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Também as redes de suporte social dos adultos influenciam o desenvolvimento das competências sociais nas crianças Tudo leva a crer que quanto mais alargadas

3.2 O subsistema marido-mulher, ou do casal

A atenção ao casal e suas relações como contexto de desenvolvimento surgiu associada a estudos acerca do papel do pai, na medida em que a adição do pai à tradicional díade mãe-criança, mais do que constituir um segundo tipo de relação pais- criança, permitiu uma nova perspectiva do sistema familiar, composto, entre outras

relações, pela relação do casal. O contexto familiar é, para a criança, bastante mais do que o contacto individual com cada um dos progenitores. Resolver conflitos, por exemplo, é parte integrante da vida familiar, quer sejam entre o casal, entre os pais e os filhos ou mesmo entre irmãos, e as formas como as famílias resolvem esses conflitos têm um papel importante no desenvolvimento das crianças. Estudos recentes relacionaram o funcionamento do casal com resultados a nível das crianças, nomeadamente as suas capacidades imediatas de lidar com problemas7 e, a longo prazo,

o seu ajustamento. Encontram-se também amplamente documentadas as relações entre a exposição das crianças a conflitos no seio do casal e problemas no desenvolvimento, nomeadamente a nível das relações com pares (Parke & Buriel, 1998).

Da vies e Cummings (1994) reviram um conjunto de investigações que confirmavam a existência de ligações entre conflito no casal e problemas de ajustamento dos filhos, sendo estes tanto de tipo externalizado como de tipo internalizado. O testemunho do conflito parental é considerado como uma das mais maiores fontes de stresse na vida de uma criança. Pederson (1982, cit. por Belsky, Robins, & Gamble, 1984) encontrou associações entre tensão e conflito no casal e um menor nível de competências por parte da mãe na alimentação da criança. Outros estudos revistos por Belsky e colaboradores (1984) encontraram relações entre hostilidade no casal, recurso frequente a castigos e fraco recurso a estratégias disciplinares persuasivas. Pesquisas com adolescentes também documentavam a associação entre conflitos no casal e comportamentos anti-sociais nos filhos.

Dois modelos alternativos (embora não mutuamente exclusivos) têm sido utilizados para explicar a associação entre o conflito no casal e problemas no comportamento dos filhos. O primeiro conceptualiza o conflito matrimonial como um tipo de influência indirecta no ajustamento da criança, com efeitos negativos essencialmente a nível do funcionamento familiar e da qualidade das competências de parentalidade (originando entre outros aspectos, labilidade afectiva na relação pais-

Capítulo 2 - A família, contexto básico do desenvolvimento e socialização

criança e falta de disponibilidade emocional). O segundo modelo, desenvolvido mais recentemente, centra-se nos efeitos directos na criança, do conflito matrimonial por ela presenciado.

O primeiro modelo tem gerado todo um corpo de literatura sobre as relações entre o subsistema marido-mulher e o subsistema pais-criança. A meta-análise efectuada por Erel e Burman (1995), embora restrita a famílias caucasianas, não deixa margem para dúvidas quanto à existência de uma relação significativa entre ambos os sub- sistemas e à impossibilidade de evitar o impacto negativo do conflito entre o casal ao nível da criança.

Tudo indica que a qualidade da relação pai-criança está mais dependente da qualidade da relação do casal do que a relação mãe-criança. As competências de parentalidade paternas parecem mais dependentes da relação satisfatória entre o casal do que as competências de parentalidade maternas, pelo que, nos casos em que há degradação da relação entre o casal, os homens se tornem normalmente mais intrusivos e negativos com os filhos, não sendo evidentes alterações nos comportamentos de parentalidade maternos. Os processos implicados na parentalidade são afectados pelo conflito matrimonial, embora mães e pais sejam afectados de forma diferente, o que implica consequências diferentes nos filhos. A teoria sistémica familiar sugere que o conflito entre o casal não só interfere nas relações que cada um dos progenitores estabelece com a criança, como também interfere nas relações triádicas pai-mãe-criança, diminuindo a eficácia de cada um na relação.

