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Vontade da maioria e proteção das minorias na evolução teórica da democracia

Aristóteles diferenciou os governos corretamente estruturados dos corruptos – sem confundir com as diferentes formas de governo – com fulcro num mesmo critério: e exercício do poder para o bem comum. Recorreu à comparação com a autoridade do senhor sobre as crianças e a mulher para afirmar que o governante deveria sempre desempenhar a autoridade no interesse dos que obedecem, só excepcionalmente no interesse do próprio exercente. Não havendo esse propósito no governo, sendo este voltado para o bem dos próprios governantes, o Estado6 seria despótico, e não uma comunidade de homens livres, como deve ser (ARISTÓTELES, 1985, p. 89-90).

Portanto, quando o “governo constitucional” é exercido pela maioria7 para

benefício exclusivo da maioria, tem-se um desvio do governo (chamado, com isso, de

6 Utilizam-se neste texto alguns conceitos e termos que não foram utilizados por Aristóteles, tais como Estado,

no intuito de melhor traduzir seus relevantes posicionamentos sobre o governo conforme a linguagem e os conceitos normalmente usados hodiernamente.

7 Trata-se de governo da maioria, no caso, porque é um governo sob o comando dos pobres, daí porque

“democracia”). Da mesma forma, o governo duma só pessoa (monarquia) ou de poucos (aristocracia) pode se degenerar, com seu domínio por interesses dos próprios governantes, em uma tirania e uma oligarquia, respectivamente. Assim, o estagirita fazia a “qualidade” da forma de governo depender mais de sua atenção ao bem comum do que à proporção da população que dele participasse. Saliente-se que a doutrina identifica semelhanças entre o bem comum e a vontade geral enfocada por Rousseau, ambos inteiramente distintos da soma das vontades individuais e mais propriamente consistentes na síntese harmoniosa delas (MATTEUCCI, 1998b, p. 106).

A par disso, adverte que o governo que atua no interesse do monarca, dos ricos ou dos pobres – quando são esses a deter o poder – não é exercido para o bem de toda a comunidade (ARISTÓTELES, 1985, p. 91-92). Darcy Azambuja (2008, p. 349) identifica a base da distinção aristotélica entre os governos na moderna concepção da democracia como “governo para o povo”, visto que a expressão significa o exercício do poder em prol da mais abrangente concepção de povo. Trata-se de “governo para o bem de todo o povo” ou “para o bem público”, não só dos governantes nem apenas da maioria.

Utilizando a imagem da tomada dos bens dos governados pelos governantes, Aristóteles (1985, p. 97-98) aduz que a injustiça do domínio da maioria pobre sobre a minoria rica é tão evidente quanto a perpetrada pela minoria rica sobre a maioria. Não obstante, o filósofo reconhecia que o “princípio de que a maioria é necessariamente mais apta a exercer o poder soberano” é plausível e provavelmente correto: os indivíduos, imperfeitos e limitados, poderiam juntos, cada qual com sua porção de argumentos e de bondade, decidir melhor que um só grupo de pessoas “melhores”. Essa possibilidade, no entanto, não seria algo verificável, necessariamente, em toda democracia ou em toda maioria (ARISTÓTELES, 1985, p. 97-98).

Releva também destacar alguns dos posicionamentos do genebrino Jean-Jacques Rousseau, e se deve insistir em avaliar, brevemente, seu pensamento sobre a questão em exame especialmente por ela ter sido objeto de tantas controvérsias e interpretações distorcidas ou parciais, que levaram alguns a enxergar nele, erradamente, um pugnador da soberania absoluta do povo (COMPARATO, 2003, p. 27), da democracia direta incontrastável ou até de regimes totalitários (BURGELIN, 1996, p. XXI), o que pode ser parcialmente atribuído às contradições encontradas nos textos políticos do autor (BONAVIDES, 2007a, p. 170). Alguns aspectos sobre a vontade geral e a relação entre

pobres, respectivamente, implica que é “acidental” as oligarquias serem governadas por poucos e as democracias, pelas massas.

maiorias e minorias no pensamento de Rousseau já foram abordados no primeiro capítulo desta obra, mas é mister desenvolvê-los um pouco mais.

Rousseau, em O Contrato Social, propugna uma solução para a clássica antítese entre o indivíduo, com sua liberdade, e o Estado, responsável por sua regulação, enunciando-a assim: “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes” (ROUSSEAU, 1996, p. 20-21).

