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6.2 Análise das crenças políticas

6.2.6 Paradigma de desenvolvimento

Os paradigmas de desenvolvimento ou visões que nortearam as ações empreendidas para o desenvolvimento do semiárido nordestino consistem em importante parte do contexto de discussão do Projeto de Interligação de Bacias. Como analisado no capítulo histórico, as percepções sobre como deveriam ser as intervenções no semiárido transformaram-se. Ao longo da história da região foram formuladas percepções sobre problemas e soluções que permearam (ou não) os programas de governo. Como visto no capítulo 4, o pensamento social sobre a região, seus problemas e soluções pode ser inserido em um dos seguintes conjuntos: “solução hidráulica”, “modernização conservadora” e “convivência com o semiárido”.

A partir do material analisado, constatou-se que a sociedade civil organizada percebe e utiliza essa crença mais frequentemente. A construção e defesa de um novo paradigma representam uma inovação social. Uma das características dos movimentos sociais e um dos papéis da participação é garantir que populações, anseios e projetos antes excluídos passem a ser inseridos na discussão e prática governamental.

Portanto, a crítica aos paradigmas que até então nortearam a ação de governo e não representaram mudanças sociais consistentes tende a ser concentrada nas falas de representantes e manifestos da sociedade civil.

Por parte da comunidade política, é mais sensível criticar as visões e ações que constituíram as ações de governo na região, considerando as possíveis relações que tinham com órgãos de governo como DNOCS e CODEVASF.

A “solução hidráulica”, por exemplo, apesar de consubstanciar fenômenos sociais como a “indústria da seca”, é avaliada como positiva. Nas percepções favoráveis, estão constatações como a de que o semiárido nordestino é o mais populoso do mundo, devido aos açudes do DNOCS. Assim também a avaliação de que os açudes construídos permitem a implementação da ação estruturante que é o Projeto de Interligação.

Quem critica a açudagem do DNOCS, quem critica a chamada solução hidráulica não está percebendo que essa solução dará agora grandes frutos. Uma informação que dou também ao Dr. Aldo Rebouças. Nós não podíamos usar as águas dos açudes construídos pelo DNOCS - havia uma evaporação muito grande, uma salinização muito alta -, porque não tínhamos certeza de que choveria no fim do ano. Se ligarmos todo esse conjunto de barragens a uma torneira no São Francisco, poderemos usar as águas exaustivamente até esvaziar os açudes completamente. É até bom esvaziá-los, porque estaremos tirando a água salinizada e substituindo-a por água de boa qualidade, que é a água do São Francisco. O grande mérito do DNOCS aflorará quando se ligar com o São Francisco e for possível usar as águas que lá estão, porque até o momento não podemos usá-la (DEPUTADO FEDERAL MARCONDES GADELHA PSB/PB, GRUPO DE TRABALHO, CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000).

Por outro lado, o “sucesso” da solução hidráulica também é utilizado na argumentação dos que se opõem à obra. A expressiva acumulação de água alcançada permitiria à região realizar as suas atividades econômicas e sociais sem que a água fosse fator limitador. As estiagens prolongadas não representariam altos riscos, visto que 700 açudes plurianuais já construídos permitiriam o enfrentamento desse problema60.

Técnicos do Ministério da Integração e parlamentares defensores da obra avaliam que esta supera o antigo paradigma da “solução hidráulica” e seus defeitos com base na ênfase em gestão. O conceito de “garantia de segurança hídrica” resume uma nova visão de gestão dos recursos hídricos. Essa nova visão, pelo material analisado, foi gestada nos quadros técnicos e nas discussões políticas no estado do Ceará.

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Informação extraída da fala do Professor da Universidade do Sergipe Luiz Carlos Fontes (ASSEMBLEIA DE MINAS GERAIS, 2007).

O inverno no Nordeste é o salário do caixeiro-viajante: há ano em que chove mais do que a média, em outro, chove menos. Por isso, temos de construir usando a média, porque não sabemos em qual ano haverá seca. Como só usamos a média, só bebemos a metade do copo. E só existe uma forma de beber toda a água do copo: fazendo a transposição do São Francisco. Isso não significa que usaremos a água do São Francisco, mas sabendo que há socorro hidráulico na fronteira; sabendo que há um canal ligado a um rio permanente - a grande vantagem do São Francisco é a sua permanência -, sabendo que há um veículo permanente de água para suprir o Nordeste nas grandes secas, poderemos beber a outra metade da água contida no copo (HYPÉRIDES MACEDO, SECRETÁRIO DE INFRAESTRUTURA HÍDRICA DO MINISTÉRIO DA INTEGRAÇÃO NACIONAL, ATAS DE AUDIÊNCIA, CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2007).

A percepção de que os paradigmas da “solução hidráulica” e “modernização conservadora” não mais atendiam aos anseios e necessidades da população moveu a atuação de setores da sociedade civil. Nota-se que no estado do Ceará, principal defensor da obra, surgiu um movimento em defesa de uma “nova cultura da água”. Esse fato é emblemático, visto que o estado do Ceará pode ser considerado historicamente centro dos grandes episódios da seca, nascimento da ideia do projeto e reduto de atuação do DNOCS.

Primeiro, não se trata de um debate regional, não se trata de um debate que vai confluir a opinião dos estados doares e receptores dessas águas. Trata-se do futuro e destino da gestão das águas no Brasil, porque nós estamos discutindo, efetivamente, um projeto velho de uma velha cultura da água, onde são as grandes obras hídricas que respondem ao problema da escassez e isso nós vimos colocando o nosso manifesto aqui no Estado do Ceará, que essa cultura da água baseada nas grandes obras hídricas é uma espiral crescente e sem fim (FRENTE CEARENSE POR UMA NOVA CULTURA D´ÁGUA, ASSEMBLEIA DO CEARÁ, 2007).

Houve também, por parte de parlamentares, críticas ao contexto “paradigmático” da obra. Apura-se que a crítica objetivava provocar uma “reforma conservadora” ou aprofundamento dos mecanismos de gestão das águas.

[...] irresponsabilidade do Governo é introduzir mais uma vez um projeto, como tantos outros que o DNOCS fez, em que em 90 anos não resolveu o problema da gestão de água do sertanejo do semiárido. E introduz com o mesmo viés. Qual é o viés? Vamos resolver a questão do caneco d'água, vamos resolver a questão do êxodo nordestino. Essa não é mais a abordagem de quem tem uma fronteira como o semiárido para explorar, que é o semiárido mais populoso, é o semiárido com a maior fronteira agrícola que o país tem, em relação ao qual se dá a maior demonstração de incompetência política, porque estamos aquém de todos os semiáridos do mundo ocidental (DEPUTADO FEDERAL CLEMENTINO COELHO, PPS/PE, GRUPO DE TRABALHO, CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2000).

À exceção da demanda pelo Comitê de Bacias por um plano de desenvolvimento em 2003, não foram recorrentes discussões e argumentações baseadas na necessidade de

construção de um plano de desenvolvimento das regiões e do projeto como parte desse plano.