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No Brasil, espécies de direito de revogação (recall) remontam ao decreto de 16 de fevereiro de 1822 sugerido ao Imperador D. Pedro I por José Bonifácio, que admitia a substituição dos Procuradores Gerais Provinciais por requerimento de dois terços das suas Câmaras caso não desempenhassem devidamente suas obrigações. O instituto, entretanto, não durou mais que um ano. Posteriormente, o direito de revogação foi consagrado nas Constituições estaduais de Goiás, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, enquanto a de São Paulo foi além, admitindo também o veto popular a decisões das autoridades municipais (JORGE, 2009, p. 213-214). Todavia, é importante ressaltar que esses instrumentos jamais se tornaram parte integrante da realidade institucional brasileira.

Na ordem jurídica brasileira, foi a Constituição de 1937, de notório caráter autoritário, que introduziu o instituto do plebiscito. Aqui, como alhures, o plebiscito foi inserido no direito doméstico como instrumento em concomitância com a centralização de poderes pelo chefe do Poder Executivo, o Presidente da República Getúlio Vargas (AUAD, 2005, p. 16).

Assim, aquela Carta Magna, em seu artigo 5º, § único, atribuiu ao Presidente da República a faculdade de submeter a plebiscito a decisão acerca da incorporação, subdivisão,

desmembramento ou anexação de Estados. Em sentido ainda mais centralizante, o artigo 174, § 4º, facultava ao Presidente da República convocar plebiscito nacional quando projeto de emenda constitucional de sua iniciativa fosse rejeitado pelo Parlamento, ou quando este aprovasse definitivamente projeto de iniciativa da Câmara dos Deputados a despeito da oposição do Presidente (BRASIL, on line).

O artigo 187 daquela Constituição também previu que o próprio texto constitucional fosse submetido a posterior plebiscito nacional a ser definido por decreto do Presidente da República, o que não veio a se concretizar (AFFONSO, 1996, p. 13). Na verdade, ao que parece, não se fez nenhum uso do plebiscito sob o pálio da Carta de 1937. De qualquer forma, o plebiscito foi então introduzido na tradição constitucional brasileira, e a Constituição de 1946 viria a finalmente institucionalizar um mecanismo de consulta popular em caráter permanente, ao tornar conditio sine qua non a realização do plebiscito para alterações territoriais dos Estados (AFFONSO, 1996, p. 14; DANTAS, 2009, p. 56).

Não foi mais feliz a introdução do plebiscito na realidade sociopolítica federal. Em 1963, os brasileiros foram convocados, pela primeira vez, a votar numa consulta popular direta em contexto de instabilidade política e fortes tensões entre as tendências do Poder Executivo e a da oligarquia econômica e política dominante. Deliberando sobre o sistema de governo, ao final a maioria decidiu pelo presidencialismo, o qual, assim, suplantou o parlamentarismo imposto em 1961 para frear os poderes do presidente João Goulart (GARCIA, 2004, p. 10). Contudo, o retorno ao sistema presidencialista por livre escolha popular foi logo sucedido, após a apresentação das “Reformas de Base” de Goulart, pelo golpe de 1964 (AUAD, 2005, p. 16-17).

Após a promulgação da Carta de 1988, tem sido raro o uso, em âmbito nacional e mesmo local, dos institutos da democracia semidireta, tanto pela legislação restrita, que tornou os mecanismos de democracia semidireta estranhamente “controlados” pelos órgãos de democracia indireta (ALVES, 2010, p. 253), quanto, certamente, pela escassa educação da maior parte do eleitorado para o efetivo exercício de tais direitos (AUAD, 2005, p. 39).

O plebiscito, sob a nova ordem constitucional, foi realizado uma única vez, em 1993, por determinação do artigo 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Lei Maior. Seu objetivo foi que o povo decidisse se o Estado brasileiro seria uma monarquia constitucional ou uma república, bem como se teria um parlamentarista ou presidencialista (AUAD, 2005, p. 37). Entretanto, não é possível afirmar que se tratou de plebiscito convocado em função da pressão e discussão da sociedade, tendo sido mais

decisiva a influência de alguns cientistas políticos e a polêmica interna na Assembleia Constituinte (AVRITZER, 2006, p. 37, 41).

