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6.2 Análise das crenças políticas

6.2.4 Existência de déficit hídrico no São Francisco

A diversidade de posicionamentos sobre essa crença representa a velha discussão sobre a seca do semiárido. O pano de fundo foi resgatado no capítulo histórico. Ou seja, o problema do semiárido é de fato a falta de água? Ou a água existe, o que ocorre é sua utilização como meio de dominação, seu uso é restrito a poucos.

As modificações no conceito do projeto observadas ao longo dos anos, discutido no capítulo histórico, permitem verificar que este se tornava defensável apenas quando comprovada a existência de déficit hídrico na região a ser beneficiada. Pode-se avaliar, bem sinteticamente, que ao longo dos anos o conceito por trás do projeto variou:

• Projeto da década de 80 – conceito era de água para irrigação. Inseria-se em programas como o PROINE, que objetivava irrigar 1 milhão de hectares no semiárido.

• Projeto década de 90 – conceito era de usos múltiplos. Além da irrigação, a água seria utilizada para abastecimento de núcleos urbanos.

• Projeto anos 2000 – conceito é de segurança hídrica. Projeto serve como manancial para uso pleno dos açudes (reduzindo perdas por evaporação e melhorando a qualidade da água). Ou seja, em vez de utilizar menos de 30% das águas reservadas devido ao risco de uma grande seca, utiliza-se mais. Caso haja grande estiagem, pode-se aduzir água dos canais do Projeto de Interligação. Posteriormente, foi reforçada a sua importância para o abastecimento urbano.

Ainda na entrevista com o técnico do governo que coordenou o projeto entre os anos 1997 e 2005 (1o/10/2010), este informou que as modificações eram devidas aos estudos realizados por uma comissão em que participavam CODEVASF, MMA e MI, criada em 1997. De acordo com o entrevistado, a Comissão foi o único evento em que o estudo sobre o projeto foi iniciado sem a pressão política para resposta a um episódio de seca. Ele caracterizou a pesquisa como “um estudo de planejamento”.

A análise das discussões ocorridas na Assembleia do Ceará permite dizer que o conceito de “segurança hídrica” estava presente desde 1994, pelo menos. O planejamento de construção de um “cinturão das águas” no estado refletia a visão de gestão de recursos hídricos nos moldes do que é a gestão da energia. A interligação de diferentes bacias, açudes, via canais e adutoras permitiria criar um fluxo de águas em que áreas não deficitárias doariam para outras com escassez.

A necessidade de água do São Francisco para melhor gestão das águas nas regiões a serem beneficiadas era um argumento mais apropriado considerando-se o histórico das obras hídricas na região. Em relação à Paraíba, a existência de déficit hídrico era menos polêmico, foi construído consenso sobre a sua existência. O Eixo Leste passou, então, a ser aceito por atores que se opunham ao projeto57.

Para os que contestavam a obra, o problema do semiárido não era a falta de água, mas sim a estrutura política, econômica e social58. A transposição seria, então, desnecessária. Como argumenta um atuante professor do Rio Grande do Norte, “um presente de grego”, visto que apenas aumentaria o custo da água nos estados beneficiários.

Os números utilizados para fundamentar essa crença têm origem importante nos estudos do hidrólogo Aldo Rebouças. Este avaliou que havia água subterrânea no Nordeste e que a capacidade acumulada de 35 bilhões de metros cúbicosobtida dos açudes seriam ambas suficientes para manter as atividades humanas e produtivas do projeto.

Os próprios dados oficiais, por exemplo, do Plano de Recursos Hídricos do Ceará mostram uma realidade, eu estou com ele aqui, página 171. Quer dizer, o estado do Ceará conta com uma disponibilidade hídrica de mais 100 m³/s, que é suficiente para atender às demandas atuais, Presidente, 54 m³/s, quer dizer, não existe déficit hídrico que justifique a transposição do São Francisco para o Ceará, nem existe déficit hídrico que justifique a transposição do Rio São Francisco para o Ceará nem para o Rio Grande do Norte, muito menos associar esse projeto à questão do consumo humano, porque o consumo humano no estado do Ceará representa 20% dessa disponibilidade hídrica do seu estado. No Rio Grande é menos, cerca de 10% (JOÃO ABNER, PROFESSOR UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE, ASSEMBLEIA DO CEARÁ, 2007).

Além disso, argumentava-se que não faltavam chuvas no semiárido nordestino, visto que, apesar de concentradas em três meses do ano, o índice pluviométrico da região é bem mais alto que de países como Israel, que é caso de sucesso no modelo de gestão de águas.

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Esta aceitação foi concretizada em declarações emanadas via Comitês de Bacias de que a tarifa a ser aprovada seria aplicada apenas ao Eixo Leste. A aprovação de tarifa para o Eixo Norte significaria aceitar esta obra. No ano de 2000, o Deputado Federal Clementino Coelho, PPS/PE, já se posicionava favorável ao Eixo Leste: “Dois eixos envolvem essa transposição "do" que o senhor fala: o Eixo Norte, que corresponde a 90% dos valores da obra, e o eixo Leste, que corresponde a 15 ou 10% desses 3 ou 4 bilhões. Fortuitamente, esse Eixo Leste vai para a Paraíba, que é o estado onde a situação é mais crítica. No Rio Grande do Norte, há água; no Ceará, ainda há mananciais hídricos não explorados” (DEPUTADO FEDERAL CLEMENTINO COELHO, PPS/PE, CÂMARA DOS DEPUTADOS, GRUPO DE TRABALHO, 2000).

