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4 O POSICIONAMENTO DISCURSIVO DE ELOMAR FIGUEIRA MELLO

4.1 Modus vivendi, modus operandi

Elomar nasce no interior da Bahia, na região de Vitória da Conquista, no ano de 1937, onde passa grande parte da infância e adolescência, morando em propriedades de sua família, muitas delas, citadas em diversas canções, como a fazenda do São Joaquim18. É nesse ambiente que o compositor, ainda criança, tem seu primeiro contato com a cantoria, através dos cantadores e tocadores de viola, violão e sanfona. Concomitantemente, devido à crença religiosa da família, também tem acesso ao hinário da Igreja Protestante. Através do rádio, conhece a música de Luiz Gonzaga, e cantores da “era de ouro”, como Francisco Alves e Vicente Celestino. É também por meio do rádio, na abertura do programa Hora do Brasil, com a execução do famoso trecho da ópera O Guarani, de Carlos Gomes, que o menino Elomar ouve, pela primeira vez, o toque de instrumentos sinfônicos, o que lhe instiga curiosidade.

Na juventude, entre a obrigação dos estudos na capital e o prazer das férias no interior, Elomar principia os estudos de violão, que será seu principal instrumento. É nessa época que começa a compor as primeiras canções, peças para violão e trechos das primeiras óperas. Por um período, Elomar atuou ainda como concertista de violão clássico, fase em que pôde executar peças de grandes compositores eruditos.

Mais tarde, inicia os estudos acadêmicos no curso de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. Guerreiro (2007) traça um paralelo entre a Arquitetura e a arte, segundo a visão do compositor:

Entende [ele, Elomar] arquitetura como modalidade artística, concebendo-a desvinculada do poder da construção civil. A proximidade desse ponto de vista sobre edificação e seu projeto musical consiste, segundo fala Elomar, em ambas persistirem numa linha clássica, embora, em termos de funcionalidade, os projetos arquitetônicos revelem uma abordagem moderna, ficando o clássico restrito à forma. Assim, o trabalho com a arquitetura serve-lhe, principalmente, como meio de sustento, exercendo-o em paralelo à atividade de compositor. (GERREIRO, 2007, p. 30).

Elomar trata a língua portuguesa como objeto cultural que deve ser documentado e propagado através de sua obra literomusical. Suas canções buscam representar a variedade idiomática do sertão catingueiro. O compositor pretende preservar a língua nacional através do que denomina de “linguagem dialetal sertaneza” – assim chamada para dar ênfase ao sertão – com referências do dialeto interiorano nordestino. Em outras canções, também faz uso do português erudito e, ainda, costuma inserir nos textos formas arcaicas.O termo “sertanêz(a)” é utilizado por Elomar para diferenciar sua obra das produções musicais intituladas pela mídia de “música sertaneja”, destinadas ao consumo da grande massa.

Uma questão relevante na produção de Elomar é a forte presença de referências da música erudita, da qual faz uso de alguns gêneros:

Em depoimentos do próprio compositor se percebe sempre um orgulho justificado em torno de sua produção erudita. Ele enumera suas 10 óperas19, 11 antífonas, concertos para violão e orquestra, peças para violão solo, que sonha ver montados, postos em partituras e no repertório de orquestras e concertistas. (CUNHA, 2008, p. 15).

Há ainda a referência das artes literárias, como um reflexo de seu próprio percurso escolar e acadêmico, pois desde muito cedo teve acesso à leitura dos grandes clássicos da literatura nacional, assim como da literatura estrangeira:

Durante este percurso todo lá da infância até quando terminei o curso superior, eu vasculhava as escolas, primeiramente, as escolas literárias. Esgotei, em primeira mão, não in totum, os autores nacionais, mais na área da poesia. [...] Depois que me assegurei da literatura pátria, entrei pelas escolas européias, fomos a fundo na escola portuguesa. [...] Depois a escola francesa, no original, [...]. Também vasculhamos a escola inglesa de fio a pavio e entramos na escola alemã, [...]. Entramos na escola russa, na espanhola. [...] Outra coisa bela, o latim! (MELLO, 2006, p. 163-164).

