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2 COLABORAÇÕES DE DOMINIQUE MAINGUENEAU NA ANÁLISE DO

2.2 Prática discursiva

Outra hipótese apresentada por Maingueneau (2008b) traz a questão da mudança que ocorre na estrutura e no funcionamento dos diversos grupos de um espaço discursivo que, em princípio, deveria ser estável e neutro. O pesquisador francês propõe a observação da relação entre os discursos com as instituições que o gerem, que têm por fio condutor, um sistema de restrições semânticas comum. O foco é, então, a possibilidade da articulação discurso/instituição:

Se se constata que a mudança de dominação discursiva num campo é acompanhada também de uma mudança correlativa dos espaços institucionais, e que tal mudança é pensável em termos de semântica global, isso significa que também nesse nível não

há transformação gradual dos enunciadores de um discurso em enunciadores de outro discurso por uma série de micro evoluções, mas substituição do conjunto de uma população de enunciadores, de uma rede de produção-difusão etc... de um certo tipo por outros. (MAINGUENEAU, 2008b, p. 121)

Dessa forma, as mudanças que ocorrem nos discursos também acontecem nas instituições que os conduzem. Exemplo disso é apresentado por Maingueneau (2008b), com o discurso religioso dos humanistas devotos, em que houve uma dinâmica organizacional baseada na reunião de uma quantidade elevada de fiéis e na recusa de qualquer ruptura entre a sociedade laica e a sociedade religiosa. Daí o surgimento das sociedades religiosas como ordens regulares, seminários, congregações etc.

Além do modo de enunciação, as mudanças se estendem para as relações humanas internas dessas sociedades, refletindo-se no tom dos enunciadores que estão posicionados em seu centro, que assumem, por sua vez, o papel de modelos a serem seguidos. A organização dos discursos segue a organização das intuições na qual estão inseridos, uma vez que, as “enunciações são tomadas pela mesma dinâmica semântica pela qual a instituição é tomada” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 128).

O olhar sobre a enunciação discursiva é ampliado por Maingueneau (2008b), que aponta um tema relevante para a constatação da imbricação entre discurso e instituição. Esse tema se refere à intertextualidade, que indica o modo como os textos devem coexistir no discurso, e, que textos deverão compor uma biblioteca modelo, legitimadora e qualificadora dos enunciados desse discurso. Para que um texto participe de determinada formação discursiva, é preciso que seu enunciador tenha a vocação enunciativa, ou seja, as “condições assim postas por uma formação discursiva para que um sujeito nela se inscreva” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 130). Desse modo, a vocação enunciativa enriquece a noção de competência discursiva, pois é integrado a esta o estatuto dos enunciadores e seu modo de enunciação e ainda apresenta uma vertente pragmática que “define também as condições de legitimação do dizer.” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 131).

Outro domínio no qual o discurso define restrições é o da preparação da enunciação, que Maingueneau (2008b) convenciona chamar de ritos genéticos. Os ritos são uma série de operações que um sujeito elabora para produzir um enunciado. Eles não são necessariamente ligados a um dado momento e a uma dada sociedade. Cabe ao enunciador traçar seu próprio percurso, lançando mão de sua vocação enunciativa, que “supõe uma

harmonização mais ou menos estrita entre as práticas individuais do autor e as representações coletivas nas quais ele se reconhece e que comunidades mais ou menos amplas, verão, por sua vez, encarnadas nele.” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 133).

Além de comentar sobre os campos da enunciação, que admitem as relações entre instituição e enunciador, Maingueneau (2008b) enfoca as condições de emprego dos textos produzidos por um discurso. Tais condições estão intrinsecamente ligadas às condições de produção. Nesse ponto, os modos de difusão são elementos relevantes, pois são esquematizados pela organização institucional que, por sua vez, também define os modos de

consumo desses discursos. É importante ressaltar a questão dos gêneros em relação aos modos de difusão, visto que a concepção usual de gênero transcende seu estatuto formal, abrangendo também as condições de uso dos textos que dele resultam. Como exemplo da questão genérica, Maingueneau (2008b) utiliza o poema:

O fato de um poema ser destinado a ser cantado, acompanhado por um instrumento de certo tipo, lido em voz alta em uma reunião social, ou percorrido pelos olhos solitariamente, consumido nesse ou naquele outro tipo de circunstâncias... tem uma incidência radical sobre seu tamanho, seu recorte em estrofes, suas recorrências etc... (MAINGUENEAU, 2008b, p. 134).

Dessa forma, o modo de consumo é modificado em decorrência da passagem de um discurso a outro, logo os ritos genéticos e a comunidade enunciativa também podem sofrer mudanças.

