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3.3 Mecanismos da democracia semidireta

3.3.2 Plebiscito

Há entendimento doutrinário, bastante difundido no Brasil, no sentido de que esse instituto consiste numa consulta prévia aos cidadãos sobre uma matéria, a qual só virá a ser objeto de providências legislativas se o procedimento plebiscitário resultar na aprovação popular, a qual consiste basicamente no assentimento para que certa medida seja adotada pelo Estado (ACQUAVIVA, 1987, p. 150; DALLARI, 1998, p. 154).

Como se pode extrair da lição de Bonavides (2010, p. 309-3010), o termo “plebiscito” não é usado com rigorosa distinção em relação ao referendum nos Estados de

democracia semidireta. Não obstante, a maioria da doutrina intenta precisar-lhe características autônomas, ainda que chegue, na verdade, a conclusões diversas.

Segundo Canotilho (1999, p. 289), o traço particular do plebiscito seria o seu elemento “decisionista”, que o diferencia mesmo quando a consulta popular se dirige a uma lei ou norma constitucional, caso em que se assemelha ao referendo. Por isso, o autor luso o define como “a pronúncia popular incidente sobre escolhas ou decisões políticas”, a exemplo da escolha acerca da forma de governo ou da confiança no chefe político.

A Constituição espanhola de 1978, em seu artigo 92, parece designar o plebiscito nessa acepção política, chamando-o de referéndum consultivo, convocado em face de

decisiones políticas de especial trascendencia (AFFONSO, 1996, p. 16; ESPANHA, 1978). Para alguns autores, o plebiscito não constitui um instituto autônomo, mas sim um referendo consultivo. É o caso de Darcy Azambuja (2008), porém José Afonso da Silva (2000, p. 146) considera errada tal classificação.

A doutrina italiana majoritária entende que o plebiscito se distingue por referir-se a medidas políticas – e não a textos normativos – de relevância constitucional, ou seja, atinentes à estrutura do Estado ou do governo. Nessa concepção, o referendo se dirigiria a atos normativos; o plebiscito, a eventos ou acontecimentos relevantes, como a escolha de representantes ou a anexação de territórios (BONAVIDES, 2010; GEMMA, 1998, p. 927).

No Brasil, Osvaldo Ferreira de Melo (2000, p. 84) parece também definir o plebiscito com base em seu objeto: “manifestação popular, através do voto, sobre assunto de relevante interesse geral”. Por sua vez, Pinto Ferreira (1993, p. 189) também centra a distinção conceitual no ato sobre o qual se consulta o povo, porém com foco no Poder do qual aquele deriva: “O referendum em sentido restrito se aplica a uma decisão do povo sobre uma medida legislativa. O plebiscito é a decisão do povo sobre um ato do Executivo”.

Outros autores entendem que o plebiscito se caracteriza pela decisão unilateral e válida por si mesma que o povo nele adota, porque o resultado do procedimento plebiscitário expressaria automaticamente a vontade popular – tanto uma escolha essencialmente política como uma lei – sem a necessidade de colaboração entre o povo e os órgãos representativos que se verifica nos referendos. Destarte, ao contrário da definição anteriormente apresentada, essa concepção do plebiscito admite sua aplicação no âmbito estritamente legislativo, desde que o procedimento seja tal que baste o consentimento do povo para a lei integrar a ordem jurídica (BONAVIDES, 2010).

A definição dada por Marcello Cerqueira (2001, p. 138 apud GARCIA, 2004, p. 5) parece considerar tanto o aspecto da anterioridade quanto o do objeto essencialmente

político ou constitucional. O plebiscito, assim, seria “o elemento propulsor da atividade interna constitucional (adesão a determinada forma de governo, a designação de uma dinastia ou de quem irá reinar, por exemplo), enquanto o referendo é empregado para ratificar as leis já aprovadas pelo Legislativo”.

O plebiscito foi adotado no artigo 14, I, da Constituição Federal de 1988. Importa destacar que a Lei nº. 9.709/98, cujas normas serão avaliadas no capítulo seguinte, estabeleceu expressamente a diferença terminológica entre o referendum e o plebiscito no ordenamento jurídico brasileiro (BACKES, 2005, p. 3), tomando por critério a prévia existência de ato estatal sobre o qual o eleitorado deva pronunciar-se:

Art. 2o Plebiscito e referendo são consultas formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa.

