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A proposta de criação de um grupo, no enfoque narrativo e na perspectiva da psicologia feminista, favoreceu o deslocamento da revelação do sofrimento individual para o compartilhamento das experiências, rompendo com a privatização das emoções e propondo a re-significação das experiências a partir de um lugar politizado e de interação. O testemunho compartilhado as encorajou a romper com a perpetuação do silêncio e deixou a certeza de que a proposta da Psicologia Feminista na condução dos atendimentos é uma estratégia importante

e adequada para romper com as naturalizações de gênero. Todas se engajaram na busca de compreender os aspectos políticos e sociais que sustentam a assimetria entre os gêneros à medida que revelavam suas histórias e escutavam experiências similares. Muitas não deixaram de freqüentar o grupo, mesmo apresentando dificuldades para descolamento: negociação no ambiente de trabalho e falta de dinheiro para transporte, quando necessário.

Falas como: “não sei pra quê serve homem”, „por que os homens maltratam”, “isso

não é vida”, “homem impede a vida da gente sonhar”, “as mulheres podem reagir”, entre outras falas que denotam a importância do espaço de compartilhamento, do acesso à informação sobre o processo de ocultação histórica de assujeitamento e da visão crítica do que é visto como natural foram abrindo campo para novas possibilidades de enfrentamento e de resistência à opressão. Débora, por exemplo, disse em um dos encontros que procuraria não mais acusar outra mulher pelas suas vestimentas, pois isso também seria uma atitude machista e opressora.

Outros temas também perpassaram o grupo, tais como: relações de trabalho exploratórias, sistema de justiça ineficiente, despreparo das profissionais de saúde e de delegacias para entender o sofrimento narrado, discriminações raciais e de classe social. O sistema que alimenta as diferenças entre os gêneros é o mesmo que baliza esses lugares desiguais. Trata-se, pois, da mesma estrutura social.

O medo de confessar, alívio no compartilhar, pudor em nomear o que ouviu do companheiro, experiência positiva da quebra do silêncio, perspectivas de afirmação e de novas experiências subjetivas foram algumas das propostas do espaço de compartilhamento construído durante a pesquisa. Procurou-se não interpretar suas falas e romper com a idéia de categorias sistematizadas, que visam identificar, generalizar e decifrar fenômenos. A principal intenção foi de evidenciar, e aprender junto com quem vivencia situações de opressão, a estrutura invisibilizada da cultura fundamentada no modelo diferencial de status – o patriarcado - e o discurso da intimidade que legitima e banaliza o ato violento.

A experiência revelou a importância de se incluir uma visão transdisciplinar nas ciências humanas, principalmente na psicologia, uma vez que esta tende a reforçar a individualidade e a privatização dos sentimentos.

Sawaia (2001), apoiada em Espinosa, reforça que “o psicológico, o social e o político

se entrelaçam e se revertem uns nos outros...” (p.101). A proposta de cruzar diferentes campos teóricos ou disciplinares na prática clínica em psicologia tem como principal objetivo o de tornar público o que foi tratado como individual e contextualizar o campo histórico e político (em terapia) que constituem o sujeito psicológico. A proposta é romper com o

paradigma individual e particular e politizar as expressões manifestas no corpo, criando espaço para tornar pública a expressão das vivências conjugais e emoções, seguindo a proposta de Michael White e a epistemologia feminista.

Sawaia, 2001, ressalta o quão importante é para a psicologia incorporar o corpo do sujeito nas análises econômicas e políticas e diz que o corpo é também social e não só biológico e emocional: “a mente está no corpo todo e dele deriva. A alma é idéia de seu

corpo, é a idéia de si a partir da idéia de seu corpo.” (p. 101).

Segue, abaixo, a relação sugerida por Michael White entre a paisagem de ação (atitudes) e a paisagem de consciência (processo de significação). A proposta desse esquema não é reduzir as experiências do grupo, mas apresentar como a metodologia feminista com base no enfoque narrativo pode contribuir para dinamizar o sentido da experiência de violência, des-vitimizando a mulher e construindo um campo de enfrentamento politizado e compartilhado. O quadro da esquerda apresenta trechos das histórias de agressões e o quadro da direita evidencia as tentativas de resistências e reações efetivas que se tornaram alvo de conscientização e reflexão do grupo. A percepção da agressão está inserida no quadro da paisagem de consciência.