Como anteriormente referimos, estudos recentes tendem a evidenciar a influência directa do conflito parental nos problemas de comportamento dos filhos, independentemente dos efeitos ao nível da relação pais-criança. Contudo, a frequência, a intensidade e o conteúdo dos conflitos familiares parecem estar implicados na magnitude dos seus efeitos nefastos no comportamento das crianças, nomeadamente o afecto negativo, e a ocorrência de problemas internalizados e externalizados. Estudos

longitudinais demonstraram que a exposição das crianças a comportamentos de hostilidade entre os pais é preditiva dos níveis de desajustamento avaliados de um a três anos mais tarde (Grych, Harold & Miles, 2003). A forma de expressão dos conflitos e as estratégias de resolução utilizadas podem também implicar diferenças no ajustamento da criança. Os resultados obtidos por Katz e Gottman (1993) demonstraram que, quando o estilo de resolução de conflitos do casal era predominantemente hostil, as crianças tendiam a ser descritas pelos professores como antisociais. Já nas famílias em que os maridos se mostravam emocionalmente distantes na resolução dos conflitos, as crianças eram caracterizadas como ansiosas e socialmente inibidas. Numa linha consistente com o ênfase nos processos, Davies e Cummings (1994) consideram relevante perceber o significado que o conflito tem para o casal e para a família em geral, sendo comprovada a existência de casais cujas discussões, apesar de frequentes, não geram necessariamente infelicidade ou uma tonalidade geral menos positiva no sistema familiar.

O conflito no casal pode mesmo, em certas condições, ser fonte de aprendizagem para a criança. Isto acontece nos casos em que não é demasiado intenso, em que não envolve ameaça para a criança, em que é expresso de forma construtiva e num contexto de suporte e entre-ajuda.

Não estão ainda completamente clarificados os mecanismos de regulação emocional e processamento cognitivo utilizados pela criança para interiorizar o conflito intraparental. Grych e Fincham (1990) apresentaram um modelo conceptual segundo o qual a criança procederia a uma avaliação do conflito, utilizando dimensões como o nível percebido de ameaça para si própria, a eficácia que atribui aos seus mecanismos de coping e o tipo de atribuições causais (incluindo auto-culpabilização). O impacto do conflito na criança seria, portanto, mediado pelas suas capacidades cognitivas, por factores contextuais e por determinadas dimensões do conflito (intensidade e conteúdo). Se as situações de conflito intraparental se repetirem, a criança pode desenvolver interpretações negativas face às experiências interpessoais e sociais, bem como

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sentimentos de eficácia negativa em situações onde haja relações com outros. Estudos longitudais posteriores confirmaram um efeito indirecto do conflito intraparental no ajustamento das crianças, avaliados em função de sintomas de internaiização e de externalização, e que esse efeitos se fazia sentir particularmente através dos sentimentos de percepção de ameaça e de auto-culpabilização da criança (Grych et ai, 2003)

É também possível que a qualidade das relações do casal possa moldar as dimensões cognitivas do clima familiar, pelo que as crianças mais expostas ao conflito intraparental seriam também mais propensas a desenvolver atribuições negativas face ao comportamento de outros. De qualquer forma, tudo indica que as crianças desenvolvem padrões de comportamento negativos por exposição ao conflito entre os pais, essencialmente através de mecanismos de modelagem.

Davies e Cummings (1994) apresentam um modelo explicativo alternativo, em que as emoções funcionam como organizadores da experiência interpessoal da criança. Segundo os autores, a segurança emocional da criança advém, entre outros factores, da qualidade da relação entre os pais, pelo que numa situação de conflito intraparental, a criança é essencialmente afectada pela vertente emocional e menos pelos factores cognitivos, sendo aquela a principal responsável pela forma como a criança irá reagir. Por seu turno, a segurança emocional da criança afecta a sua capacidade para regular as emoções e afecta as apreciações cognitivas e as representações internas acerca das relações familiares.

O conflito persistente entre o casal pode também afectar o desempenho escolar da criança, como ficou demonstrado pelos estudos de Cowan e colaboradores (1994, cit. por Fiese, 2001). Embora esta relação possa ser mediada por um estilo familiar ineficaz, os seus efeitos negativos parecem ser evidentes desde os primeiros anos de escola até à adolescência.

Em resumo, os estudos revistos permitem concluir pelo efeito nefasto que uma situação de conflito crónico e intenso terá nas capacidades de regulação emocional da criança e no seu ajustamento a longo prazo, e se bem que ainda não completamente esclarecidos, evidenciaram-se alguns dos mecanismos implicados neste processo (Parke & Buriel, 1998). Por norma, a prevalência de relações negativas entre o casal tem como resultado a diminuição das competências de parental idade, com resultados nefastos no comportamento e no ajustamento dos filhos, incluindo o seu sucesso escolar . Não obstante, é também sugerido que a exposição a um tipo de conflito construtivo pode ser benéfica para a criança, permitindo-lhe aprender a lidar com situações conflituosas e a regular os seus estados emocionais. Em qualquer dos casos, é bem patente neste domínio a consideração dos processos proximais, a necessidade da sua apreciação em função dos níveis ecológicos considerados e a tomada em consideração do seu grau de regularidade temporal.