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4. DISTRIBUIÇÃO DINÂMICA DO ÔNUS DA PROVA: ASPECTOS GERAIS

4.2. Origens históricas e Direito Comparado

Como afirmado anteriormente, a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova foi reavivada pela doutrina processual argentina, no final do Século XX. Nesse sentido, merece destaque o trabalho realizado pelo jurista Jorge W. Peyrano (Teoría de las

Cargas Probatorias Dinámicas) que, com base na teoria de James Goldshimidt acerca da

situação jurídica processual, promoveu a sistematização e o delineamento das linhas mestras da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova.

Destacam-se, também, os trabalhos mais recentes de Augusto M. Morello, defendendo uma visão solidarista do ônus de provar, de modo que a incidência do princípio da solidariedade e da cooperação entre as partes resulta na obrigação de os litigantes produzirem a prova de suas alegações.

No entanto, as teorias acerca da relativização das regras de distribuição das cargas probatórias já eram debatidas muito antes disso.

199

Carlos Roberto Barbosa Moreira chega a afirmar que a referida norma atribui vantagem processual ao consumidor, consubstanciada na dispensa, na isenção do ônus de provar, enquanto que ao réu é criado novo ônus probatório (Notas sobre a inversão do ônus da prova em benefício do consumidor, p. 296).

Com efeito, pode-se apontar o trabalho de Gian Micheli (L’Onere della

Prova) que, discordando do posicionamento defendido por Betti, Carnelutti e Chiovenda,

para os quais o autor deve provar os fatos que fundamentam sua pretensão, enquanto que ao réu cabe provar os fatos que embasam sua exceção, sustenta que a distribuição do ônus da prova deve ser feita por meio de uma valoração dinâmica, em substituição a uma concepção estática e abstrata.

Com grande importância para o tema, ressalta-se a teoria desenvolvida por Jeremy Bentham (Tratado de las pruebas judiciales), segundo a qual o ônus de produção da prova deve ser imposto, em cada caso concreto, à parte que detenha melhores condições de fazê-la, com menos delongas, vexames e despesas.

Essa posição teria sido seguida e aperfeiçoada por René Demogue, o qual fundamentou no princípio da solidariedade entre as partes a imputação, em cada caso concreto, da obrigação de produção da prova à parte que possa desempenhar tal encargo com menos incômodo200.

No início do Século XX, na Alemanha, o BGB, em seus parágrafos 282, 285, 831, 891 e 892, já fazia menção expressa à distribuição dinâmica dos encargos probatórios, ao adotar o instituto do Beweisumkehr, o qual nada mais significava que o trânsito cambiante da prova. A tese foi acolhida pelo Supremo Tribunal de Justiça Alemão, em casos de responsabilidade médica com culpa gravíssima, responsabilidade em matéria de consumidores, de esclarecimento e informação nos negócios jurídicos, no Direito do Trabalho e nos litígios envolvendo contratos financeiros e questões ambientais201.

Com base nos ensinamentos de Hanns Prütting, CARLOS ALBERTO

CARBONE é categórico ao afirmar que “desde sempre foi conhecida a carga probatória

dinâmica na Alemanha202”.

Ressalta-se, também, que, no ordenamento jurídico espanhol, há muito se tem aplicado a distribuição dinâmica dos encargos probatórios. Nesse sentido, o Tribunal Supremo da Espanha, reconhecendo a insuficiência da regra de distribuição estática do ônus da prova prevista no artigo 1.214 do Código Civil Espanhol, e sustentando uma verdadeira obrigação de as partes colaborarem com o Poder Judiciário na busca da verdade

200 Para um maior aprofundamento acerca do tema: DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA,

Rafael. Curso de Direito Processual Civil: Teoria da prova, direito probatório, teoria do precedente,

decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela, p. 95; DALL’AGNOL JUNIOR,

Antonio Janyr, Distribuição dinâmica dos ônus probatórios, p. 97-100; ZANFERDINI, Flávia de Almeida Montingelli; GOMES, Alexandre, Cargas probatórias dinâmicas no Processo Civil brasileiro, p. 18-19.

201

CREMASCO, Suzana Santi, A distribuição dinâmica do ônus da prova, p. 69.

202 CARBONE, Carlos Alberto, Cargas probatorias dinámicas: una mirada al derecho comparado y

real e no alcance de um processo justo, passou a flexibilizar a regra, com destaque para as demandas envolvendo concorrência desleal e publicidade ilícita, e, no âmbito do processo do trabalho, despedidas discriminatórios e violadoras de direitos fundamentais203.

Com a reforma da Ley de Enjuiciamiento Civil Española, em 2000, a Lei n. 1/2000 alterou o seu artigo 217, prevendo, expressamente, a possibilidade de aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, com base no critério da melhor possibilidade para produção da prova. No entanto, a regra de distribuição estática permaneceu, sendo a dinâmica aplicada de maneira complementar e subsidiária204.

Com base no pressuposto firmado pela jurisprudência espanhola de que

“la prueba debe exigirse de quien la pueda tener normalmente a su disposición; hay datos

de hecho fáciles de probar para una de las partes que, sin embargo, pueden ser o resultar de difícil acreditamiento para la otra”, CARLOS ALBERTO CARBONE destaca os delineamentos gerais da teoria da distribuição dinâmica naquele ordenamento205.

Quanto ao ordenamento argentino, temos que, em julgado da Corte

Suprema de Justicia de La Nación, de 1957, identifica-se precedente jurisprudencial acerca

da aplicação da teoria dinâmica de distribuição dos ônus probatórios. No caso, o Tribunal impôs a um funcionário público o ônus de comprovar a ilegitimidade de seu enriquecimento, sob o argumento de que ele estaria em melhores condições do que o Estado de produzir a prova a respeito206.

