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4 O POSICIONAMENTO DISCURSIVO DE ELOMAR FIGUEIRA MELLO

4.4 O investimento cenográfico das canções

Ao lançarmos um olhar mais apurado sobre a obra literomusical de Elomar, podemos perceber uma variação na constituição da cenografia dos textos das canções. Apesar de o Sertão aparecer como espaço privilegiado nas composições, há variações nas conformações espaço-temporais dos cenários apresentados. Percebe-se que, ora os elementos da cenografia apresentam indícios de uma realidade que se pode situar espacialmente ora há o estabelecimento de uma cenografia idealizada, deslocalizada no tempo e no espaço.

Observamos que a variação entre a localização e deslocalização do espaço sertanejo é um dos pontos que representam a paratopia do compositor. Identificamos, assim, duas vertentes que embream elementos paratópicos no investimento cenográfico das canções de Elomar. Uma, caracteriza uma paratopia geográfica, que denominamos como vertente

paratópica catingueira, tomando como empréstimo o termo já utilizado por Costa (2012) para descrever o espaço geográfico da caatinga; a outra assinala uma paratopia espaço-temporal, que designamos como vertente paratópica sertaneza, aproveitando o termo elomariano.

As duas vertentes paratópicas entram em confluência para a demarcação do posicionamento discursivo do compositor, caracterizado pelo culto aos valores da tradição e a recusa dos valores da modernidade.

A vertente paratópica catingueira é observada nas cenografias que trazem elementos da topografia do espaço sertanejo, com possível localização no interior da Bahia, região natal do compositor. Algumas localidades são citadas em várias canções de Elomar, como o vale do rio Gavião26, um rio que passa por diversos municípios do sul do estado da Bahia e que faz parte da bacia hidrográfica do Rio de Contas, sendo um de seus principais afluentes.

O eixo semântico que embrea a paratopia catingueira nos textos é a geografia do iterior nordestino, que contempla a topografia da caatinga. Na enunciação, a topografia catingueira é embreada no plano textual, pela caracterização da cenografia na enunciação das canções, onde se configura o mundo ético sertanejo (com predominância do ethos rústico), e, também através do código de linguagem, pelo uso da variante dialetal regional. A paratopia se dá na inter-relação do indivíduo com o espaço que o circunda.

Já a vertente paratópica sertânica é observada nas canções em que as cenografias se configuram no que o compositor nomeia como “Sertão Profundo”, “um sertão inserido dentro da geografia política do sertão. No entanto, ele existe num estado de espírito de grande inventiva, imaginário e irreal, ao mesmo tempo insólito.” (MELLO, 2007, p. 287). Espaço imaginário, onde transitam elementos representativos tanto do universo sertanejo real quanto elementos representativos do imaginário ancestral dos sertanejos.

Essa vertente paratópica apresenta os seguintes eixos semânticos: a condição social, o espaço e o tempo. O espaço paratópico do sertão transcende o plano geográfico para ampliar-se na concepção do “Sertão Profundo”, espécie de hipersertão, situado fora do tempo e do espaço convencionais e onde habitam personagens que representam o que poderíamos chamar de épica sertaneja: a cenografia e a configuração dos ethé acolhem as características das Novelas de Cavalaria, porém, adaptadas ao universo sertanejo.

26“Pelas sombras do vale do ri Gavião / Os rebanhos esperam a truvoada chuvê” (MELLO, Elomar Figueira. Campo branco. Intérprete: Elomar. In: MELLO, Elomar Figueira. Na quadrada das águas perdidas. Vitória da Conquista: Gravadora e Editora Rio do Gavião, 1978, 1 CD, faixa 7).

No item que segue, fazemos a descrição do investimento ético dos textos das canções de Elomar e relacionamos a configuração de diversos ethé nas vertentes paratópicas indicadas acima com a paratopia do compositor.

4.4.1 Ethé paratópicos

Como já identificado por Costa (2012), o investimento ético predominante no posicionamento catingueiro é o do homem rústico, que vive em meio à caatinga e não incorpora os valores das grandes cidades, mesmo que viva nelas.

Esse ethos rústico, que representa a resistência do posicionamento catingueiro frente à configuração do modo de vida e das grandes cidades, perpassa toda a obra de Elomar e caracteriza o traço comum dos ethé configurados nas cenografias criadas pelo compositor em seus textos literomusicais.

Observamos o investimento ético da obra de Elomar tem forte relação com a paratopia na qual está condicionado. Tal relação é apreendida, na enunciação, através da embreagem paratópica (MAINGUENEAU, 2001, 2006), na constituição de determinados ethé que são elementos (embreantes) da paratopia do compositor.

Um dos ethé que mais atuantes nas cenografias das canções é do errante. Esse

ethos é representado principlamente pela figura do violeiro27, que pode ser um cantador ou um menestrel28. O violeiro errante representa a paratopia no sentido de deslocalização: “Seja qual for a modalidade de sua paratopia, o autor é alguém que perdeu seu lugar e deve, pelo desdobramento de sua obra, definir um outro, construir um território paradoxal através de sua própria errância.” (MAINGUENEAU, 2006, p. 131). Juntamente com a característica errante, há uma espécie de boêmia em alguns valores da vida de violeiro, como a liberdade, o fazer artístico sem pretenções lucrativas e o amor puro.