§ 1o O plebiscito é convocado com anterioridade a ato legislativo ou administrativo,

cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido. § 2o O referendo é convocado com posterioridade a ato legislativo ou administrativo,

cumprindo ao povo a respectiva ratificação ou rejeição. (BRASIL, 2011b)

Na Europa, o plebiscito tem sido reputado um tanto negativamente após a má experiência histórica a ele associada, decorrente dos plebiscitos napoleônicos e do regime nazista (COMPARATO, 2006, p. 87). Durante a Revolução Francesa, inspirada já pela noção de soberania popular, houve uso do plebiscito, porém foi durante a ascensão de Napoleão que o instituto foi instrumentalizado para legitimar, pela aprovação da maioria do povo, mudanças constitucionais em seu favor até, por fim, legitimar sua coroação como imperador (1804). O manuseio dos plebiscitos para a concentração de poderes nas mãos de líderes políticos novamente ocorreria com Napoleão III, inclusive com a aprovação de nova Constituição em 1852, que restaurou o Império, cuja preservação foi um dos objetivos da Constituição outorgada submetida a plebiscito em 1870. Por fim, sob os governos de Charles de Gaulle, as consultas populares permitiram, mais uma vez, o aumento dos poderes de uma liderança política carismática (BONAVIDES, 2010, p. 297, 311; CANOTILHO, 1999, p. 290-291).

Já na Alemanha a consulta prévia restou manchada pela sua utilização na instável República de Weimar (CANOTILHO, 1999) e, empós, por seu largo uso pelo regime de Adolf Hitler, com destaque para a anexação da Áustria pela Alemanha em 1938. Segundo Ana Luiza Backes (2005, p. 13), não se realizaram mais plebiscitos na Alemanha Ocidental após a era nazista. No Brasil, igualmente, o plebiscito pioneiro ocorreu em 1963, num contexto de grande instabilidade política, e resultou na rejeição ao parlamentarismo imposto poucos anos antes (ACQUAVIVA, 1987, p. 150).

Quiçá devido à peculiar emergência da democracia semidireta na França, em momentos de perturbação institucional, relevante doutrina francesa propôs mais uma definição para o plebiscito de modo a distingui-lo do referendum. Assim, o plebiscito se caracterizaria por os eleitores disporem apenas da faculdade de aprovar ou rejeitar, sem alternativas efetivas, e, destacadamente, por objetivar uma outorga de poderes ou uma confirmação de apoio popular para um Chefe de Estado. Seria, assim, um instrumento antecedente da dita democracia cesariana, daí Duverger, expoente dessa concepção, considerar que no referendo “vota-se por um texto” e no plebiscito, “por um nome” (DUVERGER, 1956, p. 228 apud BONAVIDES, 2010, p. 311).

Contudo, as vicissitudes históricas do plebiscito, que lhe tem legado opiniões negativas na doutrina, não podem ser vistas como inerentes à essência ou à estrutura procedimental desse mecanismo de democracia semidireta. É importante ressaltar a observação de Caio Márcio de Brito Ávila (2002, p. 62 apud AUAD, 2005, p. 21-22): “O plebiscito pode ser utilizado para o bem, desde que haja comprometimento e vontade política para uma ampla discussão acerca dos temas que serão submetidos à consulta”.

Gladio Gemma (1998) salienta que as definições sugeridas pela doutrina, no propósito de distinguir o plebiscito do referendo, não atentam para o uso que a linguagem tem feito dessas palavras. Conclui o autor que uma definição normativa de plebiscito poderia ser feita com base em certos critérios, classificando-se as consultas populares a partir desses, no entanto, do ponto de vista descritivo, a experiência histórica torna sinônimos os dois mecanismos de participação popular. Nesse sentido, as diferenças de aplicação e sentido usualmente dados ao plebiscito limitar-se-iam a explicar, aproximadamente, o fato de o plebiscito ser frequentemente associado às pronúncias populares sem atos estatais prévios e, em regra, sobre fatos – e não atos normativos – excepcionais e, por conseguinte, não previstos na Constituição.