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permitir um equilíbrio entre os objectivos do indivíduo, da família e da sociedade A sociedade foi no entanto progressivamente usurpando algumas das funções e dos

2.2. Evolução histórica das concepções acerca da infância

Diferentes períodos históricos corresponderam a diferentes padrões de educação infantil (Bronfenbrenner & Morris, 1998) bem como a formas diferentes de pensar acerca da criança. O reconhecimento da infância como realidade social a considerar remonta a pensadores e filósofos de meados do século XVII. Comenius e Calvino foram alguns dos que expressaram as suas ideias, embora opostas, sobre a criança e a forma de a educar. Assim, embora as concepções de infância fossem diferentes, era evidente a preocupação com o processo de formação e educação das crianças, e com o papel a desempenhar pelos adultos neste processo.

Capítulo 2 - A família, contexto básico do desenvolvimento e socialização

Foi, porém, Rousseau, quem marcou de forma indelével as concepções que nos últimos 150 anos se foram desenvolvendo acerca da infância, bem como o trabalho e o pensamento de muitos pioneiros da educação e da intervenção infantil, como é o caso de Froebel, Pestalozzi, Montessori, e muitos outros (Pinto, 1997).

A descoberta da infância como período sensível e determinante do desenvolvimento humano ocorreu, segundo Hareven (1985), nos primórdios do século passado, e foi consequência de factores socio-histórico-culturais: a emergência da família de tipo doméstico, a separação entre o ambiente familiar e profissional, o papel assumido pelas mulheres no seio da família, o primado do sentimento e dos laços afectivos entre marido e mulher por oposição aos casamentos de conveniência e o enfraquecimento dos laços familiares alargados. A redução no número de filhos permitiu que as crianças recebessem uma maior dose de atenção e de recursos durante um período maior das suas vidas (Levine & White, 1987). A prioridade deixou de ser a quantidade, passando a ser a qualidade de vida da criança. Este fenómeno que ocorreu na Europa nos finais do século 18 e início do século 19, e que Ariès (cit. por Rossi, 1987) designa pelo início da era da criança-rei2, marcou um ponto de viragem a nível

das crenças e ideias parentais, traduzindo-se ainda em práticas como o controle da fertilidade, que marcaram profundamente a evolução social.

A inexistência anterior de uma concepção de infância não implicava necessariamente que as crianças fossem negligenciadas ou ignoradas, ou que não fossem objecto de afecto parental, mas antes que acediam mais rapidamente ao estatuto de adulto. Assim, mal alcançavam a "idade da razão", o que acontecia cerca dos 7 anos de idade, e manifestavam alguma independência relativamente aos cuidados da mãe ou da ama, as criança eras gradualmente integradas na sociedade dos adultos (Pinto, 1997).

Se até dada altura as crianças reforçavam o estilo de vida familiar, constituindo recursos importantes, quer trabalhando e contribuindo para a economia familiar, quer

desempenhando algumas funções cujo impacto era predominantemente positivo (por exemplo, tomando conta dos irmãos), a introdução de alterações como as que referimos anteriormente, (por ex. a escolaridade obrigatória) tornou as crianças menos disponíveis para ajudar os pais e a família. De objecto essencialmente utilitário, a criança passou a objecto de valor sentimental (Ambert, 1992). Nos nossos dias, as crianças necessitam de utilizar os recursos familiares para sobreviver, pelo que deixam de constituir uma mais- valia em termos económicos, tornando-se um factor de custo. Progressivamente, no entanto, a criança tornou-se objecto de maior afecto e devoção parental, sendo também maior a dependência emocional dos pais em relação aos filhos (Ambert, 1992). Simplificando, a escola assegura o ensino e a aprendizagem das regras de vida em sociedade, restando aos pais alimentar, vestir e sobretudo amar os filhos, sob o controle do poder público o qual, em última instância, tem como função verificar se a família cumpre correctamente essas tarefas.

Na última metade do século 20, as mudanças no papel educativo desempenhado pela família foram muito rápidas. O jardim de infância generalizou-se como contexto alternativo de guarda e educação, sendo considerado um substituto desejável da família. A norma deixou de ser conservar as crianças em casa o mais possível e a partir de anos 60, impôs-se definitivamente a ideia de que é melhor a criança frequentar uma creche do que ficar todo o dia com a mãe. Os pais ignoram como ocupar os filhos, procurando actividades de lazer alternativas e colónias de férias, e , de uma forma geral, contextos mais estimulantes e educativos do que meramente a família. Os contextos educativos formais assumiram definitivamente preponderância relativamente aos naturais.

Desde cedo, as crianças desenvolvem as suas próprias relações e formam-se grupos de amigos e colegas. O grupo dos pares assume-se com um contexto primordial de socialização. A família têm que competir com outros centros de interesse, e torna-se menos livre para escolher e para decidir, repartindo forças com outros contextos socializadores que assumem importância crescente. A intervenção pública na educação das crianças alarga-se, e desde que nasce, a criança é objecto de interesse por parte das

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instâncias públicas. É reforçada a vigilância médica, e fomentado o parto hospitalar, por oposição ao parto em casa. Progressivamente, a socialização da criança deixa de ser o apanágio da família, aumentando o peso e o interesse do poder público. Este controle permite, em última análise e nos casos mais críticos, a inibição do poder parental.

