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Vontade da maioria e o estatuto das minorias nas democracias contemporâneas

A democracia moderna distingue nos homens (e também nos grupos sociais, ao menos após o século XX, com a afirmação de direitos sociais, econômicos e culturais) uma esfera jurídica inviolável. Uma autêntica democracia da contemporaneidade só existe quando há, em sentido negativo, controles ao exercício do poder e, em sentido positivo, efetiva garantia de ingerência no processo de formação da vontade estatal.

Como ressalta Habermas (1999, p. 208-211), o processo democrático de realização de direitos subjetivos iguais pode abranger, sem necessidade de qualquer princípio a mais, a garantia da coexistência em igualdade de direitos dos vários grupos étnicos que compõem a sociedade multicultural, desde que esta disponha duma “esfera pública que funcione con estructuras de comunicación no cerradas que posibiliten y promueven discursos de autocomprensión”. Se se reconhecer que o homem não está apartado de sua identidade

coletiva, pode-se incluir no patrimônio dos indivíduos os “direitos de pertencimento cultural”, referentes à preservação das características das minorias ante a predominância da cultura majoritária. Aliás, esses direitos são efetivamente de caráter jurídico e não dependem, de modo algum, de qualquer consideração sobre o “valor igual” ou a “contribuição” de cada cultura para a sociedade ou a humanidade.

Segundo Bobbio (2000, p. 47), a democracia, à diferença do liberalismo, que almeja a ampla autonomia e o desenvolvimento pessoal do indivíduo em face do Estado, busca a afirmação e preservação da esfera individual em integração com a sociedade, de tal modo que esta seja reformulada: não mais será uma antagonista da liberdade individual, mas um grande acordo entre pessoas livres, cuja liberdade pessoal se realiza também no âmbito das instituições públicas (BOBBIO, 2000, p. 47).

Entretanto, na democracia, a proteção dos direitos fundamentais não é uma concessão estatal para pessoas destinadas a um papel passivo. Implica, além da ação estatal, mormente a real possibilidade ingerência dos cidadãos (e, aqui se pode acrescentar, cidadãos de grupos majoritários ou minoritários) na criação das decisões coletivas. Como afirma Bobbio (2000, p. 43-44), “o melhor remédio contra o abuso de poder sob qualquer forma [...] é a participação direta ou indireta dos cidadãos, do maior número de cidadãos, na formação das leis”. Por outro lado, as decisões tomadas num regime democrático só serão um reflexo fidedigno e equilibrado dos valores e interesses distintos que coexistem na sociedade se os indivíduos exercerem seu poder político (nas eleições, nos mecanismos de deliberação direta, etc.) no pleno gozo de todas as suas liberdades, as quais lhes permitem deliberar, informar-se e decidir segundo sua consciência (BOBBIO, 2000).

Se o governo democrático é exercido com atenção à opinião pública – mesmo não sendo sempre possível a decisão direta pelo povo (ZIPPELIUS, 1997, p. 346-347) –, é igualmente relevante perceber que nem todo posicionamento apoiado pela maioria da população constitui, automaticamente, uma “opinião pública”, embora em grande parte das situações haja essa correspondência (AZAMBUJA, 2008, p. 309-311).

No sentido que se lhe empresta na democracia, a opinião pública não é só um genérico “juízo da maioria” sobre tudo, tendo por objeto questões públicas que, portanto, não restrinjam ou vedem a esfera privada dos indivíduos (em outras palavras, a maioria não pode adotar, por decisão coletiva, um “pensamento” a ser seguido oficialmente, como uma religião). Além disso, a opinião pública emerge do ambiente de livre discussão, em que a prevalência da opinião majoritária se dá sem coerção ou sufocamento das posições minoritárias e, principalmente, em que as minorias podem discordar do resultado vencedor ao mesmo tempo em que, aceitando as regras que conferem legitimidade à decisão da maioria, submetam-se a ela sem considerarem necessário afastá-la pela força por constituir um “ataque” à sua esfera jurídica (AZAMBUJA, 2008, p. 311-312).

Destarte, a opinião pública se desenvolve em meio a limites impostos pelas regras democráticas e que se aplicam à maioria (não intervir nas liberdades fundamentais dos

demais) e também à minoria (admitir as decisões tomadas pela maioria pacificamente). Assim, um Estado profundamente dividido em grupos sociais (etnias, comunidades religiosas, etc.) que não alimentem um mínimo consenso e se mantenham unidos pelo uso da força dificilmente verá o surgimento de uma genuína opinião pública (AZAMBUJA, 2008, p. 312- 313).

