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O momento processual adequado para inversão judicial do ônus da prova:

2. ÔNUS DA PROVA: ASPECTOS GERAIS

2.8. Inversão judicial do ônus da prova

2.8.3. O momento processual adequado para inversão judicial do ônus da prova:

Aspecto de grande importância e polêmica, tanto no campo doutrinário quanto jurisprudencial, é a questão envolvendo o momento processual adequado para se inverter judicialmente o ônus da prova. Com efeito, discute-se se a inversão deve ser aplicada pelo juiz na fase postulatória, na fase instrutória ou apenas na fase decisória. O debate relaciona-se com os posicionamentos acerca das funções do ônus da prova (ônus da prova subjetivo e ônus da prova objetivo) e com a necessidade de as partes terem conhecimento prévio, ou não, acerca da inversão.

A posição doutrinária prevalecente – mas que parece, aos poucos, perder força tanto na doutrina quanto na jurisprudência – é a de que a inversão judicial do ônus da prova apenas deve ser aplicada no momento do julgamento. Isso porque, sustenta-se, a regra de distribuição do ônus da prova, incluindo a inversão, é tipicamente uma regra de

102“O conceito de hipossuficiência, entretanto, deve ser entendido a partir da finalidade da norma, que é a de

tornar mais fácil, no campo específico da instrução probatória, a defesa dos direitos do consumidor” (SANTOS, Sandra Aparecida de Sá dos, A inversão do ônus da prova: como garantia constitucional do

devido processo legal, p. 74).

103 “Ela decorre não só de aspectos econômicos – como inicialmente apontaram, a nosso ver,

equivocadamente os autores do anteprojeto do CDC – mas, fundamentalmente, da deficiência técnica que se evidencia a partir da contraposição das circunstâncias que apresentam, respectivamente, consumidor e

fornecedor e que têm origem ‘em fatores como o acesso à informação, grau de escolaridade, poder de associação e posição social’” (CREMASCO, Suzana Santi, A distribuição dinâmica do ônus da prova, p.

66). Nesse mesmo sentido, reformando posição anterior, Kazuo Watanabe (Código Brasileiro de Defesa do

Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto, p. 794-796). Heitor Vitor Mendonça Sica analisa a

hipossuficiência do consumidor como sendo de ordem técnica, diante da ausência de conhecimento e informação em relação ao fornecedor, valendo-se do conceito de “assimetria de informação”, extraído da doutrina econômica (Questões velhas e novas sobre a inversão do ônus da prova (CDC, art. 6º, VIII), p. 51-55).

julgamento (ônus da prova objetivo), a ser utilizada pelo magistrado apenas no momento de prolação da sentença, diante da inexistência ou da insuficiência das provas produzidas pelas partes. Assim, o magistrado apenas teria a necessidade de inverter o ônus da prova caso ficasse constatada, no momento do julgamento, a deficiência da atividade probatória104.

Quanto ao esclarecimento prévio às partes acerca da possibilidade de aplicação da regra de inversão judicial do ônus da prova, para esta corrente não haveria tal necessidade, pois a previsão legal (artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor) já advertiria os litigantes sobre essa probabilidade. Assim, não há que se falar

em “julgamento surpresa”, pois tanto o consumidor, quanto o fornecedor, principalmente,

já saberiam, de antemão, que o juiz, no caso de insuficiência ou inexistência de provas, poderá inverter o ônus da prova na decisão final105. No mais, a redistribuição da carga probatória em momento anterior poderia configurar um prejulgamento, comprometendo a imparcialidade do magistrado.

Os pontos negativos desse posicionamento são justamente os que lhe dão sustentação. Com efeito, a função objetiva do ônus da prova não apresenta maior relevância do que a função subjetiva. Como anteriormente analisado e defendido, a regra de julgamento (ônus da prova objetivo), na maioria dos casos, apenas incide porque a regra de conduta das partes (ônus da prova subjetivo) não foi repartida de forma efetiva. Assim, caso distribuída corretamente a carga probatória entre as partes, de acordo com suas reais possibilidades de produção da prova, certamente não haveria necessidade de aplicação da

104“Entretanto, é orientação assente na doutrina que o ônus da prova constitui regra de julgamento e, como

tal, se reveste de relevância apenas no momento da sentença, quando não houver prova do fato ou for ela insuficiente. Diante disso, somente após o encerramento da instrução é que se deverá cogitar da aplicação

da regra da inversão do ônus da prova” (LOPES, João Batista, A prova no direito processual civil, p. 51); “O momento adequado à inversão judicial do ônus da prova é aquele em que o juiz decide a causa (Barbosa

Moreira). Antes, sequer ele sabe se a prova será suficiente ou se será necessário valer-se das regras ordinárias sobre esse ônus, que para ele só são relevantes em caso de insuficiência probatória” (DINAMARCO, Cândido Rangel, Instituições de Direito Processual Civil, vol. 3, p. 81).