Na opinião de Ambert (1992), uma das razões do interesse recente pelo efeito que as crianças têm nas famílias deriva justamente do facto de, no passado, as crianças terem desempenhado um efeito fortalecedor das famílias, enquanto que nas últimas décadas, esse efeito é essencialmente negativo: as crianças são menos úteis aos pais, custam mais dinheiro e complicam, pela sua presença, o estilo de vida familiar. Durante todo o século 19 e início do século 20, as crianças das classes operárias constituíam um importante ganha-pão familiar; os pais contavam com os ordenados dos filhos mais velhos enquanto que os mais novos ajudavam nas tarefas domésticas. Nas zonas rurais, as crianças constituíam uma mão-de-obra adicional e gratuita, e os pais dispunham de poder para usar as suas crianças, bem ou mal, em seu benefício. Nos dias que correm, a situação alterou-se drasticamente, embora, como todos sabemos, prescindir dos proveitos económicos que advêm da utilização da mão de obra infantil não seja consensual no caso de famílias oriundas dos estratos mais desfavorecidos. Será esta uma questão meramente económica ou intimamente imbricada nos valores e normas socio- culturais prevalecentes em certos grupos?

Estranhamente, no entanto, a situação e condições de vida das crianças assumem tanto mais relevância em termos da atenção social que despertam, quanto menor o seu peso no conjunto da população. O interesse redobrado por este período etário, característico do mundo ocidental contemporâneo e relativamente ao qual Portugal não constitui excepção, originou entre outras medidas, a aprovação da Convenção dos Direitos da Criança pelas Nações Unidas. No entanto, a infância continua a ser o grupo etário mais sacrificado e sujeito aos efeitos negativos de fenómenos como a guerra, a pobreza e a opressão. Seguindo esta linha de pensamento, Sarmento e Pinto (1997) destacam uma série de paradoxos actuais no que diz respeito à concepção da infância;

assim, embora as desejem e exprimam cada vez mais gosto pelas crianças, os adultos produzem-nas cada vez menos, e dispõem cada vez de menos tempo para estar com elas; a importância das crianças é reconhecida pelos políticos, mas cada vez menos as suas decisões as tomam em linha de conta; reconhece-se a necessidade de responsabilizar os pais pelos seus filhos, mas são reduzidas as condições de vida que lhes permitem fazê-lo. Enfim, de uma maneira geral, se por um lado aumenta a consciência e a visibilidade social da infância, a verdade é que por outro, se atrasam ou evitam reformas sem as quais as condições de desenvolvimento infantis não podem ser melhoradas.

Embora exista consenso quanto à altura em que se inicia a infância, o mesmo não acontece quanto à idade em que se deixa de ser criança (Sarmento & Pinto, 1997). Diferentes pontos de vista (jurídicos, sociais, políticos, económicos e mesmo psicológicos) estabelecem diferentes limites dentro de um mesmo contexto sociocultural. Idêntica arbitrariedade existe entre diferentes contextos sociais e culturais, e como já vimos, entre diferentes momentos históricos. O problema subsiste quer adoptemos uma perspectiva diacrónica ou sincrónica. O que significa ser criança varia entre sociedades, culturas e comunidades e pode variar no interior de uma mesma família e de acordo com o estrato social. Identicamente, e como vimos, varia com o momento histórico e com a definição dominante em cada época (Sarmento e Pinto, 1997), embora alguns autores numa perspectiva essencialmente pragmática, definam as crianças como os descendentes não adultos que vivem em casa e dependem dos pais

para a sua subsistência (Ambert, 1992).

Seja qual for a concepção adoptada, é importante concluir que o conceito de infância não corresponde a uma categoria universal, natural, homogénea e de significado óbvio (Pinto, 1997), mas antes a um fenómeno que é específico a um tempo e a um local histórico, o resultado de uma construção gradual das sociedades moderna e contemporânea. As variáveis do contexto histórico determinam em grande parte os aspectos de variabilidade individual (Lerner, 1982), na medida em que determinam

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novos papeis sociais para os indivíduos. Assim, ser rapaz ou rapariga, ter três ou treze anos, crescer numa zona degradada ou numa zona luxuosa, na província ou na cidade, ter muitos irmãos ou ser filho único, são constrangimentos importantes que determinam alguma heterogeneidade, e que deverão ser devidamente enquadrados.

A maioria das alterações constatadas nas modernas sociedades ocidentais parece traduzir-se numa melhoria generalizada das condições de vida das crianças, as quais são encaradas como um bem precioso e no qual as famílias investem grandemente.

Estas mudanças são por um lado quantitativas: mais crianças frequentam a escola, a mortalidade infantil é menor, um maior número de pessoas vive em grandes centros urbanos e as taxas de natalidade tendem a baixar. Por outro lado, há mudanças qualitativas, como a condenação e quase extinção do trabalho infantil e o reconhecimento dos direitos das crianças. Estas alterações traduzem mudanças fundamentais nos motivos pelos quais as crianças são geradas, na sua educação e nos objectivos delineados para as suas vidas.

Infelizmente, no entanto, estas conclusões abrangem apenas uma pequena parte da população infantil do nosso globo, mantendo-se as condições de extrema pobreza nas regiões do terceiro mundo, cujas consequências por demais evidentes não iremos referir no âmbito do presente trabalho. As iniciativas relacionadas com a protecção da criança, ou, como ultimamente ouvimos dizer, a protecção dos direitos da criança, dificilmente têm sentido quando somos confrontados com a situação degradante em que vive uma grande parte das crianças do mundo, para quem a principal tarefa da infância é, fundamentalmente, a de sobreviver.

2.3. Questões levantadas pelo estudo do papel da família no desenvolvimento da