Segundo Habermas (1999, p. 123-126), em sociedades pluralistas e cada vez mais multiculturais, urge desprender a cultura majoritária da cultura política geral, o que significa erigir uma cultura política (democrática) mais abstrata e comum, com que possam concordar todas as subculturas ao mesmo tempo em que cada uma delas pode manter suas características particulares. Assim se combinam a necessidade duma prática democrática comum e a igual oportunidade de exprimir e defender sua identidade. Do contrário, como o ordenamento jurídico envolve diretrizes ético-políticas, e os cidadãos são indivíduos reais sob a influência de suas referências de origem, pode-se instalar verdadeira luta entre a maioria e minorias cujos interesses e valores são marginalizados e que, pois, desfrutam só formalmente dos mesmos direitos que os integrantes da maioria. O grande problema ocorre quando “la cultura

mayoritaria políticamente dominante impone su forma de vida y con ello fracassa la igualdad de derechos efectiva de ciudadanos con outra procedência cultural” (HABERMAS, 1999, p.

123).

Por outro lado, Azambuja (2008) defende que a opinião pública e, por conseguinte, a democracia reclamam certa homogeneidade social, caracterizada pela nação a unir os indivíduos numa “comunidade espiritual” que mantém os laços entre seus membros a despeito das menores divergências entre eles. Dahl (2001, p. 166-167) considera a homogeneidade sociocultural uma condição subjacente favorável ao desenvolvimento da democracia, enquanto a diversidade, se atingir níveis muito conflitantes, prejudica a formação de soluções conciliatórias típicas de qualquer democracia, a menos que todas as outras condições no Estado sejam propícias ao regime (parece-nos, então, que precisamente aí deve estar o esforço em consolidar a democracia, fundada na ideia de igualdade, em meio à diversidade).

A concepção de democracia homogênea é cada vez menos factível nos Estados contemporâneos, em que as facilidades de comunicação, a emergência de sentimentos de identidade (étnicos, confessionais, comportamentais) e outros fatores causam uma sempre maior diversidade social mesmo nos países historicamente homogêneos. Em virtude disso, tornam-se ainda mais importantes, na atualidade, as observações feitas acerca dos limites

mútuos no processo de tomada das decisões coletivas e da necessidade premente de respeito ao jogo político e de “compromissos” (VIEIRA, 2008, p. 16-17).

De fato, Habermas (1999, p. 112-114) parte da teoria constitucional de Carl Schmitt para demonstrar a maior adequação da interpretação discursiva e inclusiva da democracia para o enfrentamento dos desafios das sociedades heterogêneas da atualidade. Segundo o filósofo, Schmitt destacava o aspecto político da Constituição e associava a construção do processo democrático à indispensável homogeneidade nacional, pondo a nação, uniforme e pré-política, como pressuposto de uma ordem jurídica comum. A expressão da vontade política corresponderia à autoafirmação do povo – “lo que el pueblo quiere es bueno

precisamente porque el pueblo lo quiere” (SCHMITT, 1983, p. 229 apud HABERMAS,

1999, p. 114) – e seria autêntica na medida em que houvesse o “cumprimento plebiscitário” da manifestação da escolha da massa popular, fazendo esse processo de tomada de decisão prescindir de um conteúdo normativo racional e de discussão pública.

Pode-se afirmar que, para Schmitt, pressupunha-se o consenso em torno da democracia a partir da origem e modo de viver comuns do povo, distinto dos demais. Ademais, “la igualdad, que pertenece a la esencia de la democracia, se dirige, por tanto,

sólo hacia dentro, no hacia afuera”, e “sólo hay uma democracia del pueblo y no una democracia de la humanidad” (SCHMITT, 1983, p. 227; 234 apud HABERMAS, 1999, p.

114-115). Nesse ponto, contrastava com as concepções humanistas mais universalizantes e admitia o sentido de inclusão dos direitos humanos só no tocante ao gozo privado das liberdades, enquanto o exercício da cidadania se mantinha atrelado à ideia de igualdade dos membros unidos numa só nação.

