concebida sem um titular. Da mesma forma, a lei processual não poderia considerar irrelevante a atividade das partes, sendo sua função estimulá-las a produzir as provas correspondentes às suas alegações, porque essa atividade aumenta as possibilidades de influir no convencimento do juiz e, destarte, de obter uma decisão favorável, além de, em contrapartida, elevar os riscos de o litigante não sair vitorioso, já que, na ausência ou na insuficiência das provas, cabe à parte, que deveria produzir essas provas arcar com as consequências desfavoráveis” (CAMBI, Eduardo, A prova civil:

admissibilidade e relevância, p. 317-318); “Isso não significa que, antes do momento de julgar, a disciplina

do ônus da prova seja destituída de relevância no processo. É dever do juiz, na audiência preliminar (art. 331), informar as partes do ônus que cada um tem e adverti-las das consequências de eventual omissão – porque uma das tarefas a realizar nessa oportunidade é a organização da prova mediante fixação dos limites de seu objeto e determinação dos meios probatórios a desencadear. A transparência das condutas é uma inafastável inerência do due process of law e da exigência do diálogo que integra a garantia constitucional do contraditório: o processo civil moderno quer muita explicitude do juiz e de suas

intenções, que são fatores indispensáveis à efetividade do processo justo” (DINAMARCO, Cândido