A iniciativa popular de lei tem sido o instrumento mais utilizado no Brasil pós- redemocratização (AVRITZER, 2006, p. 36-37). Esse mecanismo ganhou alguma divulgação no País quando do movimento liderado pela autora de telenovelas Glória Perez, cuja filha fora assassinada por ator que contracenava com ela em telenovela, e que visou a incluir o homicídio qualificado no rol dos crimes hediondos, inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, disposto no artigo 1º da Lei nº. 8.072/90, o que foi alfim alcançado com a edição da Lei nº. 8.930/94. É importante ressaltar que, já nessa iniciativa popular pioneira, revelou-se decisiva a influência de grupos influentes e da grande mídia, no caso, a Rede Globo de Televisão, cujo apoio facilitou o atingimento da exigência constitucional do número de subscrições (AUAD, 2005, p. 37).

Em 1999, veio a ter destaque outra iniciativa popular, motivada pela percepção de corrupção eleitoral, tendo resultado na Lei nº. 9.840/99, que facilitou à Justiça Eleitoral o combate à compra de votos (AUAD, 2005, p. 38). A campanha favorável à edição dessa lei foi liderada pela Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o que certamente demonstra a importância do apoio e engajamento de influentes entidades da sociedade civil para o êxito de grande parte das iniciativas populares.

Em 2005, mais uma lei oriunda de iniciativa do povo foi inserida na ordem jurídica, a Lei nº. 11.124/05, que criou o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e instituiu o Conselho Gestor do FNHIS. É significativo que, nesse último caso, o Presidente da República alguns pontos do projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional (JORGE, 2009, p. 205). Recentemente, foi promovida a Campanha Ficha Limpa, que foi liderada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) e contou com ampla repercussão na mídia e nas instituições, bem como relevante participação de setores da sociedade. Daí adveio a Lei Complementar nº 135, publicada em 07 de junho de 2010 (CASTELO, 2010, p. 199), que visou a estabelecer critérios mais rigorosos de elegibilidade para os cargos eletivos. Mais uma vez, a proposta pugnada por milhares de cidadãos necessitou da assinatura de parlamentares, porque a dificílima verificação das assinaturas dos eleitores inviabilizava a tramitação na forma de iniciativa (MELCHIORI, 2011, p. 86-87).

Ainda mais demonstrativo das persistentes limitações à realização da democracia semidireta no País é o fato de que todos os três projetos apresentados pelo povo não lograram ser aprovados pelo procedimento típico da iniciativa popular, dadas as inúmeras exigências

institucionais, e precisaram ser subscritos por algum representante político que encampasse a proposta. Parece, contudo, que as iniciativas continuam tendo um evidente elemento de pressão sobre os parlamentares, daí porque, mesmo quando ao final se faz necessária a apresentação da proposta por um legislador, os grupos interessados na iniciativa popular ainda a realizem (ALVES, 2010, p. 239-240). Na prática, a iniciativa popular torna-se relativamente dependente de entes representativos para ser bem sucedida. Tantos obstáculos à efetividade da iniciativa popular levaram mesmo à criação da Comissão Permanente de Legislação Participativa, que visa a complementar os meios de aproximar o povo da atividade legislativa (ALVES, 2010, p. 238-239; GARCIA, 2004, p. 10-12).

Até o momento, um único referendo foi realizado no País, o dito “referendo sobre o desarmamento” ocorrido em 23 de outubro de 2005 em cumprimento do artigo 35 da Lei nº. 10.826/2003, a qual fixara a proibição do comércio de armas de fogo e munições no território nacional, mas condicionara a eficácia da determinação a aprovação em referendo popular. O referendo resultou na rejeição majoritária à referida proibição (MENDES, 2007, p. 714; JORGE, 2005, p. 205). Como ressalta Avritzer (2006, p. 37), o primeiro uso do referendo no País se deveu não a percepção da necessidade de ratificação pelo povo de uma lei, mas sim a uma solução circunstancial encontrada para superar o impasse estabelecido no Congresso Nacional, remetendo-o para a própria população. O resultado, igualmente, teria sido bastante influenciado por questões da conjuntura política de então.

