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2 COLABORAÇÕES DE DOMINIQUE MAINGUENEAU NA ANÁLISE DO

2.7 Paratopia

2.7.1 Uma paratopia no processo de criação

A paratopia, como foi dito na seção anterior, ocorre em dois âmbitos: o dos discursos constituintes e o da criação de obras, caracterizando a circunstância que determina os discursos e a condição do autor desses discursos. Um autor de texto literário, por exemplo, não pode ser visto como um ser dividido entre o mundo dos homens e um mundo sublime, mas seria aquele que enuncia a partir do paradoxo em que vive. Ele não encontra um lugar estável nem na sociedade, nem no campo literário; é exclusivamente do embate entre espaço discursivo e sociedade que emerge a enunciação.

Dessa forma, o autor se adequa, à sua maneira, às conjunturas do campo discursivo e da época, fazendo emergir a paratopia através do processo criativo que é refletido na enunciação. A paratopia está, então, vinculada à atividade de criação:

[...] fazer uma obra é, num só movimento, produzi-la e construir por esse mesmo ato as condições que permitem produzir essa obra. Logo, não há “situação” paratópica exterior a um processo de criação: dada e elaborada, estruturante e estruturada, a paratopia é simultaneamente aquilo de que se precisa ficar livre por meio da criação

e aquilo que a criação aprofunda; é a um só tempo aquilo que cria a possibilidade de acesso a um lugar e aquilo que proíbe todo pertencimento. (MAINGUENEAU, 2006, p. 109, grifo do autor).

Dessa forma, a paratopia está relacionada com o pertencimento e com o não- pertencimento a um topos, assim, o paradoxo ao qual se resume a paratopia é de ordem espacial. Nessa perspectiva, Maingueneau (2006) descreve algumas representações, nas quais se pode enquadrar a paratopia que acarreta o processo de criação.

A paratopia de identidade contém três estratos, o de identidade familiar, o de identidade sexual e o de identidade social, e, “apresenta todas as figuras da dissidência e da marginalidade, literais ou metafóricas: meu grupo não é meu grupo” (MAINGUENEAU, 2006, p. 110); a paratopia espacial diz respeito à figura do desterritorializado, “meu lugar não é meu lugar ou onde estou nunca é meu lugar” (MAINGUENEAU, 2006, p. 110); a paratopia

temporal, fundada no anacronismo, em que, “meu tempo não é meu tempo. Vive-se aí na modalidade do arcaísmo ou da antecipação: sobrevivente de uma época passada ou cidadão

prematuro de um mundo por vir.” (MAINGUENEAU, 2006, p. 110); e a paratopia

linguística, que está ligada ao investimento linguístico de uma obra.

Importante ressaltar que esses tipos de paratopia podem combinar entre si, de modo que a especificação de cada tipo foi pensada para conferir uma maior clareza na compreensão do processo de criação das obras. Maingueneau (2006) ainda apresenta possíveis representações para cada tipo de paratopia.

A paratopia de identidade pode ser representada pelas relações geradoras de conflito, que margeiam o universo familiar: crianças abandonadas, órfãos, bastardos etc., em que a figura do excluído da genealogia familiar representa os questionamentos levantados pelo criador, acerca da lógica patrimonial, uma vez que, pretende “extrair sua legitimidade não de seu patronímico, mas de seu pseudônimo, daquilo que escreve, não de sua inscrição na rede patrimonial.” (MAINGUENEAU, 2006, p. 112). Outras representações da paratopia de identidade são as que Maingueneau (2006) caracteriza como “paratopia sexual”, ligada às escolhas sexuais consideradas “impróprias” para a sociedade, como as relações homossexuais, bissexuais, a transexualidade etc. e “paratopia social”, que está relacionada à situação de exclusão dos indivíduos de determinadas configurações sociais como, a cidade, a classe social, o grupo, a nação etc. A paratopia de identidade ainda pode se maximizar, quando a representação incide sobre o pertencimento pleno à humanidade, seja através do desvio do padrão físico (exclusão pela raça, pela deficiência, pela doença etc.); pelo desvio do padrão moral (indivíduos que aderem ao mundo do crime); pelo desvio psíquico (indivíduos considerados dementes, loucos).

A paratopia espacial concerne às relações de não-pertencimento de determinados indivíduos com os espaços sociais. A situação de exílio é um exemplo da paratopia espacial, que “pode tomar forma daquele que se recorda de um país de origem ou do nômade, para quem a única origem possível é mítica.” (MAINGUENEAU, 2006, p. 110). A paratopia espacial pode ainda estar realcionada a certos espaços que se entremeiam à sociedade “oficial”, como os lugares secretos, os esconderijos etc.

A paratopia temporal é representada pela referência ao arcaico (através da conservação de valores de épocas passadas) ou pela referência à atecipação temporal (indivíduos que defendem valores de um mundo que está por vir).

Maingueneau (2006) atribui especial importância à paratopia linguística, visto que o discurso literário atribui “um papel privilegiado às paratopias ligadas à língua que um criador investe.” (MAINGUENAU, 2006, p. 111). Geralmente a paratopia linguística está associada à paratopia de identidade e à paratopia espacial.

