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6.3 Análise de fóruns de discussão, papel da sociedade civil, Igreja e academia

6.3.4 A participação da Academia

O Modelo de Coalizões de Advocacia assenta-se em uma disputa movida pelo confronto de informações técnicas e conhecimento. As crenças políticas são percepções sobre o problema e soluções legitimadas no embate a partir do momento em que obtém fundamentação científico-técnica. Sabatier (1993) define as crenças como, em suma, posicionamentos técnicos.

Vieram da academia os principais números e estudos que fundamentaram a discussão sobre o projeto. Têm-se, por exemplo, os estudos de Aldo Rebouças, as comparações e artigos escritos por João Abner e João Suassuna e estudo de Alberto Daker sobre custos para a irrigação.

O Governo, por sua vez, atuou fundamentado em estudos oriundos de consultorias. Isto não impediu, entretanto, o posicionamento favorável de alguns acadêmicos como Tânia Bacelar e José Otamar Carvalho. Técnicos do DNOCS, em especial, confrontavam os números apresentados pelos acadêmicos críticos à obra. A disputa era principalmente sobre a existência ou não de déficit hídrico no semiárido81.

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Fonte:NVivo – source Assembleia da Bahia (2005), Clóvis Ferraz. O Deputado Clóvis Ferraz PFL/BA citou esse fato. Os discursos obtidos da Assembleia da Bahia remontavam apenas ao ano de 1999.

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A elaboração do Plano Decenal da Bacia consistiu também em subsídio técnico para argumentação tanto favorável quanto contrária à obra.

A necessidade do apoio e atuação em conjunta com segmentos que poderiam formular “conclusões científicas” sobre as crenças defendidas foi essencial. A referência a algum estudo ou acadêmico era utilizada como forma de tornar verossímeis as opções políticas defendidas.

6.4 Conclusão

O Projeto da Transposição mobilizou diversos atores do meio político, da academia e da sociedade civil. A partir da oposição ou defesa ao projeto eles formularam e expuseram publicamente as suas visões e interesses para o desenvolvimento do semiárido.

Como observado no capítulo teórico, as crenças consideradas são as expressas. Elas não contam diretamente quais são os verdadeiros anseios ou interesses das pessoas. Entretanto, a forma como a argumentação para defesa da crença é elaborada indica com mais clareza as expectativas por trás do posicionamento público. Desta forma, foi possível perceber nuanças entre grupos/pessoas que à primeira vista eram homogêneos.

No que se refere à revitalização, o grupo que a defendia possuía clivagens. A principal diferença foi entre a percepção da revitalização como ação de reforço da vazão do rio e consequente aumento do potencial de atividades econômicas, por um lado. Por outro lado, estavam aqueles que defendiam a revitalização ambiental e as ações relacionadas de melhoria das condições sociais.

A análise das falas em defesa das crenças corroborou a influência de elementos históricos nas preocupações das pessoas. Particularmente na discussão sobre população a ser beneficiada com o projeto, eram feitas referências de que ele manteria os “velhos esquemas de dominação e exclusão”, como a indústria da seca. A crítica à solução hidráulica era estendida à obra, que muitos avaliavam ser a continuidade das políticas praticadas pelo DNOCS.

Conforme visto no capítulo 5, a legitimidade das crenças dependia de embasamento técnico. Este, por sua vez, era propiciado com o resgate de estudos e atuação em conjunto com membros da academia. Assim sendo, os acadêmicos desempenharam papel central em todo o processo.

Pode-se pensar que a aproximação com a linguagem técnico-acadêmica passa a imagem de que as ideias defendidas superam esquemas tradicionais de dominação. Em especial na discussão sobre o semiárido, recorrer a estudos científicos significava posicionar-se como neutro em termos de interesses ou de reforço ou acesso ao poder. Aprofundar nesta análise foge, entretanto, ao escopo deste estudo.

A análise das crenças demonstrou que o conflito em torno do projeto foi um confronto entre posicionamentos de qual deveria ser a região e o público priorizados. Também evidenciou percepções distintas sobre qual seria o mecanismo para o desenvolvimento da região. A formulação do problema do semiárido como sendo o da falta de água era alvo de críticas fundamentadas no histórico mau-uso das águas reservadas nos açudes.

Ao mesmo tempo, ressaltar a irrigação como meio para a melhoria da região era rejeitado por aqueles que questionavam o agronegócio. Mas, para o grupo que “apostava” na irrigação, esta deveria ser priorizada na própria bacia.

No capítulo seguinte será discutida a dinâmica de interação entre os atores. O compartilhamento de crenças e a atuação coordenada permitem analisar o debate sobre a Integração de Bacias como uma disputa para moldar a ação do Governo na região. Dessa forma, serão apresentadas as coalizões, quais eram as políticas propostas e as consequências de todo o processo de embate sobre o Projeto São Francisco no pensamento e ação do Governo Federal para o semiárido.

7 COMPREENDENDO A DINÂMICA DO CONFLITO SOBRE O

PROJETO E IMPACTOS SOBRE A QUESTÃO DA “SECA”

7.1 Introdução

O envolvimento dos atores e o debate sobre o Projeto de Integração reforçaram as linhas teóricas que enfatizam o papel das ideias no processo das políticas públicas. As decisões não são apenas resultantes de interesses e exercício puro da força política. O processo envolve, além da barganha e do poder político, a negociação e tentativa de persuasão.