O artigo 1º, § único, da Constituição de 1988 afirma a cotitularidade do exercício do poder político entre o povo e os representantes eleitos. O povo não é mais apenas detentor de soberania que se manifesta, exerce-se através de representantes, nem é mais somente sujeito passivo nas relações jurídico-políticas: ele tem poder para intervir na criação da ordem jurídica e na administração da coisa pública. O pré-citado dispositivo limita ou conforma o exercício do poder, tanto em sentido técnico quanto substancial, quando impõe “nos termos desta Constituição”, exprimindo a vinculação tanto dos representantes como do próprio povo aos princípios e regras da Lei Fundamental (SGARBI, 1999, p. 129).

O artigo 14, em seus incisos, consagrou alguns mecanismos de democracia semidireta no País: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de lei, a serem exercidos “nos termos da lei”. Ressalte-se que, no primeiro turno de votação do projeto de Constituição, o veto popular constou do artigo 16, caput, da Lei Fundamental mediante a Emenda Substantiva nº. 2P935-2 apresentada pelo Senador Lavoisier Maia. Contudo, o veto popular não foi aceito por várias lideranças políticas e, no segundo turno de votações, apresentou-se emenda para a retirada daquele mecanismo, a qual foi aprovada (SGARBI, 1999, p. 25-26).

Outro indício da reação conservadora que acabou por limitar a normatização dos mecanismos de democracia semidireta é o fato de que a expressa menção dos referendos e iniciativas populares referentes a emenda constitucional, constante de anteprojetos e projetos e, por fim, do § 2º do artigo 74 do Projeto aprovado na Comissão de Sistematização, foi em seguida excluída quando da votação no Plenário (SILVA, J. A., 2000, p. 65). Não obstante, deve-se salientar que a consagração de instrumentos de democracia direta em sentido amplo – e não apenas plebiscitos orgânicos, como no passado – foi uma inovação da Carta Magna de 1988 (MENDES, 2007, p. 714).

O legislador brasileiro demorou quase uma década para regulamentar os incisos do artigo 14 da Carta Magna. Sem embargo, antes da edição da Lei nº 9.709/98, Adrian Sgarbi (1999, p. 130-131) considerava desnecessária a regulamentação para que os institutos da democracia semidireta fossem aplicados no País em virtude da aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais (art. 5º, § 1º da Constituição), da ausência de vedação constitucional à edição de norma geral ou à especificação dos procedimentos conforme o caso e da competência do Congresso Nacional e da Justiça Eleitoral para editar normas operacionais tendentes à realização de atos concretos. Ademais, segundo o autor, o plebiscito realizado por força do art. 2º do ADCT não deixou de ser realizado em face da ausência de regulamentação do artigo 14.

Não obstante tais argumentos, a aplicação segura e estável dos instrumentos da democracia semidireta, a toda evidência, dependia da normatização de procedimentos e limites (formais ou substanciais) pela legislação infraconstitucional. Do contrário, tornar-se-ia difícil e, sobretudo, mais insegura a utilização daqueles institutos, os quais, como já foi discutido, foram e são alvo de tentativas manipulatórias de governos e grupos de pressão. Ademais, a inserção sólida e permanente dos mecanismos participativos no cotidiano da gestão da coisa pública dependeria de diretrizes definidas. Assim, conclui-se que a ausência de regulamentação negava funcionalidade ao sistema do governo semidireto (AUAD, 2005, p. 13).

Enfim, em 1998, foi promulgada a Lei nº. 9.709/98 a fim de regular o artigo 14 da Lei Fundamental. Anteriormente, havia tão-só a Lei Complementar nº. 01/67 a regular o plebiscito orgânico relativo à alteração territorial dos municípios (DANTAS, 2009, p. 57). Apesar das expectativas de que a disciplina do assunto viesse a viabilizar e estimular a aplicação do plebiscito, referendo e iniciativa popular, o diploma legal revelou-se bastante lacunoso, conservador e restritivo ao aumento do alcance da participação popular direta, mantendo aqueles institutos envoltos em dúvidas e inefetividade (AUAD, 2005, p. 14). Na

verdade, a lei que acabou por ser aprovada foi bastante mais restritiva que o Projeto de Lei nº. 3.876, de 1993, segundo o qual o povo poderia ter iniciativa para convocar consultas populares, ainda hoje inadmitida na ordem federal brasileira (ALVES, 2010, p. 236).