No entanto, apenas no início da década de 1990, após Congressos realizados entre juristas argentinos (Quintas Jornadas Bonaerenses de Derecho Civil, Comercial, Procesal e Informático, em 1992; XVIII Congresso Nacional de Derecho Procesal, em 1993), é que o tema ganhou destaque na doutrina daquele país.

Nesse contexto, em 1997, tendo como base um caso envolvendo responsabilidade civil por erro médico, a Corte Suprema de Justicia de La Nación novamente aplicou a teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova, determinando incumbir ao cirurgião e ao hospital a comprovação da adequação e da correção dos procedimentos utilizados durante a cirurgia, entendendo que estas partes teriam as melhores condições de produzir a prova das alegações.

203

GARCÍA PERROTE-ESCARTÍN, Ignacio, La prueba en el proceso de trabajo, p. 167.

204

CREMASCO, Suzana Santi, A distribuição dinâmica do ônus da prova, p. 69-70.

205Tradução sugerida: “A prova deve ser exigida de quem possa ter normalmente sua disposição: fatos fáceis

de serem provados por uma parte, sem embargo, podem resultar em difícil comprovação para a outra”

(Cargas probatorias dinámicas: una mirada al derecho comparado y novedosa ampliación de su campo de

acción, p. 183).

No campo legislativo, o artigo 377 do Código Argentino de

Procedimiento Civil y Comercial para La Nación adotou a regra de distribuição estática

dos ônus probatórios: “a la parte que afirme la existencia de un hecho controvertido o de un precepto jurídico que el juez o el tribunal no tenga el deber de conocer. Cada una de las partes deberá probar el presupuesto de hecho de la norma o normas que invocare como fundamento de su pretensión, defensa o excepción207”. No entanto, alguns diplomas legislativos de determinadas provinciais, como o Código Procesal Civil y Comercial de La

Provincia de La Pampa, já adotam a teoria da carga dinâmica, assim como o Proyecto del Código de la República Argentina Unificado con el Código del Comercio.

JORGE W. PEYRANO sintetiza o conceito da teoria de distribuição dinâmica do ônus da prova:

La llamada doctrina de las cargas probatorias dinámicas puede y debe ser utilizada por los estrados judiciales en determinadas situaciones en las cuales no funcionan adecuada y valiosamente las previsiones legales que, como norma, reparten los esfuerzos probatorios. La misma importa un desplazamiento del

onus probandi, según fueren las circunstancias del caso, en cuyo mérito aquél

puede recaer, verbigracia, en cabeza de quien está en mejores condiciones técnicas, profesionales o fácticas para producirlas, más allá del emplazamiento como actor o demandado o de tratarse de hechos constitutivos, impeditivos, modificativos o extintivos208.

Note-se que não há negação de aplicação da distribuição legal do ônus probatório. Apenas se defende uma distribuição mais justa, mais equânime, que restabeleça a igualdade material entre as partes, em casos específicos, nos quais a incidência da regra geral resulta em verdadeira probatio diabolica.

Corroborando com o quanto defendemos anteriormente acerca do momento processual adequado para incidência da inversão judicial do ônus da prova, (configurando-se como regra de atividade, deve ser invertido antes do julgamento, dando

207Tradução sugerida: “A parte que afirme a existência de um fato controvertido ou de um preceito jurídico

que o juiz ou o Tribunal não tenha o dever de conhecer. Cada uma das partes deverá provar o pressuposto

de fato da norma ou normas que invocar como fundamento de sua pretensão, defesa ou exceção”.

208Tradução sugerida: “A chamada teoria das cargas probatórias dinâmicas pode e deve ser utilizada pelos

órgãos jurisdicionais em determinadas situações em que não funcionam valiosa e adequadamente as previsões legais que, como norma, repartem os encargos probatórios. A mesma importa em deslocamento do onus probandi, segundo forem as circunstâncias do caso, em cujo mérito aquele pode recair, verbi

gratia, na cabeça de quem está em melhores condições técnicas, profissionais ou fáticas para produzi-las,

para além do seu posicionamento como autor ou réu, ou de tratar-se de fatos constitutivos, impeditivos,

às partes efetiva possibilidade de se desincumbirem do ônus processual com a produção da prova sob este pressuposto), discordamos do posicionamento da doutrina argentina no sentido de que a distribuição dinâmica deva ser aplicada apenas no momento do julgamento209.

A técnica de distribuição dinâmica do ônus da prova não pode ser vista como regra de julgamento, na medida em que caracterizada como instrumento de direcionamento da conduta das partes na fase instrutória. Com efeito, o que se pretende com a distribuição dinâmica das cargas probatórias é justamente estimular as partes a trazerem aos autos as provas das alegações, possibilitando que a decisão final se aproxime da verdade real, e não a criação de mais uma regra abstrata de julgamento, a qual o juiz se vê obrigado a aplicar diante da falta ou da insuficiência do material probatório.

Além disso, por se tratar de exceção à regra geral de distribuição legal- estática dos ônus probatórios, as partes devem estar cientes de sua aplicação o quanto antes, não podendo ser surpreendidas com a incidência no momento do julgamento. Deve- se assegurar que a parte, à qual, inicialmente, não era atribuído o ônus probatório, possa dele se desincumbir, utilizando-se de todos os meios legais admitidos, em momento processual oportuno para tanto.

4.3. Fundamentos para aplicação da distribuição dinâmica do ônus da