Os atores agem inspirados pela percepção que têm sobre os problemas e soluções. Mesmo motivações estritamente materiais estão inscritas nesse sistema de crenças ou de posicionamentos que pessoas/grupos defendem ao longo de um processo político. Por sua vez, em temas como o problema da seca no semiárido, as crenças foram moldadas por anos de experiência em políticas públicas e extensa produção intelectual.

Neste capítulo, objetiva-se demonstrar o compartilhamento de crenças entre atores/grupos envolvidos na discussão sobre o projeto. A dinâmica é compreendida como uma disputa entre coalizões de advocacia, uma vez que, além das crenças em comum, as pessoas/grupos agiram de forma coordenada ao longo de vários anos tentando influenciar a decisão política.

Alguns temas, como o Projeto São Francisco, despertam questões que superam opiniões sobre aspectos instrumentais da ação do Estado. Considerando as teorias de “aprendizado político” (SABATIER; JENKINS-SMITH, 1993c) e de mudança de “paradigma político” (HALL, 1993), a motivação para atuação de atores/grupos pode ser estratificada em uma hierarquia.

Em um nível mais elementar estão as preocupações com soluções políticas específicas ou crenças secundárias (construir canal ou adutora). Em um segundo nível estão as ideias programáticas ou crenças políticas (priorizar população urbana ou difusa). Por sua vez, o terceiro nível refere-se a ideias filosóficas ou crenças essenciais que são mais difíceis de serem mudadas (água é um direito humano e não mercadoria).

A mudança na política ocorre quando, por fatores internos ou externos ao subsistema político, as ideias (1º, 2º e, dificilmente, as de 3º nível) da coalizão dominante ou de pessoas que ocupam cargos estratégicos se transformam.

Ainda é cedo para avaliar se a obra proporcionará mudança de terceira ordem ou de paradigma82. Mas, no debate, esta era uma preocupação cuja difusão pode ser atribuída à atuação da Igreja Católica via relação com a formação social e dos movimentos sociais nas duas regiões. A Igreja Católica pautou a necessidade de rompimento com velhos paradigmas e adoção de novos, como o da convivência com a seca. Esse discurso foi absorvido por outros grupos sociais como pescadores, indígenas e alguns poucos membros do grupo político.

Esse discurso alinhou-se com as preocupações de pessoas e grupos com a preservação ambiental. Esse grupo tinha voz, especialmente, na Assembleia de Minas Gerais. Envolvia políticos e acadêmicos com atuação na área ambiental, seja como secretários de meio ambiente ou participantes de organizações da sociedade civil atuantes no tema. Juntaram-se a esses membros do Ministério Público, consolidando a criação de eventos como o Fórum Permanente de Defesa do São Francisco.

Também atuando contra a obra, identificou-se um grupo composto basicamente de políticos estaduais e federais que atuavam pela priorização da alocação do recurso público na bacia. As falas e defesas recorrentes de seus redutos eleitorais como Barreiras-BA, Juazeiro-BA e região do Baixo São Francisco demonstram que grande parte do embate tinha o intuito de garantir água e recursos para ações de governo em suas regiões.

Supõe-se que esta também é uma disputa baseada em crenças. Apesar de não questionarem paradigmas ou serem movidos por ideias mais abstratas, alguns membros do grupo político possuem anos de atuação contrária ao projeto. Tanta dedicação e esforço levam à conclusão de que de fato possuíam uma visão sobre quais deveriam ser os objetivos e instrumentos da política pública.

Em relação aos atores que se posicionavam favoravelmente à obra, os dilemas da ação coletiva podem servir para explicar a reduzida exposição e pouca participação da sociedade civil em manifestações de apoio. Mas ao longo dos anos atores políticos e técnicos agiram em defesa do projeto.

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O uso do termo mudança de “paradigma” pode ser visto como problemático. Isto porque, em suas raízes kuhnianas, a mudança representa a superação de um paradigma por outro. A repetida constatação de anomalias no paradigma existente determina a sua substituição por outra compreensão de mundo/teoria. Já no contexto político, velhas ideias e práticas convivem com novas. Neste contexto, flexibiliza-se o uso do conceito de paradigma kuhniano para incorporar a percepção de que são introduzidas incrementalmente novas práticas/teorias. Mas as crenças predominantes e a coalizão dominante incorporam o novo.

A partir da leitura do material e de entrevista com consultor do Governo Federal (1o/10/2010) atribui-se a “gestação” do projeto a quadros políticos e técnicos que possuíam voz na Assembleia do Ceará. Tecnicamente, a formulação do projeto foi conduzida por engenheiros que desde a década de 1980 envolveram-se no projeto, em especial pessoas oriundas do quadro do DNOCS83 cuja sede é em Fortaleza-CE. As vozes favoráveis foram reforçadas com a atuação de bancada da Paraíba.

Pretende-se discutir a avaliação recorrente de que o Governo Federal “atropelou” os que eram contrários à obra e, principalmente, o Comitê de Bacia do Rio São Francisco. Com este objetivo serão avaliadas mudanças de 2º nível e possíveis mudanças de 3º nível que os longos anos de conflito podem ter ensejado em ações do Governo Federal relacionadas às crenças que estavam em embate.