A “alienação total de cada associado, com todos os seus direitos” não é incondicional, pois, sob pena de ferir o pacto social, pressupõe que as condições que podem ser impostas a cada um só podem ser as mesmas suportadas por todas as outras pessoas: “cada qual dando-se por inteiro, a condição é igual para todos, e, sendo a condição igual para todos, ninguém tem interesse em torná-la onerosa para os demais” (ROUSSEAU, 1996, p. 20-21). Assim, um grupo não pode, somente por representar maioria do povo, pretender impor a dadas minorias condições muito mais restritas de liberdade do que as de que desfruta, pois isso iria de encontro ao pacto social por cujas convenções o governo pode ser exercido legitimamente sem que o homem perca de todo sua liberdade (liberdade agora não natural, mas regulada, porém segura).

A partir dessas considerações, Rousseau trata da volonté générale, base de seu pensamento político, já que se trata da “única capaz de fazer com que o Estado atenda ao fim para o qual foi instituído, a saber, o bem comum” (BONAVIDES, 2009, p. 228), e nesse ponto reside certa semelhança com a conclusão de Aristóteles sobre ser a cidade “correta” aquela cujo governo se volta para o bem comum, não para o bem dos governantes, mesmo que estes fossem a maioria (a multidão). Rousseau, similarmente, não atribui à vontade caráter geral por uma questão de mera grandeza numérica ou proporção, mas porque seu conteúdo se manifesta como uma síntese dos interesses diferentes dos particulares no que lhes há de comum (ROUSSEAU, 1996, p. 33). Ademais, a vontade geral, sempre boa, é extraída da deliberação de particulares bem informados e inspirados pela razão livre de intermediários e da influência das facções e associações, em razão das quais, se houver uma dominante, o número de interesses diversos é reduzido a tal ponto que a opinião vencedora não é nenhum interesse comum, não passando de opinião particular (ROUSSEAU, 1996, p. 37-38). Nesse caso, a deliberação do povo poderá, sem dúvidas, tender ao mal.

Dessas características decorrem as observações fundamentais para que não se interprete a “vontade geral” como ideia legitimadora de toda e qualquer decisão majoritária na sociedade política. Primeiramente, o genebrino afirma “nunca se corrompe o povo, mas com

frequência o enganam” para em seguida aduzir que “via de regra, há muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; esta se refere somente ao interesse comum, enquanto a outra diz respeito ao interesse privado, nada mais sendo que uma soma das vontades particulares”. A vontade geral “deve partir de todos, para aplicar-se a todos” e não deve ter objetos específicos e individuados (ROUSSEAU, 1996, p. 37; 38).

Assim, embora o filósofo esclareça que a vontade será geral apenas quando todos os votos, sem exceção, forem contados (ROUSSEAU, 1996, p. 34), adverte também que “deve-se compreender, nesse sentido, que o que generaliza a vontade é menos o número de votos que o interesse comum que os une, pois, nessa instituição, cada qual se submete necessariamente às condições que impõe aos demais” (ROUSSEAU, 1996, p. 41).

Por outro lado, poder-se-ia cogitar se Rousseau, em outras passagens, não estaria a propugnar um poder absoluto da maioria dos cidadãos. Com efeito, o autor aduz que não existe lei fundamental obrigatória – nem sequer o contrato social – para o corpo do povo, pois o soberano, ao contrário do indivíduo que é súdito e parte do Estado ao mesmo tempo, não pode contratar consigo mesmo (ROUSSEAU, 1996, p. 23-24). Seria, então, impossível impor limites à soberania do povo ainda que este estivesse a esmagar as minorias?

Para bem compreender a lição de Rousseau, importa ressaltar que, para ele, a soberania é o exercício da vontade geral (ROUSSEAU, 1996, p. 33), e é o pacto social, cujas obrigações são obrigatoriamente mútuas, que assegura ao “corpo político” um poder absoluto sobre todos os associados. Ademais, o que é fundamental, esse poder absoluto só se torna “soberania” quando é dirigido pela vontade geral. Rousseau, portanto, ata a soberania à manifestação e realização da vontade geral, que, por sua vez, sempre tende à utilidade pública, à imposição de condições iguais para todos, enfim, ao bem comum (ROUSSEAU, 1996, p. 33-39). Isso fica claro na seguinte passagem do Contrato Social (ROUSSEAU, 1996, p. 34-35):

Pela mesma razão por que é inalienável, a soberania é indivisível, visto que a vontade ou é geral ou não o é; ou é a do corpo do povo, ou unicamente de uma parte. No primeiro caso, essa vontade declarada é um ato de soberania e faz lei; no segundo, não passa de uma vontade particular ou de um ato de magistratura; é, quando muito, um decreto.