O conhecimento do compositor nas áreas da música, da literatura e das artes clássicas, atrelado à convivência com a cultura do povo sertanejo é um traço que se faz visível

19 Dentre as óperas, podemos citar: Auto da catingueira, gravada em LP em 1984 e em DVD “ao vivo” em 2011, com a participação do Grupo Giramundo, Saulo Laranjeira, Dércio Marques, Xangai, Luciana Monteiro, João Omar, Marcelo Bernardes e Ocelo Mendonça; Casa de bonecas, O retirante e A carta, ambas, com trechos encenados nas apresentações do concerto Cenas brasileiras, em 1998. A carta, em 2004, foi apresentada na íntegra, no Centro Cultural do Banco do Brasil em Brasília, com a regência do maestro Enrique Morelenbaum.

nas canções e delineia a obra de Elomar, na tematização do universo sertanejo e suas tradições herdadas dos antepassados ibéricos e adaptadas pelos habitantes da “patra vea do sertão” 20.

Embora seja o nome mais relevante entre os compositores que seguem a temática catingueira, e suas composições façam parte do quadro das obras representativas da cultura brasileira, sendo referenciada pela crítica especializada e por um número considerável de trabalhos acadêmicos, Elomar é caracterizado pelo afastamento de tudo o que representa a urbanização e a modernidade: as grandes metrópoles e seus malefícios, como a absorção da cultura norte-americana, gerada pela entrada de veículos midiáticos no meio rural, acarretando a perda da ingenuidade e pureza de seus habitantes.

Dessa forma, apesar de seu grande valor no campo da música brasileira, o compositor mantém um afastamento quase total da vida urbana, da mídia e da imprensa, vivendo praticamente em um exílio voluntário no sertão da Bahia, lugar inspirador de sua obra.

As apresentações de Elomar são raras e ocorrem em forma de concerto, acompanhadas por músicos eruditos e cantores líricos, quase sempre em teatros e para um público restrito. Guerreiro (2007), discorrendo sobre a performance do cantador chama atenção para a maneira não espetacular das apresentações:

O compositor apresenta-se para o público ao estilo do cantador tradicional ou menestrel. Diferentemente de um cantor – cujas apresentações espetacularizam o show –, o cantador, em suas apresentações cênicas, traz à memória a figura do narrador arcaico, poeta popular ambulante acompanhado por instrumento musical. [...] Elomar configura-se, sobremaneira, como trovador ou jogral, uma vez que, além de compor os textos, também os executa. (GUERREIRO, 2007, p. 43).

Para a pesquisadora, esse comportamento peculiar do compositor proporcionou que a mídia jornalística criasse um mito21 em torno do artista, que opõe, na sua música e

também no seu próprio modo de vida, a cidade ao campo. As experiências pessoais do compositor estão diretamente associadas à cultura sertaneja, proporcionando que suas

20 Pátria velha do sertão. “Patra vea do sertão” é título de uma ária da primeira cena da ópera A Carta. Esse trecho está no álbum Árias sertânicas (1992).

21 Guerreiro (2007, 2008) cita vários títulos publicados em alguns jornais das décadas de 1970 e 1980, sugerindo a “antiurbanidade” de Elomar.

produções divulgem as crenças, as práticas culturais e as histórias do imaginário sertanejo, num ato de recriação e transformação através de sua criatividade linguística, poética e musical.

Pode-se observar nas composições de Elomar uma convergência de suas experiências de vida para as produções literomusicais. Remetemo-nos aqui à noção de

bio/grafia (MAINGUENEAU, 2001, 2006), em que vida e criação estão atreladas de maneira

intrínseca.

Dessa forma, o modo de vida de Elomar atua diretamente no processo criativo de sua obra, na junção do ser social e do ser enunciador, um influenciando o outro. Por ser um habitante do sertão catingueiro, está predisposto a interagir com as injunções que a configuração social dessa região estabelece. Ao mesmo tempo, deve exercer o papel de compositor, defendendo um posicionamento discursivo no campo literomusical. Trata-se do modo de gestão da paratopia, uma vez que a obra não deve ser concebida “fora de seu ‘contexto’ biográfico. [...] O que se deve levar em consideração não é a obra fora da vida, nem a vida fora da obra, mas sua difícil união.” (MAINGUENEAU, 2001, p. 46).

No caso de Elomar, essa bio/grafia está condicionada à gestão de sua própria condição paratópica, que, como foi falado anteriormente, é a forma como o autor administra a paratopia no processo de criação da obra, a paratopia criadora (MAINGUENEAU, 2001, 2006). Na seção que segue, descrevemos o processo criativo de Elomar vinculado a uma condição paratópica.