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4 O POSICIONAMENTO DISCURSIVO DE ELOMAR FIGUEIRA MELLO

4.5 Paratopia no investimento genérico

Considerando o caráter intersemiótico da canção, que traz a imbricação do plano verbal com o plano musical, apresentamos alguns aspectos que indicam a relação entre os gêneros musicais das canções de Elomar com a paratopia que constitui sua obra. Não visamos, porém, abranger os aspectos mais profundos do plano musical, o que ultrapassaria nossos objetivos. Nosso intuito aqui é identificar os possíveis tipos de paratopia que atuam na “superfície” do plano musical das canções, através da observação de gêneros musicais em que o compositor investe em suas composições.

Podemos observar que, no plano musical, a paratopia é representada através da atuação de embreantes paratópicos no investimento genérico, com a referência de gêneros que fazem parte da tradição literomusical da região Nordeste, principalmente a Cantoria Nordestina, e, de possíveis gêneros da tradição medieval ibérica, como as cantigas trovadorescas.

32“Na mia vida de vaquêro vagabundo / Já nem dô conta dos pirigo qui infrentei” MELLO, Elomar Figueira. Cantiga do boi encantado. Intérprete: Elomar. In: MELLO, Elomar Figueira. Sertania. Rio de Janeiro: Kuarup Discos, 1985); “Mais foi tanto dos vaquêro qui Reno no meu sertão / Qui cantano um dia intero / Num menajo todos não” (MELLO, Elomar Figueira. História de vaqueiros. Intérprete: Elomar. In: MELLO, Elomar Figueira.

Cartas catingueiras. Vitória da Conquista: Gravadora e Editora do Rio Gavião, 1983, 2 CDs, CD 1, faixa 2);

“Foi o relato d’um vaquêro / Neto de um marruêro / Matadô de marruá” (“Bespa”); “E mais cadê aquele vaquêro Antenoro / Cum seu burro trechêro e seu gibão de côro” (MELLO, Elomar Figueira. Chula no terreiro. Intérprete: Elomar. In: MELLO, Elomar Figueira. Na quadrada das águas perdidas. Vitória da Conquista: Gravadora e Editora do rio Gavião, 1978, 1 CD, faixa 6).

Os gêneros musicais, muitas vezes, são referenciados no próprio título da canção, como nas canções: “Cantiga de amigo”, “Cantiga do estradar”, “Chula no terreiro”, “Seresta sertaneza”, “Puluxias”, “Incelença pra um poeta morto”, “Parcelada”, “Acalanto”, “Cantada” etc. Há canções em que a referência ao gênero é apreendida na própria configuração textual, como é o caso da canção “Retirada”, “O violeiro”, “História de vaqueiros”, cujas formas remetem a certos gêneros da Cantoria Nordestina, como o repente, o desafio etc.

A paratopia é observada na alusão à Cantoria Nordestina e às cantigas medievais trovadorescas (cantigas de gesta, cantigas de amor, cantigas de amigo e cantigas de escárnio).

Bastos (2012), em trabalho acerca da obra elomariana, reflete sobre a relação da cultura medieval com a obra elomariana. De acordo com o pesquisador, os vestígios da Idade Média incorporados às tradições contemporâneas fornecem “um aporte estratégico para um plano de refúgio contra os problemas da modernidade.” (BASTOS, 2012, p. 6). Esse “plano de refúgio”, na verdade, é uma forma de gestão a condição paratópica do compositor: por sua posição “tradicionalista”, Elomar não encontra um lugar definido no próprio contexto em que está inserido, diante disso, a “estratégia” é refugiar-se no sertão, como uma forma de resistência à modernidade.

Ribeiro (2011), em estudo sobre a obra de Elomar, indica nos gêneros trovadorescos, assim como nos gêneros tradicionais nordestinos, traços de espanholismo, provindos, em parte, do estilo flamenco espanhol, caracterizado pela mescla da herança das culturas arábicas, judaicas e cristãs e ainda da cultura gitana. Tais traços podem ser notados, por exemplo, na obra de Elomar, através do uso do rasqueado ou rasgueado, que consiste na “técnica de tocar todas as cordas com golpes das mãos e/ou unhas. Produz um som rude e raspado.” (RIBEIRO, 2011, p. 101) e do ayeo, que é uma “vocalização melismática em ‘ah’ que consiste em um floreio que o ‘cantaor’ (cantador, cantor) realiza sobre graus da escala.” (RIBEIRO, 2011, p. 114, grifo do autor). O aboio, usado em alguns estilos de cantoria, se assemelha ao ayeo e é empregado por Elomar em algumas canções, como “Cantiga do boi encantado” 33, “Chula no terreiro” 34.

33 “Ê Ê Ê Ê Ê Ê... boi incantado e aruá / Ê boi quem havéra de pegá!” (MELLO, Elomar Figueira. Cantiga do boi encantado. Intérprete: Elomar. In: MELLO, Elomar Figueira. Sertania. Rio de Janeiro: Kuarup Discos, 1985). 34 “Ah, ah, ah, ah, ê boi / Ê ê boi lá ê boi lá ê boi lá” MELLO, Elomar Figueira. Chula no terreiro. Intérprete: Elomar. In: MELLO, Elomar Figueira. Na quadrada das águas perdidas. Vitória da Conquista: Gravadora e Editora do rio Gavião, 1978, 1 CD, faixa 6).

De acordo com Ribeiro (2011), alguns gêneros da música dita urbana ainda compõem o investimento genérico das canções do compositor, como a canção seresteira.