A constatação feita acima significa que, no pensamento fortemente pessimista do genebrino (BONAVIDES, 2007a, p. 169), não há uma decorrência lógica entre a deliberação do povo e a bondade e legitimidade dela, pois é frequente que as vontades particulares sobrepujem a vontade geral que resultaria da síntese dos diversos interesses em jogo. Por isso,

conclui Fábio Konder Comparato (2003, p. 26) que é um erro interpretativo considerar Rousseau o criador do princípio da soberania absoluta do povo.

No seu apogeu, no século XIX, o liberalismo legou à contemporaneidade o Estado de Direito, marcado pela limitação dos poderes por meio da primazia da lei e pela afirmação constitucional dos direitos individuais, em ordem a estruturar um governo não só sub lege, mas também delimitado pelos direitos reconhecidos como invioláveis (BOBBIO, 1986, p. 20; 2000, p. 17-19). Simultaneamente, embora parte da doutrina tenha asseverado que o constitucionalismo vai de encontro à democracia, limitando ilegitimamente a vontade popular (VIEIRA, 2008, p. 1-3), o Estado constitucional dotado de alguma forma de jurisdição constitucional foi sendo consagrado no processo de formação das democracias modernas. O Estado constitucional e sob o império da lei viria a caracterizar a democracia moderna.

Bobbio (2000, p. 51-53) salienta o contraste que houve entre um liberalismo radical, pró-democracia, e a reação conservadora, liberal, mas antidemocrática, que cuidou de opor-se à ampliação do sufrágio e, com base nas experiências tortuosas da democracia na França (onde, mais de uma vez, redundou no cesarismo), viu na democracia o perigo da tirania das multidões e demagogos. Na mesma medida, opuseram-se democratas liberais, interessados na limitação dos poderes públicos, e os não liberais, mais voltados para a conquista e divisão do poder público para o povo do que para a sua limitação e o respeito à esfera privada.

O problema da limitação da vontade da maioria veio à tona pelo menos desde os embates entre federalistas e opositores ao federalismo nas recém-independentes treze colônias britânicas da América, os quais foram transpostos para a teoria nos célebres artigos intitulados de O Federalista (BOCHSLER; HUG, 2009, p. 3) e, sobretudo pela pena de Madison, influenciaram seguramente, apesar das imperfeições teóricas e críticas posteriores, a visão política dos estadunidenses e a inserção na ideia de democracia dos indispensáveis compromissos entre maioria e minoria (DAHL, 2006, p. 4-5).

No artigo número IX, Alexander Hamilton manifestou a firme descrença nas pequenas democracias diretas da Grécia e da Itália, em contínuos conflitos entre facções que as “mantinham em estado de perpétua oscilação entre os extremos da tirania e da anarquia” (HAMILTON, 1993, p. 128). Essas imperfeições teriam constituído exemplos oportunos para os fautores do despotismo a pretexto de conferir ordem à sociedade, bem como poderiam tornar não recomendável os governos baseados na liberdade civil não fossem as criações e avanços da moderna ciência política que permitem aumentar as virtudes e reduzir os vícios do governo civil, a saber: a distribuição de poder; um judiciário com magistrados inamovíveis;

legislativo com representantes eleitos; e, por fim, a importante “ampliação da órbita” do sistema político, a sugerir a União federal como a melhor opção para os nascentes Estados americanos (HAMILTON, 1993, p. 128-130).

Por sua vez, James Madison tratou mais especificamente do tema no artigo X d’O

Federalista. Escrevendo sobre a necessidade de um remédio para o grande vício do governo popular, a tendência ao facciosismo, sem que se rejeitassem seus princípios, Madison define a facção como “certo número de cidadãos, quer correspondam a uma maioria ou a uma minoria, unidos e movidos por algum impulso comum, de paixão ou de interesse, adverso aos direitos dos demais cidadãos ou aos interesses permanentes e coletivos da comunidade” (MADISON, 1993c, p. 133-134). Importa notar que o pernicioso facciosismo que preocupou Madison tanto desconsiderava os direitos dos que não pertenciam ao grupo – majoritário ou não – como ignorava os interesses perenes da sociedade em que viviam. Ademais, o enquadramento ou não de um governo como tirânico não tem relação qualquer com o tamanho do grupo dominante, mas sim com o fato de que esse grupo - seja a maioria, seja a minoria - imponha restrições severas aos “direitos naturais” dos demais cidadãos (DAHL, 2006, p. 9-10).

