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Princípio da igualdade material no processo

4. DISTRIBUIÇÃO DINÂMICA DO ÔNUS DA PROVA: ASPECTOS GERAIS

4.3. Fundamentos para aplicação da distribuição dinâmica do ônus da prova no Direito

4.3.2. Princípio da igualdade material no processo

O princípio da igualdade tem assento constitucional, podendo ser verificado no artigo 3º, incisos III e IV (determinando como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a redução das desigualdades sociais e regionais e a proibição de quaisquer formas de discriminação), artigo 5º, caput e inciso I (fixando a igualdade de todos perante a lei e a igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres), artigo 7º, incisos XXX, XXXI e XXXII (estabelecendo a proibição de

216 “À vista de determinados casos concretos, pode se afigurar insuficiente, para promover o direito

fundamental à tutela jurisdicional adequada e efetiva, uma regulação fixa do ônus da prova, em que se reparte prévia, abstrata e aprioristicamente o encargo de provar. Em semelhantes situações, tem o órgão jurisdicional, atento à circunstância de o direito fundamental ao processo justo implicar direito fundamental à prova, dinamizar o ônus da prova, atribuindo-o a quem se encontre em melhores condições de provar” (MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel, Código de Processo Civil comentado artigo por

artigo, p. 335).

217 “Referir-se, por tais razões, a uma ‘inversão judicial’ do ônus da prova, visando a uma melhor

concretização do sistema processual civil à luz do ‘modelo constitucional’, não é nada despropositado,

muito pelo contrário. Máxime em se aceitando, como é correto, a existência de uma verdadeiro ‘direito fundamental à prova’ e à necessidade de o magistrado criar condições prévias de as partes produzirem a prova que lhes é determinada” (BUENO, Cassio Scarpinella, Curso Sistematizado de Direito Processual Civil: Procedimento comum: procedimento ordinário e sumário, p. 284-285).

discriminações nas relações de trabalho), e nos artigos 170, 193, 196 e 205, todos da Constituição Federal218.

O princípio constitucional da igualdade se revela sob dois prismas: a igualdade formal e a igualdade material (ou substancial). A igualdade formal pode ser compreendida como a mera igualdade perante a lei, prevista no artigo 5º, caput, do texto

constitucional, “no sentido de que a lei e sua aplicação tratam a todos igualmente, sem

levar em conta as distinções de grupos219”. Já a igualdade material teria como fundamento o tratamento desigual dos sujeitos desiguais no âmbito de um determinado grupo social, considerando suas desigualdades específicas, suas especificidades sociais, buscando, assim, a igualdade com os demais sujeitos. Assim, a igualdade material necessita de uma atuação positiva, conferindo aos sujeitos desiguais, na medida de suas desigualdades, condições materiais de equivalência para com os demais sujeitos.

A igualdade material não se revela apenas sob o aspecto subjetivo, quanto aos sujeitos envolvidos, mas, também, sob o aspecto objetivo, quanto aos bens jurídicos relacionados. Com efeito, a Constituição Federal determina especial proteção a direitos e interesses metaindividuais, os quais, em razão da transcendência em relação aos indivíduos, merecem tratamento diferenciado. Nesse sentido, podem ser citadas as normas voltadas à proteção do meio ambiente, da criança e do adolescente, do idoso e dos índios (artigos 225 a 232 da Constituição Federal).

A Constituição Federal Brasileira possui normas tanto de igualdade formal (artigo 5º, caput) quanto de igualdade material (artigo 7º, inciso XXX, e artigo 170), procurando aproximar essas vertentes220.

Diante de sua natureza constitucional, o princípio da igualdade se irradia por todo o ordenamento jurídico, inclusive sobre o Direito Processual. Assim, as normas processuais também devem ser estruturadas, interpretadas e aplicadas de acordo com os ditames do referido preceito fundamental, sob pena de inconstitucionalidade.