Relato da Agressão Paisagem de Consciência

você não pode nem dar bom dia para as

pessoa que trabalha Isso é um absurdo Você é uma derrotada Isso maltrata muito Achei que tivesse perdido onze anos Eu não perdi Você não presta, tem que apanhar muito Maus tratos de palavras

Te acusa de coisa que você não fez Você agüenta muita coisa

Quebrou o copo no meu rosto São coisas assim impressionantes que eles fazem Primeiro ano foi flores Depois fogo

Comecei a reagir Ele começou a me agredir

Me batia na cara, me jogava na parede Aí percebi que a violência estava entrando Quando viu que eu não precisava das pernas

e nem dos braços dele Ele começou a me agredir A pressão foi muito grande em cima dos

meus filhos Pago o que tiver que pagar, eu não volto. Agressão verbal, humilhação Não queria ver a verdade que estava acontecendo. Não dá para viver com um homem desse, não dá.

Eu já vivi tanta violência doméstica

Mas não considerava....descobrir que em toda a minha vida, desde os 18 anos, eu sofro

violência...eu achava que fazia parte Só não tem violência física Eu não permiti, mas ele já tentou

Ele veio...com uma faca Eu não deixei...disse que nunca mais iria levar nem um tapa Com quem você já namorou? Não tem precisão de você estar comentando Ele queria que eu tivesse relação com ele...eu

ele queria me pegar na marra Se me pegar na marra só pega uma vez Não sou seu objeto sexual E na verdade eu era mesmo

Fingia que não me via

O homem não te respeita, se ele passava na rua e me visse, ele passava reto e fingia que não me via.

Aí eu pensava, meu Deus, isso não é homem não. Era carinhoso, muito atencioso, muito família Depois de uns 2 anos foi mudando

Ele estava tendo um caso Foi nesse período que ele me bateu

Eu já acreditei na chantagem Hoje sei que é mentira, que é tudo chantagem para eu não sair de perto dele Fala que eu sou velha, que velho não aprende

nada Já acreditei muito

Ciúmes A gente sabe que não consegue agüentar isso Separação

Eu tinha medo de levar o nome de separada, de espancada, de violentada. Eu tinha muito medo

disso.

Vínculo Meu Deus, eu estou muito acomodada, isso não está certo?

Estou acomodada Eu pago um preço muito alto, entendeu?

Agressão

Estou perdendo a minha vida...estou perdendo as conquistas que eu sei que posso, entendeu? Eu sou

capaz de um monte de coisa, não preciso de um homem para alcançar meus objetivos Tortura psicológica Gente, quem ama não faz uma coisa dessa

Violência Só quem passa, quem vive é que sabe a profundidade da cicatriz Relação conjugal

Não posso agir igual a ele, eu sou eu, ele é ele, não pode ser um só, porque somos dois. Agora é

combinar as coisas

Quadro 1 – Percepção da Agressão na perspectiva da Paisagem de Consciência de Michael White Fonte: A autora

As colunas foram sistematizadas de forma ilustrativa para aproximar as leitoras do processo de construção da pesquisa, que teve como principal finalidade a interação, a troca afetiva, o resgate de um espaço de confiança. Esse ambiente só foi possível a partir da uma escuta diferenciada e sem categorizações feitas a priori, tecendo um ambiente de reflexão crítica da violência, rompendo com a idéia de responsabilidade puramente individual.

Quando uma Margarida diz: estou acomodada, ela percebe o contexto não apenas da agressão doméstica, mas o conjunto de fatores que a moldam nessa posição, como a suposta comodidade financeira e a pseudo-segurança de não estar se “vulnerabilizando na rua”. Então acrescenta: Eu pago um preço muito alto, entendeu? Esse é o preço ao qual ela se submete para inserir-se num discurso social, que ameaça seu trânsito no espaço público e a confina em um apartamento de 40 m2, impedindo-a, inclusive, de descer na portaria do prédio para ver o dia e conversar com as vizinhas. No momento em que ela vai percebendo o assujeitamento, resiste à opressão do companheiro e ensaia tentativas de independência, embora com muitas dificuldades e dúvidas.