A seresta é um gênero de canção, que tem por tema o sentimento amoroso, trazido de Portugal para o Brasil no século XVIII. Geralmente esse tipo de canção é acompanhado por violões, flautas, cavaquinhos e bandolins. Tinhorão (1998) explica a conformação da serenata, em Portugal, que, no Brasil, viria a se caracterizar como seresta:

Através da obra de Gil Vicente [...] pode concluir-se também que um dos primeiros tipos de canção urbana – quer dizer, cantada e acompanhada a solo, como as trovas e romances dos antigos trovadores e jograis, e envolvendo a atenção amorosa do intérprete – seriam as cantigas de serenata. O mais recuado exemplo desse cantar (que dois séculos depois se transformaria em gênero, no Brasil, sob o nome de canção de seresta) apareceria no auto chamado Quem Tem Farelos? com data de 1505 [...]. (TINHORÃO, 1998, p. 22).

Podemos conferir, dessa forma, a representação de uma paratopia no investimento genérico das canções de Elomar pelo modo com que o compositor retrabalha aspectos das cantigas de serenata portuguesas, por conservar embreantes paratópicos como o uso da viola e a temática amorosa, como se oberva em canções como “Seresta sertaneza” 35, “Canção da catingueira”, “Cantada” 36, dentre outras.

Por meio da escuta das canções, é possível identificar na instrumentação, o uso do violão. Praticamente todas as canções trazem o violão como o principal instrumento de acompanhamento, muitas delas são executadas apenas com voz e violão.

O violão é descrito no glossário de formas e estilos da tópica elomariana, organizado por Ribeiro (2011):

violão (guitarra) – principal instrumento musical na linguagem elomariana. Através do violão, elomar absorve os estilos de moda de viola, os estilos de acompanhamento da cantoria nordestina, o estilo flamenco, os estilos eruditos tradicionais do violão e traços de seu repertório. A linguagem orquestral de Elomar também é devedora do violão. Muitos padrões de acompanhamento e efeito

35 “Nos raios de luz de um beijo puro / Me estremeço e eis-me a nevegar / Por cerúleas regiões / Onde ao avaro e ao impuro não é dado entrar” (MELLO, Elomar Figueira. Seresta sertaneza. Intérprete: Elomar. In: MELLO, Elomar Figueira. Cartas catingueiras. Vitória da Conquista: Gravadora e Editora Rio do Gavião,1983, 2 Cds, CD 1, faixa 4).

36“Então desperto e abro a janela / Ânsias, amores e alucinações / Desperta amada que a luz da vela / Tá se apagando chamando você / Está chamando apenas para vê-la / Morrer por teu viver” (MELLO, Elomar Figueira. Cantada. Intérprete: Elomar. In: MELLO, Elomar Figueira. Das barrancas do rio Gavião. São Paulo: PolyGram, 1972, 1 LP, faixa 10).

timbrísticos na orquestração de Elomar são derivados da sonoridade do violão. [...]. (RIBEIRO, 2011, p. 104).

A preferência do compositor pelo violão nos dá indícios da paratopia no plano musical, uma vez que esse instrumento está associado ao mundo ético dos artistas boêmios e errantes, como os menestréis, trovadores, cantadores, violeiros e seresteiros. Essas figuras são recorrentes tanto na enunciação quanto na construção do ethos do próprio compositor no campo literomusical brasileiro, pois Elomar incorpora o gestual do menestrel-cantador, na apresentação de seu corpo cênico: “Uma personificação que possui códigos do poeta cantador tipificados em trajes típicos: chapéu, botas, violão e fala de entonação enunciativa como quem está a descrever acontecimentos sempre por trás da figura do narrador.” (BASTOS, 2006, p. 88, grifo nosso).

O estudioso da música brasileira, José Ramos Tinhorão, sintetiza o desenvolvimento do violão ao longo da história, em Portugal, onde o instrumento usado pelos tocadores palacianos no início do século XV, a viola ou vihuela espanhola, “que fazia supor para seu uso um estudo de música mais aprimorado” (TINHORÃO, 1998, p. 27), teria inspirado o aparecimento da guitarra, que era um tipo mais simplificado de viola, “que qualquer curioso possuidor de bom ouvido podia tocar de golpe ou de rasgado, suprindo a falta de recursos técnicos com o ritmo da mão direita.” (TINHORÃO, 1998, p. 27, grifos do autor). Ora, a própria história da viola, que no Brasil é comumente chamada violão, indica o percurso paratópico desse instrumento, numa posição máxima, tendo sido usado inicialmente por músicos que ocupavam lugar de destaque na sociedade, como os citados trovadores palacianos; por outro lado, toma uma posição mínima, sofrendo modificações e adaptações para fazer parte das esferas menos favorecidas da sociedade, compostas por elementos marginais da estrutura econômico-social.

Nesse capítulo apresentamos uma descrição do posicionamento discursivo de Elomar Figueira Mello no campo literomusical brasileiro. Partimos da descrição, apresentada por Costa (2012), do posicionamento em torno da temática catingueira, do qual o compositor é a figura de maior relevo, ocupando um lugar central e influenciando os demais compositores e intérpretes que participam do grupo dos catingueiros.

Através da relação do posicionamento de Elomar com a sua própria condição paratópica no campo literomusical observamos a gestão da paratopia na enunciação a partir do

investimento linguístico, do investimento cenográfico (no qual se inclui o investimento ético), do investimento genérico e ainda no processo criativo do compositor.

Dedicamos o próximo capítulo às análises das canções selecionadas em nosso

corpus de pesquisa, nas quais observamos o processo de embreagem paratópica no código de linguagem e na cenografia dos textos.