Sem embargo, o próprio Schmitt (1983 apud HABERMAS, 1999, p. 120-121) reconhecia que a associação entre o Estado ou, mais propriamente, o povo e a nação pode levar e, efetivamente, levou a várias formas de homogeneização cultural e assimilação amiúde forçada das minorias. Os Estados nacionais, em regra, nasceram de processos dolorosos de “limpeza” que, ao dar independência a uma nação antes minoritária, acabavam por criar novas minorias objeto de opressão e exclusão do Estado a título de “autodeterminação” do povo que lograra ter seu próprio Estado (HABERMAS, 1999). Esse grave perigo é, inclusive, evidente na democracia, forma de governo regida pelo princípio da maioria (ZIPPELIUS, 1997, p. 101).

Ao contrário, consoante Habermas (1999, p. 115-117), a posição republicana inspirada no direito racional não entende o povo como ente anterior à comunidade democrática, mas ambos como originados da decisão comum de pessoas que se reconhecem

mutuamente como livres e iguais – com uma série de direitos básicos a serem consagrados, pode-se acrescentar – visando a se associarem numa comunidade jurídica. Os direitos humanos aí estão ligados à existência da soberania popular e da democracia, pois aquela decisão por uma “autolegislação democrática” só se viabiliza quando há o reconhecimento recíproco e a realização daqueles direitos, sob pena de perda da legitimidade da regulação comum que pretendem adotar. Nessa esteira, os direitos básicos das pessoas decorrem da institucionalização do processo de autolegislação democrática segundo certa estrutura (que assegure, evidentemente, a igual participação de todos no processo de decisão e a universalidade da regulação).

Com a concepção republicana ora esboçada, torna-se desnecessária a vinculação da formação da vontade política como um consenso a priori dos particulares de um povo homogêneo. Mesmo pessoas absolutamente estranhas umas às outras poderiam organizar-se para formar uma ordem democrática comum (HABERMAS, 1999, p. 115-116). Daí a afirmação de Habermas (1999, p. 116): “gracias a sus propiedades procedimentales, el

proceso democrático garantiza la legitimidad, por ello puede substituir, cuando resulta necesario, las carencias de la integración social”.

Para superar a perspectiva individualista exacerbada, que imagina os homens tão isolados e autônomos a ponto de pôr em dúvida a possibilidade de organização em torno dum ordem jurídica intersubjetivamente reconhecida, Habermas (1999, p. 117-118) sugere seja priorizada a compreensão intersubjetivista da soberania popular. Desse modo, a formação da vontade política não implicaria só compromissos entre os associados, mas também discursos públicos de onde se possam extrair escolhas à luz de “intereses generalizados, orientaciones valorativas compartidas y princípios fundamentados” (HABERMAS, 1999, p. 117). A

proteção do indivíduo só poderia ser feita com a garantia de seu acesso e participação nas relações interpessoais e redes sociais.

Dessa forma, pode-se dizer que, se a homogeneidade não é precondição para o estabelecimento duma ordem político-jurídica una, também não é suficiente um ordenamento dotado de processos democráticos que apenas resguardem as esferas particulares das pessoas, pois a vontade popular, numa sociedade que reconhece a diversidade, forma-se no debate das ideias divergentes e no acesso livre dos indivíduos às instâncias públicas, estatais ou não. A autonomia pública, na teoria do discurso, demanda que todas as opiniões sejam livremente exprimidas e consideradas na formação das regras que disciplinam a comunidade jurídica e rejeita enfaticamente o “povo” como uma unidade coletiva que tenha “uma” vontade soberana, o que é implausível sobretudo nas sociedades modernas e, principalmente, acaba

por revelar o intento de evitar o dissenso e a diversidade, o que gera, nas piores hipóteses, a repressão dos que possuem valores e costumes distintos (SILVA, F.G. in NOBRE; TERRA, 2008, p. 107-110).

A compreensão da soberania popular à qual se filia Habermas relaciona a liberdade com “la autonomía privada y pública garantizada de igual modo para todos en el

seno de uma asociación de miembros libres e iguales de uma comunidade jurídica”

(HABERMAS, 1999, p. 118). A exclusão de pessoas do processo de decisão coletiva, assim como dos meios de relacionamento intersubjetivo afeta também a qualidade da democracia e o seu sentido de integração social, mais urgente que nunca nas sociedades contemporâneas.

Habermas recusa as defesas excludentes e hierarquizadas da autonomia privada (liberalismo) e da autonomia pública (republicanismo), que impedem a proteção e promoção de ambos os “momentos” da autonomia jurídica do homem, bem como podem acarretar duas formas de autoritarismo. A primeira, o “paternalismo das leis” a desconfiar da justeza da vontade popular e a reduzir seu âmbito de decisão em nome dos direitos privados. A segunda, a “ditadura da maioria” que privilegia a autonomia pública e, com isso, permite restringir as vontades individuais ou compeli-las à assimilação, sobretudo no caso das minorias dotadas de valores e interesses próprios, em nome da liberdade de autogoverno e do interesse majoritário (SILVA, F.G in NOBRE; TERRA, 2008, p. 98-100).