Na apresentação dos aspectos da discursividade, Maingueneau (2008b) propõe a rearticulação de todos eles, uma vez que são regidos por uma mesma rede semântica. A discursividade, segundo o pesquisador francês, não deve ser pensada sob a forma de sucessão, pois “não há, inicialmente, uma instituição, depois uma massa documental, enunciadores, ritos genéticos, uma enunciação, uma difusão e, por fim, um consumo, mas uma mesma rede que rege semanticamente essas diversas instâncias.” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 136).

Assim, a noção de discurso é reelaborada por Maingueneau (2008b), e indica “uma imbricação semântica irredutível entre aspectos textuais e não-textuais” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 136), de modo que o analista é levado a definir o objeto de

estudo, que não é aquele discurso que permanece no âmbito do estritamente textual, mas sim, a prática discursiva, entendida como

[...] um processo de organização que estrutura ao mesmo tempo duas vertentes do discurso. A noção de “prática discursiva” integra, pois, estes dois elementos: por um lado, a formação discursiva, por outro, o que chamaremos de comunidade

discursiva, isto é, o grupo ou a organização de grupos no interior dos quais são

produzidos, gerados os textos que dependem da formação discursiva. A “comunidade discursiva” não deve ser entendida de forma excessivamente restritiva: ela não remete unicamente aos grupos (isntituições e relações entre agentes), mas também a tudo que estes grupos implicam no plano da organização material e modos de vida. (MAINGUENEAU, 1997, p. 56, grifo do autor).

Portanto, a prática discursiva se configura através dos sistemas de relações entre os diversos aspectos da discursividade e as instituições que a regem.

Maingueneau (2008b) amplia ainda o sistema de restrições semânticas dos discursos para os diversos domínios semióticos. O sistema de restrições semânticas não se configura como uma gramática geradora de enunciados, mas se pauta sobre as organizações de sentido, que se aplicam aos diversos suportes semióticos, pois “O pertencimento a uma mesma prática discursiva de objetos derivados de domínios semióticos diferentes exprime-se em termos de conformidade a um mesmo sistema de restrições semânticas.” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 138). Isso significa rejeitar a abordagem “insular”, que se configura no isolamento de cada domínio.

A prática discursiva é definida como a unidade de análise referente, capaz de associar diversos domínios semióticos, tais como enunciados, obras de arte, peças musicais etc. Uma maior abrangência da unidade de análise determina que o sistema da formação discursiva deva restringir os modos de estruturação dos domínios semióticos e não considerá- los como equivalentes em sua estrutura.

Nesse sentido, Maingueneau (2008b) propõe a distinção entre texto, para indicar “os divesos tipos de produções semióticas que pertencem a uma prática discursiva” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 139) e enunciado, que trata de “textos em sentido estrito, isto é, de produções linguísticas” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 139). Ênfaze é dada na generalização de texto, em sua disposição própria de ser investido por um mesmo sistema

semântico. O pesquisador ainda chama a atenção para o fato da livre coexistência dos textos de diversos domínios semióticos, dentro de determinada fomação discursiva, pois

Não é qualquer domínio que pode figurar com qualquer outro, e essas restrições são função, ao mesmo tempo, do gênero de práticas discursivas envolvidas e do conteúdo próprio de cada uma. [...]

O gênero da prática discursiva impõe restrições que se relacionam com o contexto histórico e com a função social dessa prática. [...] quanto às restrições ligadas a um discurso particular, elas definem associações preferenciais, exclusões, marginalizações... específicas; [...] não existe independência entre o funcionamento ‘interno’ de cada domínio da prática discursiva e sua maneira de definir suas relações com as outras. (MAINGUENEAU, 2008b, p. 139-140).

Em consequência da cobertura de um sistema semântico único para as diversas práticas semióticas, em uma unidade discursiva própria, deve-se colocar sob a mesma norma o princípio de competência discursiva, não podendo se conservar esse princípio exclusivamente aos enunciadores linguísticos.

Com isso, os aspectos da discursividade como o modo de coexistência dos textos, a vocação enunciativa, os ritos genéticos e as condições de emprego estão subordinados a certo número de condições que estabelecem sua legitimidade. Nessa perspectiva, apreendemos o discurso literomusical a partir da imbricação semântica dos aspectos relacionados ao texto com aqueles aspectos que transcendem o domínio textual, definidores de uma prática discursiva literomusical. Em nossa pesquisa, consideramos o discurso de Elomar como uma prática regida pelo funcionamento da instituição discursiva, na observação dos aspectos intertextuais, da vocação enunciativa e do processo criativo, que se refletem, por sua vez, na enunciação da obra literomusical.