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2 COLABORAÇÕES DE DOMINIQUE MAINGUENEAU NA ANÁLISE DO

2.5 Cenografia

2.5.1 Ethos

A questão do ethos é abordada em diversos trabalhos de Maingueneau (2001, 2006, 2008a, 2011, 2013), nos quais o pesquisador expõe a problemática relacionada à estabilização dessa noção – que está articulada à cena de enunciação – e propõe uma definição de ethos como uma categoria analítica dentro do domínio da Análise do Discurso.

O conceito de ethos, na Análise do Discurso, é retrabalhado e vai além de como era entendido na visão da retórica aristotélica. Maingueneau (2001, 2006, 2008a, 2011, 2013) apresenta uma interpretação do quadro de empregos do ethos, como era entendido por Aristóteles, com o propósito de identificar o grau de interesse dessa categoria para os estudos do discurso. O pesquisador admite a inviabilidade de uma estabilização definitiva dessa noção, que deve ser apreendida como um “nó gerador de múltiplos desenvolvimentos possíveis.” (MAINGUENEAU, 2011, p. 13).

Na Retórica de Aristóteles há a apresentação de uma technè que tem por objetivo observar o que é persuasivo para determinados tipos de indivíduos. Dessa forma, a prova pelo

ethos consiste em produzir uma boa impressão através da maneira como o discurso é construído, em que o locutor (enunciador) oferece uma imagem de si suscetível a convencer o seu auditório (receptor), a quem cabe conferir determinadas propriedades à instância que é estabelecida como fonte do evento enunciativo.

Maingueneau (2006) acolhe algumas teses de base acerca da noção de ethos, a partir da Retórica de Aristóteles. São elas:

1) o ethos é uma noção discursiva, pois é construído a partir do discurso;

2) o ethos está associado a um processo interativo de influência entre enunciador e co-enunciador;

3) o ethos é um conceito invariavelmente híbrido – sociodiscursivo – que não pode ser apreendido no exterior de uma situação de comunicação precisa, que, por sua vez, faz parte de uma conjuntura sócio-histórica.

O ethos, portanto, não está relacionado a um conhecimento extradiscursivo sobre o enunciador, mas está integrado na própria enunciação.

O co-enunciador deve construir uma imagem do enunciador, a partir de indícios que este apresenta na enunciação. Todavia, como afirma Maingueneau (2011) acerca da representação que o destinatário faz do enunciador,

Não se trata de uma representação estática e bem delimitada, mas, antes, de uma forma dinâmica, construída pelo destinatário [receptor] através do movimento da própria fala do locutor. O ethos não age no primeiro plano, mas de maneira lateral; ele implica uma experiência sensível do discurso, mobiliza a efetividade do destinatário. (MAINGUENEAU, 2011, p. 14).

Obviamente, o locutor não tem controle absoluto da imagem que tenta transmitir, uma vez que, o receptor constrói essa imagem à medida que a enunciação se desenvolve, contudo, cabe ao locutor gerir a enunciação, na tentativa de dominar o modo de sua recepção. O ethos possibilita ainda uma adesão (ou uma repelência) dos sujeitos ouvintes ao ponto de vista defendido por um discurso.

Maingueneau (2001, 2006, 2008a, 2011) traz à discussão algumas dificuldades ligadas à noção de ethos. Apesar do fato do ethos estar associado ao ato de enunciação, há também outro ponto a ser considerado, de que o público constrói representações do ethos do enunciador em antecipação à sua fala. A partir dessa constatação, é necessário que se estabeleça uma distinção entre ethos discursivo e ethos pré-discursivo (ou prévio), na qual apenas o primeiro está relacionado à definição aristotélica. Todavia, a distinção entre as duas designações deve levar em conta a diversidade de tipos, de gêneros do discurso e de posicionamentos, pois “mesmo que o destinatário nada saiba antes do ethos do locutor, o simples fato de um texto estar ligado a um dado gênero do discurso ou a um certo posicionamento ideológico induz expectativas no tocante ao ethos.” (MAINGUENEAU, 2006, p. 269).

Dessa forma, o ethos discursivo é o resultado da ação recíproca do ethos pré-

discursivo e do ethos discursivo (mostrado) e ainda do ethos dito, identificado nos “fragmentos do texto em que o enunciador evoca sua própria enunciação, diretamente (‘é um amigo que vos fala’) ou indiretamente, por exemplo, por meio de metáforas ou alusões de outras cenas de fala.” (MAINGUENEAU, 2006. P. 270). É por meio da interação entre essas instâncias – cuja força varia de acordo com os gêneros de discurso – que o ethos efetivo é construído pelo receptor.

É, através da construção do ethos efetivo, que se desenvolve o processo de adesão do receptor às ideias defendidas por um discurso. O receptor, por sua vez, tem o direito de aceitá-las ou recusá-las.

Ultrapassando o plano da oralidade, o ethos se enquadra também em outras materialidades discursivas que apresentam uma vocalidade, a qual o associa a uma caracterização do corpo do enunciador de discurso, que é fiador daquilo que diz, fazendo uso de determinado tom. Nessa perspectiva, a concepção de ethos abrange tanto a dimensão verbal, quanto a reunião de especificidades físicas e psíquicas atreladas ao fiador.