No que tange à democracia “direta”, Bobbio (1986, p. 12) aduz que a “estratégia do compromisso entre as partes através do livre debate para a formação de uma maioria” é muito mais típica da forma representativa que da “direta”. Os referendos problematizam as questões na forma de alternativas excludentes e, portanto, dificultam compromissos entre os grupos interessados e favorecem o choque. É por isso que, segundo Bobbio, são mais adequados “para dirimir controvérsias sobre princípios do que para resolver conflitos de interesse”. Não se pode olvidar que os institutos de democracia semidireta, ao menos idealmente, dispensam o papel de intermediários e asseguram ao povo a manifestação direta, desimpedida de sua vontade, promovendo, como já foi dito no segundo capítulo desta pesquisa, uma regra da maioria “pura” (MATSUSAKA, 2004 apud CHRISTMANN; DANACI, on line). Em tais condições, a promoção de estratégias e acordos para se alcançar uma decisão ou regra “intermediária” é seguramente obstaculizada.

Entretanto, a experiência democrática, tanto por representantes eleitos como por cidadãos no exercício direto da soberania popular, não sobrevive à degeneração de seu bem- vindo favorecimento à discussão aberta de divergências em um irredutível conflito entre indivíduos e grupos sociais por motivos étnicos, religiosos ou políticos, dentre outros. A

existência da democracia depende não só do Estado, mas dos indivíduos que compõem o povo, dispostos que devem estar à tolerância a divergências (AZAMBUJA, 2008, p. 355). A democracia resta completamente minada pela ausência de consenso pelo menos quanto às regras e valores fundamentais do regime democrático (BOBBIO, 1986, p. 61-63; VIEIRA, 2008, p. 17), que criam “denominadores comuns” e limites para as disputas e decisões políticas, inclusive entre a maioria e as minorias.

Do fato de a democracia contemporânea ser uma forma de governo baseada não só na ampla participação popular direcionada por “regras do jogo” estáveis, mas também no controle do poder estatal e na possibilidade do dissenso (BOBBIO, 1986), decorre necessariamente que as divergências – entre maioria e minorias, inclusive – são toleradas e, mais, amiúde necessárias para que a vontade política não reflita um só interesse, mas uma composição de várias preferências livremente manifestadas.

Nos conflitos mais acirrados entre maioria e minoria, deverá haver também um mecanismo institucionalizado que, estando fora do âmbito da discussão política, decida sobre a decisão tomada pela maioria com supedâneo nos princípios e regras que os próprios cidadãos consideraram, em caráter permanente e não contingente, como os direitos e deveres fundamentais de sua ordem jurídica. Tal instituição consiste, normalmente, de um Tribunal responsável pelo controle de constitucionalidade de leis e atos. Por conseguinte, cabe-lhe o controle jurídico da vontade da maioria, mas também, sob outra perspectiva, a preservação das normas que a mesma maioria do povo consagrou como perenemente importantes no momento constituinte de seu ordenamento, para além das circunstâncias e interesses momentâneos (VIEIRA, 2008, p. 17-20).

As insuficiências de participação e tolerância na democracia, que não devem levar à sua rejeição, mas à compreensão de que ela é um processo de convivência ainda inacabado – culminaram, na era contemporânea, em gravíssimos problemas políticos e sociais. No século XX, a humanidade provou das mais variadas formas de autoritarismo, totalitarismo ou fundamentalismo, amiúde a pretexto da defesa da maioria do povo, da nação, da religião dominante, etc., valendo-se com frequência de conceitos e processos com alguma aparência democrática que cooptaram vastas multidões para oprimir minorias (COMPARATO, 2003, p. 27). O caso clássico veio da Alemanha no ocaso da República de Weimar, onde a ausência de limites à liberdade política redundou no paradoxal uso da democracia para viabilizar sua destruição (ZIPPELIUS, 1997, p. 304).

A concepção de que o Estado, com respaldo na vontade da maioria – explícita ou implicitamente –, teria legitimidade para todo tipo de atos de força acarretou graves crimes

contra a humanidade. São também decisivos os efeitos do surgimento e universalização dos meios de comunicação de massa e de sua vasta instrumentalização pelo Estado, o que potencializou a capacidade de convencimento massivo da população. Por fim, não se tem mostrado estrita a relação, por muitos ansiada, entre a educação moral dos cidadãos e a consolidação da tolerância e razoabilidade (COMPARATO, 2003, p. 27).

