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4.1 Introdução

4.1.4 As ideias que estão em conflito

A história das intervenções governamentais no semiárido é movida por “transições paradigmáticas”. Assim, “além de expressar interesses econômicos e políticos, as intervenções na realidade (as políticas governamentais e as práticas sociais) expressam diferentes pensamentos (interpretações e propensões) sobre o semiárido” (SILVA, 2006, p. 28).

As ideias sobre o desenvolvimento são elaboradas em diversos estudos. Desde o Império, foram diversas as expedições e comissões científicas designadas para estudar e levantar soluções para os desafios das regiões.

Andrade (2006) identifica que, considerando as expedições do século XIX, pressupostos elaborados naquela época ainda permeiam planos de governo e outros documentos relacionados à região do São Francisco. A autora chama a atenção para o fato de que as ações do Governo têm sido construídas desconsiderando populações tradicionais.

Essa compreensão advém de conceitos epistêmicos do século XIX. A região é então percebida como território a ser “civilizado” e modernizado. Índios e pescadores simplesmente não são “enxergados” nos planos de governo, por exemplo, na construção de barragens, implementação de perímetros de irrigação, etc.

Roberto Silva (2006) identificou os temas de estudos conduzidos desde o século XIX até o século XX sobre a região do semiárido. De acordo com o autor, 62% das

pesquisas têm como área temática de interesse a explicação sobre e causas das secas. Desse total, 63% indicam como intervenção necessária a construção de reservatórios de água e 1/3 apresenta a irrigação como solução para o problema do semiárido.

Em relação à disputa de projetos para o semiárido, Silva (2006) identifica quatro períodos. O primeiro seria o monopólio do poder político pelas oligarquias sertanejas, denominado de “estado capturado” por Francisco de Oliveira (1981 apud SILVA, 2006). O segundo período é o de disputa entre propostas reformistas e conservadoras - estas últimas apoiadas pelas oligarquias rurais, naturalmente. O terceiro período é o de autoritarismo estatal, que realiza ações “modernizadoras conservadoras”. Por fim, diante da redemocratização, o quadro é de disputa de interesses, concepções, práticas e projetos com a presença de novos atores políticos.

No período da ditadura militar, as Igrejas Católica e Evangélica foram espaços para mobilização das pessoas impactadas pelas grandes obras. Essas começaram a desenvolver formas alternativas de produção agrícola e uso da água, construindo, então, um modelo alternativo (EMPINOTTI, 2007), o qual defende projetos de menor escala que utilizam o conhecimento local. “As técnicas consideram as limitações do ambiente natural e ajustam o estilo de vida das pessoas a essas características” (EMPINOTTI, 2007, p. 173).

Com o processo de democratização, esses movimentos sociais começaram a ocupar espaços formais e a defender o modelo alternativo que passou a ser denominado de convivência com a seca. Entre as técnicas defendidas, estava a de uso de água da chuva ou coleta de água mediante cisternas, evitando-se, assim, a construção de canais ou transposição de águas. Acreditam que a coleta de água da chuva é uma forma descentralizada e autônoma de manutenção da vida e produção no semiárido.

Empinotti (2007) identifica duas visões para o desenvolvimento do semiárido. Por um lado, a visão de uso da água para projetos de larga escala. A identificação do problema como sendo a escassez da água direciona as intervenções do Governo para a solução da pobreza e o baixo crescimento econômico (EMPINOTTI, 2007). De outro lado, há a visão de uso de água para projetos de agricultura familiar, apoiada por organizações como a Articulação no Semiárido (ASA). Nessa visão, a falta de água não é o problema, e sim a configuração social e econômica, em especial o padrão de distribuição de terras, que gera o quadro de exclusão e pobreza.

A redemocratização gerou a complexificação do processo político, com entrada de novos atores e estabelecimento de novos procedimentos ou regras. Foi composta uma arena pública na qual projetos e visões entram em conflito e a diversidade ou pelo menos a

denúncia de sua existência é permitida. Os atores discutem e defendem ideias e têm mais liberdade de desejar um tipo ideal de estrutura de estado, de relação Estado-sociedade e/ou de ação de governo. Grupos que até então estavam “invisíveis” começam a fazer parte dos diagnósticos de problemas e soluções, bem como expressam seus próprios entendimentos.

O cenário para o Projeto São Francisco também foi reconstruído com a entrada de novos atores no espaço público e o estabelecimento de novas regras na discussão do uso dos recursos hídricos. As ideias sobre o tema, os projetos/visões que há anos foram gestados ou aplicados na realidade obtiveram um meio para sua expressão.

Essa percepção permitiu até mesmo superar o triângulo: Estado-sociedade civil- mercado. O processo político e o conflito passam a ser compreendidos como disputas de concepções e projetos políticos (DAGNINO, 2000).

Dagnino (2000) defende a superação da clivagem sociedade civil e sociedade política argumentando que a atuação desses segmentos é movida por projetos políticos ou “os conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que deve ser a vida em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes sujeitos” (DAGNINO, 2000, p. 98).

Todos estão “fazendo política” disputando espaços de poder e tentando orientar a política pública. A clivagem são os projetos políticos defendidos, abarcando então grupos situados no Estado, na sociedade civil e mercado31.

Compreender o conflito da transposição como o choque entre crenças compartilhadas por atores de segmentos diversos permite também superar a clivagem Estado-sociedade-mercado e identificar a atuação de grupos historicamente excluídos. Isto porque a motivação é dada pela defesa de ideias ou posicionamentos sobre como deve ser modelada a política pública, o que une pessoas dos diversos segmentos. Por sua vez, a criação de novos fóruns, como o Comitê da Bacia do São Francisco, propicia condições para o confronto público dessas ideias.

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Evelina Dagnino (2000, 2004) analisa os projetos de democratização. De acordo com a autora, há três projetos políticos em disputa: autoritário, democrático participativo e neoliberal. Ela é crítica em relação ao projeto neoliberal, visto que incorpora preocupações e práticas participativas como meros instrumentos de gestão em uma dinâmica que denomina de “confluência perversa”.

4.1.5 Sobre a Lei 9.433/1997 e a criação do Comitê da Bacia do Rio São Francisco