Na relação jurídica processual, o princípio constitucional da igualdade se revela com princípio da igualdade das partes, dirigido tanto ao legislador quanto ao juiz. Sob esse prisma, legislador e juiz devem não apenas tratar as partes de modo igualitário, sem qualquer distinção ou favorecimento (igualdade formal), mas, também, e acima disso, se utilizarem de mecanismos processuais que reduzam as diferenças substanciais entre as

218

SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 211-212.

219 SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 214. 220 SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 215.

partes, a partir de suas desigualdades específicas - muitas vezes oriundas de aspectos extraprocessuais -, buscando o equilíbrio real entre as partes (igualdade material), sob pena de inviabilizar o próprio exercício efetivo do direito fundamental de acesso à justiça.

O princípio isonômico, ditado pela Constituição em termos de ampla generalidade (art. 5º, caput, c/c art. 3º, inc. IV), quando penetra no mundo do processo assume a conotação de princípio da igualdade das partes. Da efetividade deste são encarregados o legislador e o juiz, aos quais cabe a dúplice responsabilidade de não criar desigualdades e de neutralizar as que porventura existam. (...) Essas desigualdades que o juiz e o legislador do processo devem compensar com medidas adequadas são resultantes de fatores externos ao processo – fraquezas de toda ordem, como a pobreza, desinformação, carências culturais e psicossociais em geral. Neutralizar as desigualdades significa promover a igualdade substancial, que nem sempre coincide com uma formal

igualdade de tratamento porque esta pode ser, quando ocorrentes essas

fraquezas, fontes de terríveis desigualdades. A tarefa de preservar a isonomia consiste, portanto, nesse tratamento formalmente desigual que substancialmente iguala221.

O artigo 125, inciso I, do Código de Processo Civil222 positiva o princípio da igualdade das partes, sendo considerado mecanismo processual apto à neutralização das desigualdades na relação jurídica processual223.

Em algumas situações, a aplicação da regra de distribuição estática do ônus da prova, atribuindo a carga probatória à parte que não detenha condições materiais, financeiras, técnicas, sociais e informacionais de produzir prova que lhe favoreça, sendo que a parte contrária possui essas condições, viola diretamente o princípio de igualdade material no processo, inviabilizando a adequada tutela processual do direito material.

221

DINAMARCO, Cândido Rangel, Instituições de Direito Processual Civil, vol. 1, p. 227-228. Nesse mesmo sentido, José Afonso da Silva: “O outro prisma da igualdade e da Justiça manifesta-se quando a lei cria situações de desigualdades em confronto concreto com outras, que lhes sejam iguais, como o dispositivo que trata de forma desigual a entes que devam litigar em igualdade de condições. (...) A realização da igualdade perante a justiça, assim, exige a busca da igualização de condições dos desiguais, o que implica conduzir o juiz a dois imperativos, como observa Ingber: de um lado, cumpre-lhe reconhecer a existência de categorias cada vez mais numerosas e diversificadas, que substituem a ideai de homem, entidade abstrata, pela noção mais precisa de indivíduo caracterizada pelo grupo em que se insere de fato; de outro lado, deve ele apreciar os critérios de relevância que foram adotados pelo legislador” (Curso de

Direito Constitucional Positivo, p. 219-220).

222 Art. 125. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe: I - assegurar

às partes igualdade de tratamento.

223“A leitura adequada do art. 125, inc. I, do Código de Processo Civil, mostra que ele inclui entre os deveres

primários do juiz a prática e preservação da igualdade entre as partes, ou seja: não basta agir com igualdade em relação a todas as partes, é também indispensável neutralizar desigualdades” (DINAMARCO, Cândido Rangel, Instituições de Direito Processual Civil, vol. 1, p. 227). Nesse sentido, também, José Roberto dos Santos Bedaque (Poderes instrutórios do juiz, p. 97-107) e José Carlos Barbosa Moreira (La

A técnica processual de distribuição dinâmica do ônus da prova tem como escopo justamente a correção dessas distorções, apresentando como fundamento, portanto, o princípio da igualdade material no processo224.