27 “Apois pra o cantadô e violêro / só há treis coisa nesse mundo vão / amo, furria, viola, nunca dinhêro / viola, furria, amo, dinhêro não” (MELLO, Elomar Figueira. O violeiro. Intérprete: Elomar. In: MELLO, Elomar Figueira. Das barrancas do rio Gavião. São Paulo: PolyGram, 1972, 1 LP, faixa 1).

28 “Venho d’um reino distante / errante e menestrel / Inda esta noite eu tenho esta donzela” (MELLO, Elomar Figueira. O rapto de Juana do Tarugo. Intérprete: Elomar. In: MELLO, Elomar Figueira. Na quadrada das

Outras figuras também representam a paratopia, através da qualidade errante, como o retirante29, que sai de seu lugar, muitas vezes sem rumo definido; ou, o migrante30 sertanejo, que parte em longa jornada, passando por diversas cidades em busca de trabalho. Essas duas figuras, que apresentam ethos errante, indicam duas formas de paratopia, a espacial, caracterizada pela própria deslocalização, e, a social, representada pela marginalização.

Outra forma de errância é manifestada na figura do andarilho e do pregregrino, que representam uma paratopia espaço-temporal. Temos aqui a questão da busca pelos valores perdidos: o andarilho vaga de lugar em lugar numa eterna busca por algo inatingível; já o peregrino tem em mente um objetivo, contudo enfrenta bravamente os percalços da travessia. Podemos atrelar a essas figuras, além do errante, um ethos resistente, do andarilho, frente às próprias condições da eterna viagem; do peregrino, frente às adversidades da jornada. Essa constituição ética representa a própria resistência do compositor em relação a determinados âmbitos do campo discursivo, como a submissão às regras do mercado fonográfico, a ampla divulgação de sua obra na mídia etc.

Há ainda a figura do cavaleiro andante, presente em diversas canções31 de Elomar e que também embrea uma paratopia espaço-temporal a partir da conformação de um ethos errante, corajoso, resistente, heróico e, muitas vezes, enamorado. Capaz de enfrentar com bravura os desafios e perigos das viagens, portando sua espada aliada nas batalhas, o cavaleiro também é galante quando canta seus sentimentos à amada, geralmente uma donzela ou princesa. Trata-se da condição paratópica do compositor, que, enfrenta duras “batalhas” em seu percurso no campo discursivo, mas sempre trazendo a sensibilidade artística, o “amor”, que enuncia através das canções.

29“Vai pela istrada inluarada / Tanta gente a ritirá / Levano só necessidade / Saudade do seu lugá” (MELLO, Elomar Figueira. Retirada. Intérprete: Elomar. In: MELLO, Elomar Figueira. Das barrancas do rio Gavião. São Paulo: PolyGram, 1972, 1 LP, faixa 9).

30 “Vô corrê trecho / Vô percurá u’a terra preu pudê trabaiá” (MELLO, Elomar Figueira. Curvas do rio. Intérprete: Elomar. In: MELLO, Elomar Figueira. Na quadrada das águas perdidas. Vitória da Conquista: Gravadora e Editora do rio Gavião, 1978, 1 CD, faixa 18).

31 A figura do cavaleiro é referida no título de três canções, “Cavaleiro do São Joaquim”, “O cavaleiro da torre”, “Um cavaleiro na tempestade”, além de aparecer nos textos de algumas canções: “Quatro cavaleiros / De olhares cruéis / Prontos pra peleja / Já cavalgam seus corcéis” (MELLO, Elomar Figueira. Corban. Intérprete: Elomar.

In: MELLO, Elomar Figueira. Cartas catingueiras. Vitória da Conquista: Gravadora e Editora do Rio Gavião, 1983, 2 CDs, CD 2, faixa 5); “Tresloucado cavaleiro andante / A vasculhar espaços de extintos céus” (MELLO, Elomar Figueira. Seresta sertaneza. Intérprete: Elomar. In: MELLO, Elomar Figueira. Cartas catingueiras. Vitória da Conquista: Gravadora e Editora do Rio Gavião, 1983, 2 CDs, CD 1, faixa 4); “Conta istóras de guerrêros / De cavalêros ligêros / Do Rêno de Portugal” (MELLO, Elomar Figueira. Tirana. Intérprete: Elomar.

In: MELLO, Elomar Figueira. Na quadrada das águas perdidas. Vitória da Conquista: Gravadora e Editora do rio Gavião, 1978, 1 CD, faixa 19).

Uma figura que se assemelha na constituição ética do cavaleiro andante, na cenografia das canções de Elomar, é o vaqueiro32. Há diversas referências ao vaqueiro na obra elomariana. Essa figura, que é uma forte representação do universo sertanejo, nas cenografias, é uma espécie de cavaleiro andante do sertão, apresenta um ethos errante e heroico, cuja armadura é o gibão de couro. Destemido e valente, o vaqueiro é pegador de touros selvagens além de encantador de bois, capaz de reunir o rebanho com seu aboio solitário.

Dessa forma, no investimento ético das canções de Elomar há a caracterização de

ethé que representam de várias maneiras, a paratopia do compositor no campo literomusical brasileiro. Essa paratopia também é representada através do investimento genérico.