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No capítulo histórico esses pontos foram tratados. Mas, alguns autores indicam como essas dimensões operam: “indústria da seca”, de Antônio Callado (1960), sistema de trabalho e distribuição de terras tratada, por Celso Furtado (1989).

A chuva é relativamente abundante, quase sempre acima de 500 mm por ano. Nos estados atingidos pela seca, os índices de disponibilidade anual de água por pessoa são razoáveis, o problema é reter essa água e possibilitar que a ela tenham acesso as pessoas que mais necessitam. Essa mesma água da chuva, que pode ser captada nas cisternas para o consumo humano, pode também ser armazenada em pequenos barramentos de cabeceira e utilizada na produção irrigada de alimentos, com impactos mínimos ao meio ambiente. São pequenas obras que, disseminadas aos milhares e aos milhões, garantirão água para as residências, as lavouras e os animais (DEPUTADO WANDERLEY ÁVILA, PPS/MG, ASSEMBLEIA DE MINAS GERAIS, 2003).

Percebe-se que a crença de que há água no semiárido concentra-se em um debate técnico entre acadêmicos da área de hidrologia com o apoio de organizações da sociedade civil. Estas aportam à argumentação o uso histórico da água como meio de dominação. Como afirma o representante da Comissão Pastoral da Terra (ASSEMBLEIA DA BAHIA, 2000): “o problema não é a seca, e sim a cerca”.

Alguns parlamentares e os principais críticos da obra não utilizam esse argumento de que é desnecessário levar água para o Nordeste. Eles reconhecem o problema da falta de água como limitador para o desenvolvimento da região.

Ninguém pode, em sã consciência, se negar a discutir a necessidade de aumentar a oferta de água no semiárido; mas, por outro lado, é preciso discutir intensamente como aumentá-la (JOSÉ CARLOS DE CARVALHO, SECRETÁRIO DE RECURSOS HÍDRICOS-MG, ASSEMBLEIA DE MINAS GERAIS, 2007).

Pois bem, isso tudo traz a questão seguinte: a grande luta da transposição, nesses estados, é que há um problema de insegurança. Se analisarmos, há uma reserva de água bastante expressiva. Foram construídos lá enormes açudes, gigantescos, os maiores da América Latina. Orós, quando construído, já era o maior da América Latina; depois dele, há o Ribeiro Gonçalves, que é ainda maior, e agora está sendo construído, no Ceará, o Castanhão, que vai ser bem maior do que os dois anteriores. Agora, qual é o problema básico? É que há uma insegurança. Por quê? Como a água deles é originária, basicamente, a partir de açudes, existe o medo. De quê? De não haver uma recomposição desse líquido. Se há açudes, ficam com medo de que, no ano seguinte, não chova e, não chovendo, não ocorre recomposição da água. Por isso, ficam com receio de usá-la. Vocês sabem que é comum no Nordeste não chover, mesmo. Durante um ano, nessas regiões mais secas, choveu o mínimo. Então, esse é um temor que eles têm (JOÃO ALVES, EX-GOVERNADOR SERGIPE, ASSEMBLEIA DA BAHIA, 2000).

Para outros deputados, o problema de escassez da região deve ser resolvido com uma transposição, mas não das águas do São Francisco, e sim as do Rio Tocantins.

Porque nós temos sim, de levar água para o Rio Grande do Norte, de levar água para o Ceará, de levar água para Pernambuco, todo mundo sabe que Caruaru está em crise, todo mundo sabe que Campina Grande está à beira de um colapso. Mas para se levar essa água, tem que se levar de onde tem e onde tem essa água é em Tocantins (DEPUTADO AUGUSTO BEZERRA, PARTIDO DA FRENTE LIBERAL - PFL/SE, ASSEMBLEIA DO SERGIPE, 2000).

Em 2004, o Deputado Augusto Bezerra (ASSEMBLEIA DO SERGIPE, 2004) reavaliou que Ceará e Rio Grande do Norte não precisariam da água a qual seria utilizada para irrigação59. Acredita-se que, na iminência de implementação do projeto, sem reforço de vazão com águas do Tocantins, o Deputado mudou de estratégia e passou a apoiar argumentos da academia e da sociedade civil sobre este aspecto – não há déficit hídrico na região a ser atendida pelo Eixo Norte.

Pelo lado dos defensores do projeto, os deputados cearenses, em sua maioria, acreditavam que a obra seria a solução para o problema da escassez de água no estado. Alegavam que a única fonte hídrica existente era o Rio São Francisco. Um número comumente utilizado era o de que no Nordeste estão 3% dos recursos hídricos do país, sendo que 70% estão concentrados no Rio São Francisco.