Para Madison (1993c, p. 133-135), as causas latentes da divisão da coletividade em facções está na própria natureza humana, dada a inevitabilidade da diversidade de opiniões e interesses enquanto a razão for falível, o homem misturá-la com seu amor-próprio e as aptidões humanas forem diferentes entre as pessoas. Eliminar o facciosismo por suas causas exigiria aniquilar a liberdade, solução insensata, ou fazer com que todos tivessem as mesmas preferências, o que é impraticável. Portanto, cabe ao governo somente controlar os efeitos do eventual predomínio de um grupo sobre outro, pois ambas as partes, como um homem individualmente considerado, ao serem “juízas de si mesmas” numa decisão legislativa – como acaba sendo necessário –, tendem a decidir com base no interesse próprio, e não na justiça e no bem público.

O problema no governo popular não é destacado quando a facção não logra ser majoritária, mas quando atinge a maioria encontra nos próprios contornos do governo popular meios admitidos para “sacrificar à sua paixão ou interesse dominante tanto o bem público como os direitos dos demais cidadãos” (MADISON, 1993c, p. 136), o que importa evitar sem que, com isso, destruam-se o espírito e a forma dessa espécie de governo. Daí Madison deriva a defesa da república extensa, que se pode assimilar à moderna democracia representativa, em oposição à “democracia pura”, isto é, à forma de governo em que um pequeno número de cidadãos decida direta e pessoalmente as questões coletivas.

Na democracia direta, não se poderiam encontrar remédios para o facciosismo: uma vez disseminado o interesse comum oposto ao interesse coletivo permanente ou aos direitos de parte dos cidadãos, não se poderia controlar à tendência ao arbítrio contra o grupo mais fraco. Madison considera uma suposição errada a dos defensores da democracia pura de que a igualdade política nivelaria as propriedades e opiniões de todos os indivíduos. Entretanto, é possível duvidar de sua posição também excessivamente otimista de que os representantes eleitos numa república teriam sabedoria para “discernir o verdadeiro interesse de seu país” e “patriotismo e amor à justiça” para evitar sacrificar o bem comum em favor de interesses temporários (MADISON, 1993c, p. 136-138). Os mecanismos da democracia indireta, com seus checks and balances (freios e contrapesos), propiciariam atingir decisões mais moderadas e condizentes com a pluralidade de interesses divergentes na sociedade, reduzindo significativamente o risco de predominância abusiva de facções majoritárias.

.As divisões sociais que preocuparam Madison e outros federalistas se centravam mais na desigualdade de propriedade entre as pessoas, que para o teorista era mesmo a principal fonte das facções (MADISON, 1993c, p. 134-135). Sem embargo, Madison também menciona como causas de divisão e conflitos de interesses as concepções distintas de religião e governo e a adesão a líderes. Para Papadopoulos (2002, p. 58), os founding fathers procuraram proteger, na verdade, uma minoria de privilegiados das vontades volúveis da maioria popular. Bobbio (2000, p. 34) chega a afirmar que o alegado temor das facções na democracia citadina não passava de pretexto para a instalação da república federal e refletia o “recorrente desprezo pelo povo por parte dos grupos oligárquicos”, em que pese esses “pais” dos Estados Unidos não imaginassem estar, com a democracia representativa, enfraquecendo o princípio do governo popular. De fato, ao retrucar aos que viam na Câmara dos Representantes o risco de se instalar uma minoria que subjugasse a maioria, Madison (1993b, p. 375-379) aduz que na república almejada não haveria quaisquer privilégios de classe, propriedade ou origem para o sufrágio ou a elegibilidade dos cidadãos.

A tirania da maioria abordada especialmente por Madison em fins do século XVIII era, segundo Sartori (1965, p. 115-116), de caráter constitucional: a opressão de um Legislativo majoritário sobre o Executivo ou, mais, a do partido majoritário sobre a minoria no próprio Legislativo. Nesse último sentido, Sartori entende que, efetivamente, somente as limitações jurídicas não são suficientes para enfrentar o problema, sendo indispensáveis as restrições institucionais a fim de impedir a maioria de abusar de seu poder.