105“Nem poderá o fornecedor alegar surpresa, já que o benefício da inversão está previsto expressamente no

texto legal” (LOPES, João Batista, A prova no direito processual civil, p. 51). Interessante a posição

defendida por Cândido Rangel Dinamarco, no sentido de que, a despeito de o momento adequado para inversão judicial do ônus probatório ser durante o julgamento, caso o juiz pretenda redistribuir a carga,

deverá advertir as partes sobre essa possibilidade: “Se o juiz pretender inverter o ônus da prova, como em

certa medida lhe permite o Código de Defesa do Consumidor em relação às causa que disciplina (art. 6º, inc. VIII), dessa possibilidade advertirá as partes na audiência preliminar. Mas a efetiva inversão só acontecerá no momento de julgar a causa, pois antes ainda não se conhecem os resultados mais conclusivos ou menos conclusivos a que a instrução probatória conduzirá; a própria verossimilhança das alegações do consumidor, eventualmente sentida pelo juiz em algum momento inicial do procedimento, poderá ficar prejudicada em face das provas que vierem a ser produzidas e alegações levantadas pelo adversário” (Instituições de Direito Processual Civil, vol. 3, p. 84).

regra de julgamento, pois, com maior facilidade, a prova necessária ao deslinde da demanda seria produzida.

No mais, analisar a questão da inversão judicial do ônus da prova apenas no momento do julgamento, de fato, surpreende as partes. Com efeito, desconhecendo a parte deter a carga probatória acerca de determinada alegação a ser provada, evidente que não irá produzir tal prova, pois não há interesse para tanto. Não se pode sustentar que as partes tenham o dever de produzir todas as provas que estão ao seu alcance, ainda que sejam contrárias aos seus interesses processuais, pois não se trata de dever, mas, sim, de ônus processual106.

Inverter o ônus da prova na fase de instrução probatória não configura prejulgamento, nem prejudica a imparcialidade do juiz, na medida em que não se sabe, previamente, qual prova será produzida pela parte e qual valor probatório será dado pelo magistrado (valoração da prova produzida). A prova produzida pela parte onerada em razão da redistribuição da carga pode, perfeitamente, ser apta a resultar julgamento em seu favor107.

Diante dessas considerações, há quem sustente que a inversão judicial do ônus da prova deva ser aplicada logo no momento da postulação, na análise da petição inicial pelo juiz. Assim, não haveria configuração de “surpresas processuais” para as partes108. No entanto, a nosso ver, não há como o magistrado analisar a pertinência da inversão sem a fixação do thema probandum.

106“Reservar a inversão do ônus da prova ao momento da sentença representa uma ruptura com o sistema do

devido processo legal, ofendendo a garantia do contraditório. Não se pode apenar a parte que não provou a

veracidade ou inveracidade de uma determinada alegação sem que se tenha conferido a ela a oportunidade de fazê-lo (lembre-se que o ônus subjetivo acaba por condicionar a atuação processual da parte). Por outro lado, exigir que o fornecedor, apenas por vislumbrar uma possível inversão do ônus da prova em seu desfavor, faça prova tanto dos fatos impeditivos, extintivos ou modificativos que eventualmente alegar, como da inexistência do fato constitutivo do direito do consumidor, é tornar legal a inversão que o legislador quis que fosse judicial (tanto que exigiu o preenchimento, no caso concreto, de certos

requisitos)” (DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael, Curso de Direito Processual Civil: Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela, p. 87).

107“Com isso, não haveria uma espécie de prejulgamento da causa, porque o ato judicial, que determina a

inversão do onus probandi, apenas declara existente uma das situações que autorizam a aplicação do art. 6º,

inc. VIII, CDC, não impedindo que, após concluída a fase instrutória, o juiz decida a favor do fornecedor”

(CAMBI, Eduardo, A prova civil: admissibilidade e relevância, p. 418); “Caso o juiz, antes da sentença, profira decisão invertendo o ônus da prova (v.g., CDC 6º VIII), não estará, só por isso, prejulgando a causa. A inversão, por obra do juiz, ao despachar a petição inicial ou na audiência preliminar (CPC 331), por

ocasião do sanemamento do processo (CPC 331 § 3º), não configura por si só motivo de suspeição do juiz”

(NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade, Código de Processo Civil Comentado e

legislação extravagante, p. 608).

