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4 O POSICIONAMENTO DISCURSIVO DE ELOMAR FIGUEIRA MELLO

4.2 Um processo criativo paratópico

Maingueneau (2001, 2006), na abordagem do discuro literário, discorre a respeito do trabalho do autor sobre o texto, que envolve determinados “ritos” de escrita, aos quais denomina ritos genéticos (MAINGUENEAU, 2001, p. 48). Os ritos genéticos são práticas que o próprio autor determina para o desenvolvimento de seu processo criativo. Todavia, esses ritos não são particularidades do discurso literário, nem mesmo dos discursos constituintes, uma vez que em “certos gêneros do discurso, as etapas dessa elaboração [da obra] são objeto

de normas (é o caso de um jornal diário ou da redação de um texto legal); noutros gêneros, há menos normas.” (MAINGUENEAU, 2006, p. 155).

Os gêneros literários, nesse sentido, podem se enquadrar no grupo onde há “menos normas”, uma vez que as etapas de criação de uma obra literária podem ser realizadas de inúmeras maneiras: utilização de rascunhos, anotações, organização de diários, em viagens e expedições; troca de correspondências; retiro para lugares ermos, distantes etc.; até mesmo mudança de determinados hábitos. Esses ritos nem sempre permanecem restritos ao processo de criação, em alguns casos, podem participar da própria obra, como ocorre no romance proustiano, em que “a única vida verdadeira é a arte.” (MAINGUENEAU, 2006, p. 156).

O que diferencia, no entanto, o processo de criação de obras literárias daquele relativo aos gêneros mais “rigorosos” é que, naquele, os ritos genéticos estão associados “com a definição de uma identidade num campo conflitual” (MAINGUENEAU, 2006, p. 155). Isso significa que a configuração de ritos de escrita está condicionda com certo posicionamento do autor.

No discurso literomusical, pressupomos que o processo de criação das canções, no plano verbal, se assemelha à criação literária. Costa (2012), ao descrever os posicionamentos do campo literomusical brasileiro, correlaciona o processo de pré-difusão das obras aos ideais e investimentos éticos dos agrupamentos de compositores. Os compositores bossanovistas, por exemplo, devido ao investimento em um ethos apaixonado e contemplativo, geralmente procuravam compor suas canções em ambientes intimistas, como seus apartamentos, na Zona Sul carioca. Já os mineiros do Clube da Esquina investiam em um ethos saudosista das coisas da infância vivida em Minas Gerais. De fato, não é possível imaginar Tom Jobim compondo em outro lugar que não seja em um apartamento com vista para a belíssima orla do Rio de Janeiro, ou Milton Nascimento e seus amigos do “clube”, se reunindo em outras esquinas, que não as de Belo Horizonte.

Da mesma maneira, não podemos imaginar Elomar, compondo sua obra longe das suas fazendas, dos seus animais, da caatinga esturricada, dos rios secos, enfim do ambiente do sertão. O próprio compositor explica, em entrevista, que, desde muito cedo, já tinha bem traçado o que podemos apontar como um processo criativo. No episódio em que é indagado

por uma antiga professora de música sobre o motivo de sua recusa de uma bolsa de estudos na escola de violão de Andrés Segovia, em Madri, Elomar, na ocasião, bem moço, justifica:

Professora desculpe, mas passe pra outro. [...] Tô com a passagem aqui, comprada há dias, vou voltar pra casa, pro sertão. [...] Vou escrever minha música. Se eu for pra Europa, vou ser um grande violonista, tocar com todas as sinfônicas do mundo, palmas e mais palmas, e não vou escrever o que tenho que escrever. (MELLO, 2006, p. 167-168).

O posicionamento “tradicionalista” e “antimoderno” que Elomar defende no campo literomusical é fator determinante de seu processo de criação, em que a reclusão para os intertícios do sertão catingueiro é a principal característica. Nesse ponto, é possível relacionar o processo de criação do compositor com a gestão de sua condição paratópica no campo discursivo.

O campo literomusical requer de seus enunciadores a execução de determinados “gestos”, necessários para que seus discursos sejam enunciados e propagados, como o trabalho que envolve a produção e divulgação dos álbuns musicais, a produção das apresentações etc. Elomar, por conta da postura ideológica que defende, intensionalmente procura não se condicionar a certos modos de difusão, como a vasta divulgação midiática, a produção massificada de sua obra, a comercialização desenfreada etc. Dos álbuns gravados, com exceção do primeiro22, todos ocorreram de forma independente, como declara: “Nunca pretendi fazer disco adereçado de altos requintes técnicos, tão somente a pura e simples documentação de meu trabalho sem que turbe o espírito das coisas e do lugar donde ele saiu. Este disco foi feito a facão, no Nordeste, com o digitoro de muitos amigos [...]”. (MELLO, 1978).

Costa (2012), na descrição do posicionamento catingueiro no campo literomusical, observa uma resistência por parte de muitos compositores em relação às regras do mercado fonográfico, o que gerou certa rejeição por parte das gravadoras e patrocinadores. Por esse motivo, há “grande distância entre o momento de elaboração/pré-difusão e o momento de difusão e circulação das obras” (COSTA, 2012, p. 189). Essa resistência em se

enquadrar às regras do mercado fonográfico, no caso de Elomar, pode ser entendida como uma forma de administrar uma condição paratópica na própria intituição discursiva.

O caráter tradicionalista do posicionamento de Elomar determina um processo criativo que demanda certo “afastamento” da vida moderna. Contudo, o compositor não consegue escapar por completo do funcionamento da instituição discursiva, que, em seu domínio de difusão, é regida por regras da “modernidade”.

Embora se adapte, mesmo que à sua maneira, às imposições do campo discursivo, Elomar opta por ocupar sua posição no campo literomusical justamente pela forma como gere a própria inserção nesse campo, refletindo o estado de tensão que configura a paratopia do compositor. Essa tensão é representada através da própria enunciação da canção. Observamos nas seções que seguem como se configura a paratopia do compositor no investimento linguístico (código de linguagem) e no investimento cenográfico (cenografia e ethos) dos textos das canções.