Mais tarde, também em atenção ao “experimento democrático” dos Estados Unidos, Alexis de Tocqueville produziu seu clássico A Democracia na América. Bem mais

liberal que democrata, e preocupado com a manutenção da liberdade individual ante a contínua expansão do ideal democrático (BOBBIO, 2000, p. 56), Tocqueville via na democracia o governo da participação de todos na coisa pública e, mais que isso, da inspiração no ideal da igualdade, tendência que urgia controlar para que não chegasse ao ponto de afetar as liberdades individuais (BOBBIO, 2000, p. 57-58).

O fundamento da democracia na igualdade estaria refletido, no governo, no princípio da maioria (BOBBIO, 2000). Para Tocqueville (1980, v. 1, p. 232-233), o império moral da maioria, parte essencial do governo democrático, baseia-se na ideia de que “hay más conocimiento y saber en muchos hombres reunidos que en uno solo, más en el número de los legisladores que en la selección”, assim como de que “los intereses de la mayoría deben ser antepuestos a los de la minoría”. Cuida-se, enfim, da “teoría de la igualdad aplicada a las inteligencias”. O poder da maioria, tal como aplicado nos Estados Unidos de então, não só

era onipotente como podia impor-se rapidamente sem sequer dar a oportunidade para escutar as queixas dos prejudicados por suas medidas (TOCQUEVILLE, 1980, v. 1, p. 234).

A tirania da maioria nasceria das tendências da própria democracia e se caracterizaria por um “nivelamento” geral das pessoas – uma radicalização, por assim dizer, do ideal igualitário, a desembocar, finalmente, numa nova forma de despotismo (BOBBIO, 2000, p. 57). Tocqueville (1980, v. 1, p. 236-238) não nega à vontade da maioria a origem de todos os poderes, mas simultaneamente recusa sua onipotência, arguindo que esta é perigosa desde que sejam homens a exercê-la, independentemente de se numa monarquia, numa aristocracia ou numa democracia. A maioria contaria, na democracia, com a possibilidade de ser tirânica sem ser obrigatoriamente arbitrária, pois a tirania pode ser exercida pela própria lei (TOCQUEVILLE, 1980, v. 1, p. 238-239).

Assim, o autor apela para a justiça como lei geral adotada pela maioria dos homens, pondo-a como o “límite del derecho de todo pueblo”: pode-se desobedecer à lei

injusta não porque a maioria não tenha o direito de mandar, mas porque se apela “contra la soberanía del pueblo ante la soberanía del género humano” (TOCQUEVILLE, 1980, v. 1, p.

236-237). Dessa forma, a participação direta ou indireta do povo no processo decisório não bastaria para evitar a redução da liberdade, sendo mister a garantia das liberdades individuais e a descentralização nesses Estados que tendem a privilegiar o interesse coletivo sobre o particular (BOBBIO, 2000, p. 60).

Por fim, Tocqueville argui que os Estados Unidos não exerciam a tirania da maioria amiúde, mas também não tinham garantias para evitar sua ocorrência: opinião

pública, Poder Legislativo, Poder Executivo e Poder Judiciário estavam todos sob o comando ilimitado da maioria. Por isso, a solução apresenta é a seguinte:

Suponed, por el contrario, un cuerpo legislativo compuesto de tal modo que represente a la mayoría sin ser necesariamente esclavo de sus pasiones, un poder ejecutivo que tenga una fuerza propia y un poder judicial que seguirá siendo democrático y casi no dejará resquicio a la tiranía. (TOCQUEVILLE, 1980, v. 1, p. 238)

Por sua vez, John Stuart Mill era efetivamente um liberal democrata. Embora reconhecesse os males da democracia, considerava-a uma progressão dos princípios liberais. Ao mesmo tempo, não deixou de ver na paulatina ampliação do princípio democrático nos governos o risco da tirania da maioria (BOBBIO, 2000, p. 62-63; 68), preocupando-se com o estabelecimento de limites ao poder mesmo quando exercido pela maioria do povo e notabilizando-se pela valorização da diversidade na liberdade (BOBBIO, 1986, p. 110).

Segundo Mill (2002) em Considerations on representative government, mesmo sendo admitido que os males das monarquias e aristocracias derivavam, em boa parte, da promoção dos interesses próprios de um indivíduo ou do grupo aristocrático em oposição ao interesse geral da comunidade, os fautores da democracia tenderiam a não ver o mesmo perigo numa democracia, entendido como governo da maioria numérica, em que houvesse