De fato, a maior preocupação de uma distribuição dinâmica é atribuir o ônus da prova àquela parte que detenha a melhor condição de produzir a prova de determinada alegação, estabelecendo uma relação de igualdade material entre os sujeitos processuais, na medida em que aquela que detenha a melhor condição seja a incumbida do ônus de provar.

A transferência do ônus probatório, portanto, vai ao ensejo da tutela do direito fundamental à igualdade substancial das partes no processo: se a produção da prova é muito difícil ao autor e, em contrapartida, encontra-se melhor ao alcance do réu, apenas com a dinamização dos ônus probatórios é que será possível a adequada e efetiva tutela jurisdicional. Caso fosse mantida a distribuição estática prevista no art. 333 do CPC, resplandeceria a inconstitucionalidade do procedimento probatório, por manifesta violação ao art. 5º, XXXV, da Constituição, que outorga o direito fundamental de acesso à justiça mediante a observância da igualdade substancial de participação das partes no aporte da prova destinada à formação da convicção do órgão judicial.

A dinamização, in casu, revela-se técnica para a conformação constitucional do

procedimento probatório, quando o modelo básico ditado pela lei, em face das

peculiaridades do caso concreto, não se ajusta aos preceitos constitucionais. (...) Mais: considerando que ao juiz, ao teor do que predispõe a Constituição e o próprio Código de Processo Civil em seu art. 125, I, é imposto o dever de

“assegurar às partes igualdade de tratamento”, revela-se cristalino que se trata de

verdadeiro dever do órgão judicial a utilização da técnica da dinamização dos ônus probatórios, quando verificada a dificuldade de acesso à prova pela parte onerada em detrimento da facilidade da outra.

Nessa quadra, em possuindo uma das partes melhores condições de provar, segundo as circunstâncias materiais do caso concreto, a dinamização funciona como filtro isonômico do direito fundamental à prova: o exercício desse direito é ajustado em concreto, evitando tratamento discriminatório a qualquer das partes na sua atividade probatória em face da distribuição estática positivada na lei225.

224“É a situação de desigualdade frente à produção da prova que condiciona a aplicação da dinamização do

ônus probatório, de sorte a transferir o fardo de provar para a contraparte, quando esta dispõe de melhores condições. Se a lei processual não é capaz de, no caso concreto, proporcionar essa situação de igualdade, sua conformação deve se dar através da interpretação pelo sistema, principalmente amparada nas diretrizes

indicadas pela Constituição” (CARPES, Artur Thompsen, A distribuição dinâmica do ônus da prova no formalismo-valorativo, p. 16). Thaís Bazzaneze sustenta que, no caso específico do ônus da prova, haveria

a distinção entre igualdade estática e igualdade dinâmica, sendo esta última atinente à teoria da distribuição dinâmica das cargas probatórias: “Quanto à primeira ordem de fundamentação, a teoria prima pela igualdade dinâmica das partes, ou seja, pela igualdade de condições, a fim de afastar a desigualdade que nutre a igualdade meramente formal ou estática. (...) Logo, repise-se, a teoria da carga probatória dinâmica objetiva a igualdade dinâmica e não a igualdade estática da regra clássica do ônus da prova” (Distribuição dinâmica dos ônus probatórios: análise à luz do devido processo legal e do acesso à justiça, p. 70).

É exatamente este o ponto de distinção em relação à regra de distribuição estática, a qual pressupõe, de maneira formal e abstrata, uma igualdade de partes que, no caso concreto, muitas vezes não se revela (igualdade formal no processo).

Portanto, o princípio de igualdade material das partes na relação jurídica processual, o qual tem origem no princípio constitucional da igualdade, fundamenta a aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova no Direito Processual Brasileiro.