Maingueneau (2006) associa à figura do enunciador um caráter, que “corresponde a um conjunto de características psicológicas” (MAINGUENEAU, 2006, p. 272) e uma

corporalidade, “uma compleição física e a uma maneira de se vestir” (MAINGUENEAU, 2006, p. 272). A apropriação do ethos pelo receptor é denominada de incorporação e ocorre em três etapas: 1) o fiador (enunciador) expõe uma corporalidade através da enunciação; 2) o destinatário (receptor) incorpora essa corporalidade; 3) ocorre a constituição de um corpo, que representa o grupo imaginário dos que se unem ao mesmo discurso.

É por meio da incorporação que o receptor identifica o mundo ético, sugerido pelo enunciador. O mundo ético compreende certas situações estereotípicas ligadas a comportamentos de determinadas épocas e lugares, em que se enquadram variados tipos de

ethé. Ocorre que, algumas vezes, determinados ethé participam de conjunturas históricas distantes daquelas em que se encontram os receptores, por esse motivo não são incorporados apropriadamente. Exemplo disso é apresentado por Maingueneau (2006):

Quando vemos os segmentos de La Chanson de Roland dispostos numa folha de papel, é muito difícil recuperar o ethos que os sustinham; ora, o que é uma epopéia senão um gênero de performance oral? Sem ir tão longe, a prosa política do século XIX é indissociável dos ethé ligados a práticas discursivas, a siutuações de comunicação hoje desaparecidas. (MAINGUENEAU, 2006, p. 273).

Os meios de produção semiótica também variam de acordo com cada conjuntura histórica, e, estão relacionados a uma definição de modelos de comportamento social. Por exemplo, em épocas passadas, eram os textos literários que portavam os estereótipos de comportamento aderido pelas elites, pois a maioria do publico leitor se concentrava nas classes mais abastadas, como ocorreu nos séculos XVII e XVIII, “em que o discurso literário era inseparável dos valores ligados a certos modos de vida.” (MAINGUENEAU, 2006, p.

273), dessa maneira, o hábito da leitura era uma característica essencial dos indivíduos mais ricos.

Nos dias atuais, os estereótipos de comportamento são designados através dos discursos veiculados, principlamente, pelos meios audiovisuais, que têm um campo de abrangência bem maior. Podemos utilizar como exemplo disso o discurso literomusical, no qual se percebe, em determinadas sociedades, a força do discurso enunciado através das canções, por ser um gênero que tem aptidão de provocar adesão. Assim, as ideias contidas nos discursos só se apresentam na enunciação por via de uma maneira de dizer que remete a uma maneira de ser.

Como foi exposto, o enunciador, no ato da enunciação, apresenta um ethos que pertence a determinado mundo ético. Esse ethos pode ser aderido ou repelido pelo receptor, este, através do processo de incorporação, cofigura um corpo imaginário de enunciadores discursivos. Isso também vale para os textos em que o enunciador não é identificado imediatamente, como ocorre com textos do campo científico. Nesse caso, o ethos se configura como o próprio corpo imaginário coletivo, a estereótipos estabilizados socialmente, uma vez que, “Sendo toda fala socialmente encarnada e avaliada numa sociedade, a fala científica ou jurídica é inseparável de mundos éticos bem caracterizados [...] em que o ethos assume, a depender do caso, as cores da ‘neutralidade’, da ‘objetividade’, da ‘imparcialidade’ etc.” (MAINGUENEAU, 2006, p. 284).

Contudo, em certos discursos, como os discursos da arte, um enunciador não identificado não pode corresponder diretamente a um estereótipo social estável, pois se deve levar em conta que essa omissão está relacionada a um universo do sensível e não deve ser dissociada da conformação de um determinado posicionamento.

Maingueneau (2006) observa que a incorporação convocada pelo ethos parte da corporalidade do texto, que, por sua vez está sujeito às coersões do gênero, no processo que descreve como incorporação textual, que corresponde a uma “diversidade de recortes discursivos, em função do gênero e das posições estéticas.” (MAINGUENEAU, 2006, p. 288). Dessa forma, o ethos é passível de incorporação pelo receptor através da cenografia contida em uma materialidade textual subordinada a um gênero e todo esse procedimeto, por sua vez, está vinculado ao posicionamento discursivo do enunciador.

Dessa forma, em nosso trabalho, corroboramos com a visão de Maingueneau (2006) acerca da definição de ethos como uma instância enunciativa, que participa da cenografia da canção, em seu plano verbal. É a partir da composição de determinados ethé que a paratopia, em suas mais variadas formas, pode se manifestar a partir da construção de uma imagem pelo receptor/ouvinte. Essa imagem é construída a partir de um conhecimento prévio do receptor, que aciona um mundo ético. No caso das canções de Elomar, a referência de certos mundos éticos, como o mundo sertanejo e o mundo medieval reproduzidos na enunciação, na proposta de um deslocamento espaço-temporal representa a demarcação de um posicionamento também pautado em uma paratopia.