Todos esses fenômenos fazem Fábio Konder Comparato (2003, p. 27), apesar de fautor da participação direta do povo, aduzir que “a soberania popular não pode ser absoluta” e que “não existe soberania inocente”. Quanto à realidade da opressão de grupos sociais mesmo quando a maioria efetivamente participa do processo decisório-político, o jurista não mantém ilusões:

Sabemos que a maioria do povo é capaz de esmagar “democraticamente” a minoria, em nome do interesse nacional. Ou – o que é cem vezes pior – que a minoria, detentora do poder de controle social pode se utilizar periodicamente do voto majoritário popular, para legitimar todas as exclusões sociais, em nome da democracia. (COMPARATO, 2003, p. 27)

O risco é precisamente o de que a atribuição ao povo dum poder absoluto e por definição correto crie, em seu dizer, “aquela hybris que a sabedoria grega sempre considerou a matriz da tragédia humana” (COMPARATO, 2003, p. 28). Assim, o jurista estabelece a distinção entre a democracia justa, moderada, em que predomina o bem comum, cuja moderna expressão são os direitos humanos, em oposição à democracia “pura e simples”, o regime da maioria do povo a exercer a soberania no seu próprio interesse. Daí a lição de Zippelius (1997, p. 304) sobre a democracia liberal:

Mas se ela se quer afirmar como ordem livre, também ela só pode conceder um certo espaço de actuação livre. Vale igualmente aqui como princípio da política o facto de a liberdade no Estado poder apenas ser optimizada mas não radicalizada, devendo, portanto, ter limites se se quiser manter, a longo prazo, o máximo de liberdade para o maior número de indivíduos possível.

Com efeito, a incontrastabilidade do poder de um ente não deixa de tender ao abuso para com os que não podem influir nele ou controlá-lo apenas porque, na democracia, será idealmente exercido, direta ou indiretamente, pelo povo (ou melhor, à parte dele que, em meio a essa coletividade heterogênea, revela-se dominante). O poder absoluto o é seja utilizado pelo monarca, seja pelo povo (SARTORI, 1965, p. 81), em que pese não se questione a idoneidade maior de sua titularidade e exercício pelo povo para tornar as escolhas juspolíticas mais consentâneas com o interesse geral.

Ante o exposto, Azambuja (2008, p. 353) e Baptista (2003, p. 196) argumentam, similarmente a Comparato, que a democracia é mais um governo para o bem de todas as

pessoas humanas, titulares de direitos inalienáveis, do que mero governo do povo ou da maioria (aqui se vê o teor individualista da democracia moderna). A soberania popular é poder, e nenhum poder pode ser ilimitado na democracia, pois há uma série de princípios fundamentais desse regime que, uma vez enfraquecidos ou afastados pelo próprio povo no exercício de soberania popular, implicariam o fim do próprio sistema democrático.

A ampliação dos mecanismos de democracia semidireta tem sido propugnada por relevantes doutrinadores e por parte da sociedade civil como meio de reforçar o princípio democrático, aproximar a democracia real do ideal de democracia e aumentar o poder político do povo no Estado. Em que pese não se possa objetar tais argumentos, cumpre evitar o que Sartori (1965, p. 78-84) denomina de perfeccionismo na busca do ideal democrático, cuja posição radicalmente favorável ao povo pode, uma vez derrubada a autocracia pela força de seus princípios, representar perigo interno para a própria democracia em maturação. Parece- nos que, como já tantas vezes ressaltado, a democracia exige equilíbrio mesmo para a aplicação de seus mais caros princípios.8 Nessa esteira, conclui Sartori (1965, p. 82):

Conclui-se daí que o único modo de o povo soberano manter o grau de poder de que necessita e de que é capaz de exercer consiste em não conceder a seus governantes um poder ilimitado. Isso quer dizer que um sistema pode subsistir como democracia somente se o princípio “Todo o poder para o povo” se modificar gradualmente, à medida que a democracia se aproxime mais da realização plena, para “Todo o poder para ninguém”. Uma democracia pode apenas perdurar se a maximização do ideal democrático não conduzir à rejeição, como inadequado, do princípio do contrôle do poder.

Leib (2006) argui que, sobretudo sob a perspectiva da democracia deliberativa, a