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3.3 Mecanismos da democracia semidireta

3.3.1 Referendo

Segundo Darcy Azambuja (2008, p. 255), o referendo é o instituto da direito constitucional que mais aproxima o governo da “democracia pura”. Sendo o mecanismo da democracia semidireta tradicionalmente mais usado, o referendo apresenta, naturalmente, grande diversidade de procedimentos e espécies, bem como acompanha todas as controvérsias relativas à democracia semidireta (GEMMA, 1998, p. 1074). A doutrina analisada, por sua vez, não se mostra consensual no que tange a seu significado, alcance e classificações.

O referendo, na definição de Paulo Bonavides (2010, p. 303), é instrumento pelo qual o órgão representativo elabora as leis, mas cabe ao povo conferir-lhes ou retirar-lhes a existência no ordenamento ou a eficácia. Os atos normativos, se submetidos a referendo por determinação constitucional ou por provocação do ente autorizado, só se aperfeiçoam quando o povo se pronuncia sobre eles, daí o jurista paraibano afirmar que o povo aí adquire “o poder de sancionar as leis”. Quanto ao objeto, a distinção básica entre os referendos se dá entre os

ordinárias. No entanto, Gladio Gemma (1998) distingue o referendo constituinte (para ratificação de uma Constituição) do constitucional (sobre revisão da Constituição).

Também o vinculando aos atos normativos, Osvaldo Ferreira de Melo (2000, p. 84) sucintamente define o referendo como “a submissão de uma lei ou de um tratado à aprovação popular através do voto”. Para José Afonso da Silva (2000, p. 146), caracteriza-se “no fato de que projetos de lei aprovados pelo legislativo devam ser submetidos à vontade popular, atendidas certas exigências”.

O referendum se originou, conforme Dallari (1998, p. 154), nas Dietas das Confederações Germânicas e Helvéticas, que submetiam a referendo popular todas as leis, e é de fato, ainda hoje, o instrumento de democracia semidireta mais destacado na Europa (KRIESI, 2008 apud MADUZ, 2010). Segundo Gary Sussman (2006), com a exclusão dos dois grandes “centros” de democracia semidireta (a Suíça e os Estados Unidos), as regiões do globo que, entre 1791 e 1998, mais fizeram uso do referendo foram, respectivamente, a Europa, a África e o Oriente Próximo e, por fim, as ex-colônias britânicas do Canadá, Austrália e Nova Zelândia.

Efetivamente, conforme Bonavides (2010, p. 304), a caracterização mais empregada do referendo o associa aos atos legislativos, havendo, porém, autores, tais qual Xifra Heras, que preferem adotar definição mais lata de modo a incluir outros instrumentos difíceis de enquadrar como referendo naquela concepção eminentemente “legislativa”. Nesse sentido é que se pode falar, adequadamente, nas categorias do referendo consultivo e

referendo arbitral.

O referendo consultivo é identificado como sendo sinônimo do plebiscito, o que será abordado no próximo tópico. Esse instrumento se caracterizaria pela consulta popular anterior a qualquer ato público, normativo ou não, visando a esclarecer a vontade popular e, com isso, gerar certas consequências, segundo as quais o referendo poderá ser: vinculante, o qual obriga o Estado a adotar a posição vencedora no referendo; de opção, em que o povo dispõe de várias alternativas sobre certa questão pública; ou meramente consultivo, quando os resultados tiverem caráter tão-só opinativo (BONAVIDES, 2010).

O referendo arbitral é normalmente associado à Constituição de Weimar, na Alemanha, que o instituiu como meio de solucionar controvérsias em matéria legislativa entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo, entre o Reichstag e o Reichsrat ou, ainda, entre membros do Reichstag. O mecanismo subsistiu nas Constituições estaduais de algumas unidades federativas da Alemanha (BONAVIDES, 2010).

A doutrina propõe algumas classificações para os referendos. Quanto à natureza jurídica, distinguem-se os referendos obrigatórios dos referendos facultativos (BONAVIDES, 2010). Os obrigatórios devem necessariamente ser aplicados por ordem da Constituição de dado Estado, especialmente para fins de reforma constitucional. Em especial, o referendum é exigido, muito frequentemente, para a ratificação de Constituições de modo a manifestar sua emanação imediata da vontade soberana do povo (MATTEUCI, 1998a, p. 60).

Já os referendos facultativos podem ser provocados pelas assembleias legislativas, pelo Poder Executivo ou, ainda, pelo povo – a depender das normas de cada Estado – para submeter à decisão popular certas questões de relevante interesse público (DALLARI, 1998; KRIESI, 2008 apud MADUZ, 2010). Segundo Santi Romano (1977, p. 318), a espécie facultativa abrange o instrumento do veto, dado que este permite aos cidadãos solicitarem, dentro de certo prazo, a consulta popular sobre lei aprovada pelo Parlamento à qual se opõem.