A paratopia é, dessa forma, a condição de enunciação do discurso literário. Para que as obras literárias sejam produzidas, os autores deverão organizar ritos de criação, captando e articulando elementos da realidade a fim de que a enunciação seja legitimada no contexto dessa própria realidade: “Trata-se de um processo de ‘organização’ paradoxal, pois ele deve a um só tempo contestar e preservar a falha que o torna possível e que assume com frequência o ar de um caos aparente, de um obscuro pacto com a morte e o sofrimento.” (MAINGUENEAU, 2006, p. 118). Não é possível, portanto, conceber uma divisão entre a vida do autor e sua obra ou pensar no “eu” criador contra o “eu” social. É preciso lembrar que a atividade criadora está inserida na instituição e o que constitui a paratopia criadora é exatamente essa negociação entre um lugar e um não lugar tanto do enunciador de texto constituinte no espaço social quanto do enunciador no espaço discursivo.

Maingueneau (2001, 2006), na observação da paratopia no discurso literário, destaca a presença de elementos dos quais a produção literária se utiliza para incorporar o seu dizer no âmago da sociedade cujo pertencimento está em constante negociação. A inserção desses elementos na enunciação se dá pelo processo denominado de embreagem paratópica.

Em nossa pesquisa, nos fundamentamos na descrição de embreagem paratópica como aporte teórico metodológico para a análise da paratopia no plano verbal das canções selecionadas em nosso corpus. Através da verificação da embreagem paratópica na cenografia e no código de linguagem das canções podemos conferir a gestão da paratopia pelo compositor – pelo processo criativo – e dessa forma, relacionar essa gestão ao seu próprio modo de inserção no campo discursivo.

Maingueneau (2001, 2006), apoiado na noção de embreagem linguística10, define a embreagem paratópica como a mobilização de “elementos [embreantes] de variadas ordens que participam simultaneamente do mundo representado pela obra e da situação paratópica

10A embreagem linguística mobiliza unidades denominadas “embreadores” (do francês embrayeurs, tradução proposta por Nicolas Ruwet para o termo em inglês shifter, introduzido por Jakobson), tais unidades revelam a reflexividade que está na base da atividade linguística.

através da qual se institui o autor que constrói esse mundo.” (MAINGUENEAU, 2006, p. 121). Tais elementos estão condicionados a eixos semânticos (MAINGUENEAU, 2001) que coferem os variados tipos de paratopia (de identidade, espacial, temporal, linguística). Associada a esses eixos semânticos a paratopia pode se revelar através da posição máxima e/ou mínima do enunciador. Exemplo disso é o caso do capitão Nemo, do livro Vinte mil

léguas submarinas, de Julio Verne, no qual “o capitão Nemo está na condição

máxima/mínima de um príncipe/pária em combate impiedoso à ordem social encarnada pelo Império britânico.” (MAINGUENEAU, 2006, p. 121).

Os eixos semânticos podem agregar variados elementos, como os espaços

paratópicos, que, são lugares “subtraídos em certa medida das injunções da sociedade” (MAINGUENEAU, 2001, p. 174) e que estão associados a personagens paratópicas, configuradas por indivíduos ou grupos de indivíduos “cuja pertinência à sociedade é problemática.” (MAINGUENEAU, 2001, p. 174). Um exemplo de espaço paratópico é a ilha, que representa o afastamento característico do autor com relação à sociedade. Geralmente, na literatura, é o náufrago a figura que se confronta com a ilha, através do progressivo assenhoramento desse espaço geográfico, que confere “o assenhoramento da obra por seu autor e da página pelo leitor.” (MAINGUENEAU, 2001, p. 184-185). Esses espaços paratópicos ainda podem carcterizar uma paratopia social, que suportam elementos camuflados no meio social “oficial” (as sociedades secretas, por exemplo) ou uma paratopia

geográfica, cujos elementos fazem referência a locais afastados do seio da sociedade (o deserto, o oceano etc.).

A embreagem paratópica ainda pode ser apreendida através das relações entre os

elementos paratópicos e a sociedade estabelecida. Essas relações podem ser de marginalidade (como é o caso dos boêmios, das prostitutas, dos refugiados clandestinos etc.); de antagonismo (criminosos); de alteridade (indivíduos exóticos).

No âmbito de nossa pesquisa, o conceito de paratopia e embreagem paratópica são os princípios teóricos do qual partimos para a caracterização do discurso literomusical de Elomar Figueira Mello, em nosso trabalho analítico. A partir da construção um cenário que, sublimado no tempo e no espaço, na enunciação, o compositor traça sua forma de posicionar-

se no campo discursivo, ao mesmo tempo em que legitima, por essa mesma enunciação, essa posição.

Seguindo a linha desenvolvida por Maingueneau, na relação da concepção de paratopia com o discurso literário, Costa (2004) analisa o discurso literomusical no Brasil sob o viés de uma paratopia que tem formas peculiares de manifestação, denominada como

subparatopia. A seguir, apresentaremos a proposta de Costa (2004) e a confrontaremos com aquela lançada por Maingueneau (2001, 2006), a fim de conformarmos um dispositivo de análise pertinente para o nosso objeto de pesquisa.