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Sobre a Lei 9.433/1997 e a criação do Comitê da Bacia do Rio São Francisco

4.1 Introdução

4.1.5 Sobre a Lei 9.433/1997 e a criação do Comitê da Bacia do Rio São Francisco

As ideias que permearam a elaboração da Lei 9.433/1997 foram aprofundadas e difundidas pelo Banco Mundial. As principais, defendidas pelo organismo internacional e que moviam a reforma no setor, eram: criação de um mercado da água; descentralização da gestão e gestão dos recursos hídricos por bacias hidrográficas.

O Banco, em especial, realizou diversos estudos sobre a situação dos recursos hídricos no país, bem como eventos para difundir os novos conceitos na gestão dos recursos hídricos. A lei foi elaborada após a criação de grupo de trabalho no governo (EMPINOTTI, 2007).

De acordo com Jacobi e Barbi (2007), a Política Nacional de Recursos Hídricos reorganizou o sistema de gestão de recursos hídricos. Ela permitiu a substituição de práticas profundamente arraigadas de planejamento tecnocrático e autoritário a partir da incorporação da influência de fatores não apenas técnicos, mas também de caráter político, econômico e cultural na discussão.

Os autores concluem que essas mudanças tornaram o processo muito mais complexo e o estilo de gestão que tende a prevalecer obedece a uma lógica sociotécnica. E que as relações de poder não desaparecem, mas passam a ser trabalhadas e negociadas conjuntamente entre leigos e peritos (JACOBI; BARBI, 2007).

A nova lei federal das águas corroborou diretrizes de gestão que já estavam em vigor nos estados de São Paulo e Ceará. Nesse contexto, a criação de Comitês de Bacias é um elemento central na operacionalização dos princípios estabelecidos na Política Nacional de Recursos Hídricos ou da nova visão sobre gestão das águas.

A criação do Comitê da Bacia do Rio São Francisco ocorreu no palco de discussão do Projeto da Transposição. Esse processo exprime os embates que existiam entre aqueles que eram contrários à obra e o setor do Governo Federal que estava determinado a implementá-la. Apesar de ter sido previsto em legislação, acredita-se que a criação desse fórum deveu-se a um jogo político e técnico movido por interesses e por causas.

O Comitê foi criado em junho de 2001, pelo Decreto Presidencial de 05/06/2001, e a sua diretoria provisória foi composta de lideranças políticas e da sociedade civil, contrárias ao projeto. Ana Mascarenhas (2008) acentua que a discussão sobre o Projeto São Francisco foi um tema agregador que permitiu a superação de conflitos regionais e

realidades diferenciadas. As atividades do Comitê da Bacia foram monopolizadas pela crítica e tentativa de exclusão do projeto de ação do Governo (MASCARENHAS, 2008).

É importante notar o perfil das pessoas mais influentes do Comitê. De acordo com Ana Mascarenhas (2008), 67% são homens com idades entre 40 e 50 anos; 21% atuam no alto São Francisco, 29% no médio e 13% no baixo.

Atualmente, o Comitê é composto de 32,2% de Poder Público (federal, municipal, estadual); 38,7% usuários, 25,8% sociedade civil e 3,3% de representantes indígenas (CBHSF, 2010).

A criação do Comitê representou o ganho de autoridade32 para atores da sociedade civil, em especial, que atuavam em paralelo aos fóruns decisórios até então existentes. Além disso, ela fortaleceu grupos políticos opositores ao Projeto da Transposição.

Sobre a discussão do projeto no Comitê, Ana Mascarenhas (2008, p. 192) relata que “[...] muitas vezes, nas longas reuniões em que o debate sobre a transposição predominava, foi possível verificar a desmotivação e o cansaço das pessoas que atuam com mais intensidade e compromisso e querem ver progredir a gestão na bacia”.

Abers (2003) analisa o uso, por atores estatais, da estratégia de criação de fóruns participativos para obter apoio e promoção de seus objetivos. Empiricamente ela considera a experiência de criação dos Comitês de Bacias e o orçamento participativo implementado em Porto Alegre. Em relação aos Comitês, a autora constata que, em sua maioria, estes foram criados como meios para acesso a recursos de organismos multilaterais e agências governamentais.

A ideia técnica de aumento da participação serve, então, como meio para legitimar os fins buscados pelos atores. Após esse entendimento, argumenta-se que o Comitê da Bacia foi criado como estratégia de atores políticos e estatais. Ele foi estabelecido em 2001 por pressão de segmentos ambientalistas, mas foi consolidado a partir de 2003, a fim de se cumprirem os procedimentos democráticos previstos em lei que fundamentariam a implementação da transposição. A estratégia de fortalecimento do Comitê apoiava-se na defesa da inserção de grupos até então excluídos da discussão (índios, pescadores), elaboração de dados técnicos e o fortalecimento do discurso ambiental.

A Política Nacional de Recursos Hídricos e o Comitê de Bacia representaram o restabelecimento das condições de negociação. Novos procedimentos formais de

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"A capacidade de solucionar problemas, fazer valer decisões e ter impacto no mundo externo” (ABERS; KECK, 2003 apud ABERS, 2003).

tramitação do projeto foram criados, assim como foi introduzido um novo elemento no planejamento da ação de governo, que é o Plano de Gestão da Bacia

O Comitê é um fórum com competência para resolver conflitos de uso em primeira instância e, entre outros, aprovar o Plano de Gestão da Bacia, que define as diretrizes de alocação da água. O CBHSF deliberou, em outubro de 2003 (CBH-SF no 06 – Projeto Transposição Penedo), que a obra da transposição não poderia ter prosseguimento sem que antes fosse elaborado um Plano de Recursos Hídricos da Bacia. Em outubro de 2004, o Plano Decenal da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco foi concluído.

Apesar da decisão política do Comitê em ser contrário ao projeto, o Plano Decenal da Bacia consistiu num importante instrumento técnico de defesa da obra. Ele estabeleceu que existiriam 360 m3 de água do rio alocáveis, que os favoráveis ao Projeto de Integração utilizaram como argumento para superação da divergência de “existência ou não de água no rio”.

Logo após a conclusão do Plano da Bacia, o Comitê deliberou (CBH-SF no 18 – Alocação uso externo Salvador)33 restringindo os usos externos da água do rio e condicionou o uso da vazão alocável identificada no plano à verificação de quais seriam as reais necessidades da bacia, de forma que projetos futuros para o desenvolvimento desta não fossem comprometidos. Tentou-se, dessa forma, ponderar que a vazão alocável identificada não significava a existência de água “sobrando” no rio.

A mudança institucional promovida pela Política Nacional de Recursos Hídricos e o Comitê de Bacias ensejou alteração na configuração da negociação sobre o projeto. O Comitê constituiu-se no fórum legalmente previsto e com regras bem-definidas para a tomada de decisão sobre o uso das águas do Rio São Francisco. Ele comportou uma miríade de crenças e as informações técnicas produzidas em seu âmbito apoiavam posicionamentos diversos, com dificuldade em produzir consenso. Como já dito, o principal instrumento técnico elaborado, o Plano Decenal da Bacia, foi utilizado como fonte tanto na argumentação crítica quanto na defesa do projeto.

A elaboração e aprovação do plano representaram a necessidade de algum consenso nas informações técnicas. Os números e informações produzidos foram utilizados nas estratégias dos atores, mesmo estes possuindo objetivos distintos. Pode-se questionar o papel do Comitê de Bacia do São Francisco na condução de um processo de aprendizado

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político ou de reformulação das crenças defendidas entre os atores envolvidos na discussão.