Por fim, Bonavides (2010) apresenta mais duas classificações: quanto aos efeitos, entre referendo constitutivo e referendo ab-rogativo, na medida em que o procedimento leve à inserção ou ao afastamento da norma discutida no ordenamento jurídico; e, quanto ao tempo, em referendum ante legem (também dito anterior, consultivo, preventivo ou programático) e

referendum post legem (dito sucessivo ou pós-legislativo), conforme a manifestação do povo seja demandada antes ou depois da elaboração da lei ou emenda constitucional.

Conforme Sussman (2006), os referendos constituintes respondem pela maior proporção de referendos realizados no mundo, tendo servido tanto para a participação do povo na configuração da ordem constitucional como para fortalecer o poder de elites ou regimes em detrimento da democracia. Amiúde os referendos têm servido para a solução de controvérsias morais em alguns países, muitos daqueles versando sobre proibições. A par disso, uma parte significativa dos referendos, nas últimas décadas, tem sido aplicada para dar ao povo o poder de decisão sobre questões de soberania (GARCIA, 2004, p. 6), tais como autonomia, independência, anexação a outro Estado, etc. Significativamente, Sussman (2006) ressalta que, da amostra pesquisada, só 5,9% se vinculou à legitimação ou encampação de regimes políticos, porém estes foram suficientes para gerar desconfianças sobre o uso dos referendos, mesmo porque esse expediente continuou a ser aplicado pelas ditaduras latinoamericanas e, com recorrência ainda maior, por regimes na África e Oriente Próximo (em sentido lato).

Conforme Vernon Bogdanor (1994, p. 88 apud SUSSMAN, 2006), os referendos não seriam apropriados em sociedade etnicamente divididas que tenham adotado “arranjos consocionais” (consociational arrangements) para disciplinar seus conflitos, em virtude do aspecto de confronto de posições que o referendo implica. Há certa doutrina, a exemplo de

Mads Qvortrup (1999 apud SUSSMAN, 2006), que procede à distinção entre um “nacionalismo oriental”, que instrumentalizaria o referendo para afirmar a hegemonia do grupo dominante e excluir as minorias étnicas, e um “nacionalismo ocidental”, no qual os referendos seriam meio de inclusão, a exemplo de Noruega.

Como entende Sussman (2006), parece-nos correto entender que a distinção não reside nessa identificação cultural do tipo de nacionalismo, mas sim na divisão e heterogeneidade de cada país, bem como na aplicação pouco coerente do princípio da autodeterminação dos povos. Assim, na Iugoslávia historicamente conflituosa e repleta de etnias, os “referendos de soberania” foram marcados mais por disputas do que por deliberação entre os grupos, porém, da mesma forma, na inegavelmente ocidental Bélgica o referendo pós-Segunda Guerra Mundial sobre o retorno da monarquia, sob o Rei Leopoldo, realçou os interesses distintos dos flamengos em relação aos valões.

Em que pese os obstáculos e as divisões sociais que o referendo pode revelar, Sussman (2006) não deixa de ressaltar a idoneidade desse instituto para conferir legitimidade a difíceis decisões sobre soberania e autodeterminação, afastando-as das posições mais extremadas encontráveis no meio social. Assim ele aduz:

Thus referendums have a major role to play in supplementing representative democracy and regulating internal divisions that result from downsizing processes. For one they defuse the issue by taking it out of the hands of extremists (Bogdanor, 1981: 6). And by virtue of the perception that referendum decisions are perceived as being more legitimate (Butler and Ranney, 1978: 25), they provide important legitimacy for compromise.

Azambuja (2008, p. 255-257), nítido propugnador do referendo, enumera várias das vantagens propagadas pela doutrina em prol da ampliação do uso dos referendos, desde que se refiram a questões concretas, sem complexidades técnicas. Assim, os cidadãos interviriam efetivamente no governo do Estado, manifestando-se conforme seus interesses e consciência individuais, sem relação com correntes e disputas partidárias. O referendo estabilizaria a democracia e contrabalançaria a hegemonia dos representantes das assembleias legislativas, além de conferir a leis de grande relevância pública um acréscimo de legitimidade, tornada inegável com a aprovação popular. Sobre a frequente crítica de que o referendo não proporciona intensa deliberação entre os cidadãos, argumenta:

Não parece procedente a acusação, porque, antes de uma lei ser submetida à aprovação popular, já foi discutida no Parlamento; portanto, teve a publicidade que a imprensa sempre dá aos trabalhos parlamentares, em todos os países democráticos. Além disso, antes do comício, a imprensa ocupa-se da matéria que vai ser referendada, podendo todos os eleitores assenhorear-se do assunto por meio das opiniões e comentários emitidos. [...] Economistas, médicos, juristas, técnicos em

vários ramos de conhecimentos intervêm antes do referendo, esclarecendo a opinião pública. (AZAMBUJA, 2008, p. 257-258)

