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Uns estudantes vêm, outras estudantes vão, vários acenam e mandam beijos A maioria é de uma turma que me deu muito

trabalho. Muito! Não imaginava que um dia eles me nutririam com

risadas e ficariam sentados no sol quente me vendo costurar...

o tempo! Tempo na escola é coisa muito séria. E cada uma/um

sabe disso. Finalizei a palavra artista. Não ficou bonita nem

bem acabada. Ficou legível, possível de ser. Possível de ser vista.

Ali, me misturo, me integro, sou em mim o que preciso ser. Sem

nenhuma obrigação com o tempo, pude olhar, rir, ouvir, trocar,

estar junto. E por que não sempre? Vou caminhando para a quadra,

após abraços e agradecimentos. De Corina, principalmente.

A palavra organização fica evidente novamente. A escola como espaço organizacional, como lugar de produtividade, de bom desempenho, de quantificação, de competição, como lugar onde uma arte tem que ser organizada. São narrativas de uma educação que entende a pessoa, e, portanto, o corpo, como alguém que tem que aprender algo que lhe sirva para o futuro.

O espaçotempo de quem narra uma história, de quem conta um conto, da narratriz que narra a educação e sente a arte, que sente a arte e narra a educação,

tudo ao mesmo tempo, sem essa separação que só é possível na junção das palavras nestas frases, frases e palavras escolhidas, recolhidas, por quem deseja

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 123 percorrer outros caminhos diferentes dos que são apontados pela organização. É o instante partilhado que se almeja, é o encontro olho no olho, corpos em porosa relação. E o que aprendi como narradora, nas formações que vivenciei e também nas performances em que narrei, impregnaram meu corpo de como se dá esse encontro, de como o instante de dizer junto proporciona um dizer sobre mim e sobre a/o outra/o. Foi isso que aconteceu neste dia, na Performance Costurando o tempo, no CAp UFPE. Uma performance art criada a partir das minhas vivências como contadora de histórias para acionar a escuta e experiência de um tempo diferente do que geralmente se tem no cotidiano desta escola. Eu arrisco dizer que o que vivi nesta pesquisa está no espaço entre a performance art e a performance narrativa, nome criado para estudar o acontecimento que se dá

ao contar uma história para uma plateia18.

Me senti no tempo descotidiano, com meu corpo vivendo encontros verdadeiros e com outros corpos presentes na troca, mas não só, também houve o momento de não me sentir parte, de sentir o desconforto de não haver tempo para este acontecimento, sendo levada ao estreito lugar em que a velha anciã fia sua roca, como nas histórias, como na vida. Senti o dedo furar quando não fui vista e o sangue escorrer seguido do corpo em estado de sono, um momento de imersão e perguntas, de conexão comigo mesma para tomar as decisões e finalizar ou seguir em performance. Será que é possível tomar essa decisão? Ou só trocamos a performance em que estamos inseridas? Senti o dedo furar quando fui vista com pressa, quando houve conversa, mas não houve escuta, quando eu não consegui ouvir, me entregar para a proposta que eu mesma estava fazendo. Assim, me lembro quando sou eu que vejo rapidamente, sinto com pressa e sou 18 - Uma discussão mais detalhada sobre a performance art e a performance narrativa está feita no Ensaio 4.

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quem não tem tempo. Quem chega correndo na escola e sai carregada de papéis, cadernetas, horários de reuniões, horário reduzido de almoço, pensamento cheio e acelerado, corpo que é narrado por um tempo externo, imposto pela rotina, que não se escuta e não consegue escutar. Costuro, então, neste momento um terceiro fio para a narratriz criar consigo, com Escola, com educação:

fio 3- manter-se conectada com o que quer narrar, mas sem

deixar de sentir e ser com quem a atravessa.

Vou...

Não me senti numa performance (aspas!) me senti em aula, não “dando uma aula”, talvez por não ter uma avaliação a ser feita, por não ter obrigações. (aspas!) Por não estar cumprindo conteúdos ou planejamento. (aspas!) Penso que estava em trânsito. Eu sabia o programa da performance, estou agora registrando, eu sabia o contexto, sabia que para alguém faria sentido, principalmente para as/os estudantes mais velhos de teatro. Por quê? O que quero dizer com dar aula? Sigo as costuras, sigo meu rastro, e não me sai da cabeça a frase dita por um professor após indagar incessantemente sobre o que era aquilo, dentre outras coisas insistindo para que eu lhe contasse sobre o mestrado. Repito para ele: — Estou costurando o tempo! Isto aqui é o mestrado! Ele, então, se afastando, me diz:

CUIDADO PARA NÃO FURAR OS DEDOS!

- NÓS MULHERES FURAMOS O DEDO E O CORPO TODO, O TEMPO TODO! São muitas as rocas espalhadas, pelas escadarias, pelos labirintos, nas salas de reuniões, nas secretarias, nas impressoras e nas impressões. Manter-se

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 125 conectada é uma grande conquista, manter-se conectada com a história que quero narrar é maior ainda. Quero narrar uma história feminista, da luta das mulheres para construir um mundo mais justo. Quero narrar histórias que deem conta da diversidade do mundo, inclusive com fatos considerados machistas, num viés feminista, assumindo um modo de narrar que não deixe as mulheres paradas em situações e fatos como esse, mas que sejam impulso para seguir, movimento coletivo de como ser e estar no mundo resistindo, contando sua própria história, sem deixar de sentir e ser com quem a atravessa. (Sem deixar de sentir!)

Onde está o tempo do sentir na escola? Em que paredes ele se esconde? Em que abraços se cria? A narratriz sente com o corpo todo, narra com o corpo todo, é o corpo todo, sente a palavra nascer de seus pelos e pele, de sua boca e voz, de seus órgãos internos, de braços abertos olhando cada pessoa no olho ou caminhando até alguém e dando as mãos caso a pessoa não enxergue. Ela/ eu sou composta dos meus sentidos e desejos mais intensos, da abertura livre para me conectar com quem quer criar uma outra forma de existir, que escolha o afeto como guia e devolver o que não é meu na mesma proporção. Ou gritar alto dentro do meu labirinto para que eu mesma escute, trazendo a imagem de Sandra Corazza (2007,p. 106).

Uma narratriz faz um pacto consigo de criar espaçostempos para a narrativa

com o corpo, em performances (art/ou narrativas) que tem como desejo maior realizar encontros verdadeiros, com os fios trazidos pelas outras pessoas que estão no espaço com ela, recriando o pacto no momento em que é instaurada a comunidade narrativa, em que o ritual acontece.

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Ensaio 04

NÓS DE NÓS: CORPOPALAVRA EM