108“Contudo, entendo que o autor consumidor deverá já na inicial requerer a inversão do ônus da prova, e

desta forma a fase processual em que o juiz deverá se manifestar sobre a questão será no ato do primeiro despacho, que não se trata de mero despacho determinante de citação, mas decisão interlocutória, passível

Com efeito, para proceder à inversão judicial, deve ser verificado pelo juiz se o ponto foi controvertido, se há reconhecimento jurídico do pedido, se há revelia ou confissão ficta sobre matéria de fato, enfim, deve ser analisado se há controvérsia e sobre quais pontos ela recai. Isso porque, não há necessidade de inverter o ônus da prova acerca de alegação que não precisa ser provada. E essas questões apenas podem ser verificadas após a apresentação, ou não, de defesa pelo réu, prejudicando, portanto, a inversão judicial logo no momento de análise da petição inicial109.

A posição que vem ganhando maior destaque, inclusive na jurisprudência110, e que nos parece a mais correta, é a de que o momento processual adequado para se proceder à inversão judicial do ônus da prova é a fase de saneamento do processo, em que o magistrado fixa os pontos controvertidos, decide as questões processuais pendentes e determina as provas a serem produzidas, nos termos dos parágrafos 2º e 3º, do artigo 331, do Código de Processo Civil111.

Proceder à inversão judicial em momento anterior à decisão final significa estimular a atividade probatória das partes, organizando, de acordo com o caso concreto, a partir das reais condições dos litigantes, a distribuição da carga probatória. Fomenta-se, pois, a função subjetiva do ônus da prova, como regra de conduta das partes.

A inversão judicial operada na fase de saneamento do feito facilita a produção da prova, tornando mais provável que, ao final, o juiz tenha elementos suficientes para proferir decisão de acordo com provas efetivamente produzidas, mais condizente com

portanto de recurso de agravo” (NOGUEIRA, Tania Lis Tizzoni, Direitos básicos do consumidor: a

facilitação da defesa dos consumidores e a inversão do ônus da prova, p. 59).

109“Aqui também não há como acolher essa tese pelo simples fato de o juiz ainda não conhecer os pontos

controvertidos da demanda, que irão se concretizar após a resposta do réu, o que impossibilita um juízo de

valor sobre a questão” (SILVA, Bruno Freire e, A inversão judicial do ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor, p. 19).

110

O Superior Tribunal de Justiça, em recentes julgados, tem se posicionado nesse sentido: REsp n. 802.832- MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 13.04.2011 (Informativo n. 0469, de 11 a 15 de abril de 2011); EREsp n. 422.778-SP, Rel. para acórdão Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 29.02.2012 (Informativo n. 0492, de 27 de fevereiro a 9 de março de 2012).

111“A inversão do ônus da prova, para poder dar efetividade às garantias constitucionais contidas na regra do

art. 5º, inc. LV, CF, deve ser realizada, durante a fase de saneamento do processo, precisamente no momento da audiência preliminar, quando o juiz deve fixar os pontos controvertidos (art. 331, § 2º, CPC),

quando houver ou no ‘despacho’ saneador (art. 331, § 3º, CPC). Tanto, mesmo que, posteriormente, o juiz

se dê conta de que deveria inverter o ônus da prova (inclusive, no momento da sentença), deverá dar oportunidade para que o fornecedor se manifeste e, se necessário, exercite o seu direito à prova contrária” (CAMBI, Eduardo, A prova civil: admissibilidade e relevância, p. 420); “Toda a temática relativa ao ônus da prova, inclusive as hipóteses de sua inversão – máxime se aceita a referida ‘teoria dinâmica’ -, seja ela convencional ou legal, deve ser entendida como regra de procedimento e não como regra de julgamento. Como é o magistrado o destinatário da prova, é importante que ele verifique com cada uma das partes as

reais possibilidades de produção das provas de suas alegações em casos em que haja a possibilidade de variação das regras gerais (estáticas) dos incisos do art. 333” (BUENO, Cassio Scarpinella, Curso Sistematizado de Direito Processual Civil: Procedimento comum: procedimento ordinário e sumário, p.

a realidade, e não com base em regras formais e abstratas de julgamento, apenas para evitar o non liquet. Fomenta-se, portanto, o escopo social do processo, e não apenas o jurídico.

Assim, parece-nos que, como regra de conduta das partes, a inversão judicial do ônus da prova deve ser aplicada no momento de saneamento do processo, dando aos litigantes a possibilidade de produzirem provas tendo conhecimento claro acerca da distribuição da carga probatória operada pelo juiz naquele caso concreto.