Não obstante, parece passível de crítica o papel ainda preponderante que o Parlamento e a imprensa (sobretudo os grandes grupos midiáticos) preservam na deliberação exercida no referendum. Se é verdade que também a deliberação pessoal entre os cidadãos poderia bem resultar na predominância de alguns que efetivamente discursam e influem a opinião dos outros, sobretudo por manifestar conhecimentos mais técnicos, é verdade que a intervenção de especialistas e outros “fazedores de opinião” se dá frequentemente, na práxis política, por meio dos meios de comunicação que conseguem difundir-se mais. Ademais, muitos referendos tocam em assuntos que não são técnicos, mas eminentemente morais ou ideológicos, os quais podem envolver fortes elementos emocionais e conjunturais.

Sabe-se, como já foi argumentado nesta pesquisa, que as campanhas voltadas aos

referenda se têm tornado caros instrumentos nas mãos dos grupos que podem pagar por elas – nem sempre com influência exitosa junto ao povo, evidentemente (GARCIA, 2004, p. 8) –, e tais campanhas são veiculadas por mídias, as quais informam o eleitorado, mas o farão com claro viés. Portanto, mesmo com a atuação já esperada e decisiva dos membros do parlamento e da imprensa, pode-se aduzir a existência de um déficit de deliberação, no referendum.

Com essas considerações, compreende-se a perspicaz advertência de Gladio Gemma (1998, p. 1075) acerca do referendo:

Pode ser diverso, na realidade, tanto o papel efetivo do povo na decisão do problema, como também o papel dos demais sujeitos políticos em relação à votação popular. [...] A preparação política e a capacidade de tomar posições em face dos problemas variam também segundo o nível cultural das diversas comunidades e isso faz com que seja diverso o papel decisório do povo, porquanto uma coisa é decidir predominantemente sob a influência de mensagens emocionais ou de simpatia pelos apologistas das soluções em discussão, e muito outra escolher depois de refletir sobre o problema (conquanto excluamos a ilusão de que um corpo eleitoral decide com pleno conhecimento dos termos da questão que lhe foi submetida).

Bonavides (2010) ressalta que, quando da ascensão da democracia semidireta, o mecanismo foi visto com imenso entusiasmo, quase como “panaceia” para os problemas gerais da democracia, e adverte que a intensa disputa entre fautores e impugnadores do referendo permite demonstrar tanto vantagens quanto desvantagens no referendo. Com efeito, aduz o autor que, cessado o ânimo inicial, ficou claro que o referendum não tem o condão de eliminar algumas fragilidades e riscos.

A experiência internacional com o referendo tem demonstrado o caráter conservador desse instituto, assim como das iniciativas populares de lei (MATSUSAKA, on

reformas profundas. Exemplo clássico citado por Azambuja (2008, p. 259-260) e Bonavides (2010, p. 309) é a rejeição do povo suíço, o mais experiente no governo semidireto, à inclusão do direito ao trabalho e seguros obrigatórios em sua Constituição (1914) e à extensão do sufrágio às mulheres (1920). Principalmente nos Estados Unidos, o debate sobre o perigo de “tirania da maioria” nos referendos e iniciativas populares é de longa data e ainda continua (HAJNAL; GERBER; LOUCH, 2002, p. 154-156). Em que pese isso, Azambuja (2008) insiste para que não se conclua ser o povo retrógrado, dado que várias reformas importantes foram alcançadas mediante referendo nos Estados Unidos e na Suíça.

Em termos econômicos e políticos, Azambuja (2008) identifica no referendo uma tendência liberal, contrária a excessivas expansões do poder do Estado sobre o indivíduo, enquanto hesita em aprovar medidas que impliquem grandes gastos públicos. A Austrália teria confirmado a mesma tendência antiestatal, enquanto a Alemanha teria sido o exemplar caso de utilização do referendo, mecanismo democrático com que se almeja o aprimoramento do sistema, no sentido mesmo de destruir, ardilosamente, as bases da democracia (BONAVIDES, 2010).

O melhor, ao que parece, é a posição moderada de Norberto Bobbio (1983, p. 69), o qual reconhece a importância do referendo na democracia contemporânea ao mesmo tempo em que mantém reservas sobre o tipo de deliberação que esse instituto propicia:

Creio que, hoje, ninguém pensa em contestar a importância e utilidade de um tal modo de se obter decisões coletivas, e nem mesmo sua legitimidade democrática, ainda que algumas restrições possam ser feitas à concepção atomizante do corpo eleitoral, no qual o instituto do referendum se baseia, e a dificuldade de reunião através da discussão política.