O confinamento no espaço privado e a perda de confiança no espaço público foi também narrado por Lourdes, que apesar de estar separada do agressor, perdeu a confiança nas pessoas: Eu só estou tentando ter uma vida de liberdade, porque eu ainda me sinto uma

presa. Eu ando na rua e estou insegura, eu moro com uma pessoa e não confio [...] eu não

confio em ninguém. No meu trabalho eu não confio nas pessoas, eu vejo as pessoas que vivem falando umas das outras, e penso, será que todo mundo é assim? Aí eu prefiro ficar sozinha.

As pessoa falam e me ofendem, eu só choro, eu não sei responder ninguém mal”.

A privatização da relação, o confinamento e a marca da agressão foram também narradas por Alessandra: Aí as pessoas acham que a gente está chorando porque gosta ou

sem motivo, não sabe o que vai dentro da gente por resto da vida, eu já tenho muitos anos e não consigo, já pelejei de todas as maneiras possíveis e não consigo. Quando eu vou depilar as pernas, quando eu vou tomar banho, quando eu olho assim para passar batom eu fico muito chateada com isso, sem falar nas palavras de abusar, trair, que você vai trair sem nem você ta falando com a pessoa, não quer que você olha para os lados, você não pode nem dar

bom dia para as pessoas com que trabalha, isso é um absurdo, tudo isso é violência.

Outra Margarida compartilha: Eu já acreditei na chantagem. Essa fala explicita o que a mantém no vínculo, que é marco da opressão naturalizada. Ele a ameaça de esconder as filhas, de que o espaço público ou outro marido só teriam interesse em estuprar suas filhas, desqualificações do que é entendido como diferente, no caso a mulher, e ameaças de morte. Todas essas ameaças preparam o cenário de terror e as impedem de reagir. No momento em que estão na cena “familiar” não conseguem vislumbrar nenhuma alternativa, sendo acometidas pelo pânico de serem exterminadas, invadidas e arruinadas. A síndrome do pânico e os quadros graves de depressão decorrem dessa vivência e não de um dispositivo interno melancólico ou masoquista que as submetem por natureza.

A pergunta não é sobre o que as fazem permanecer no sofrimento, mas contextualizar como a história de agressão está sustentada por uma pedagogia da opressão que constrói corpos, define normas sociais e funções dicotômicas. O risco real, o medo desencadeado e a inversão do que é entendido como a agressão, no sentido em que a mulher se vê obrigada a fugir da situação e da casa, a aprisionam na relação. O agressor, ao contrário, em nenhum momento se sente impelido a fugir por estar ameaçando ou maltratando dentro de casa. A partir de toda essa elaboração, ela conclui: Hoje sei que é mentira, que é tudo chantagem.

Ele queria que eu tivesse relação com ele...eu não e, ele queria me pegar na marra

são demandas do companheiro que imputam o dever conjugal. A proposta da intimidade como um lugar de autonomia e independência pretendida pela mulher no momento da

“escolha” pelo casamento, idéia de rompimento com os genitores como forma de ser “independente na vida”, é traída pela presunção da mulher como propriedade e responsabilidade do marido. O desejo de autonomia se transforma em fardo conjugal, quando ela é impelida a realizar os desejos sexuais dele, passando a acreditar que lhe deve esse tributo. O companheiro, neste modelo, é quem define o desejo e o momento da relação sexual. Quando ela responde: Não sou seu objeto sexual, ela identifica o seu lugar objetalizado no desejo do companheiro, mas mesmo identificando esse papel na relação, precisa da interlocução com o grupo para tomar consciência: E na verdade eu era mesmo, ou seja, ela percebe que não tinha nada mais para ser extraído daquela relação, isto é, ela se vê reduzida a uma posição em uma estrutura, o que fortalece a sua capacidade de consolidar a ruptura de um vínculo, sem se sentir pessoalmente incapaz ou responsável pela derrota.

Em “ele passava reto e fingia que não me via. Aí eu pensava: meu Deus, isso não é

homem não. A questão não é ser ou não homem, e sim que aquele não era o modelo de

relação que ela idealizou como sinônimo de companheirismo, luta, respeito e crescimento patrimonial e intelectual. Todas as Margaridas lamentam a perda da escolaridade ou de continuidade nos estudos de graduação e perda do patrimônio, símbolo de progressão no

status social. São recorrentes os relatos de fuga da mulher para se libertar das agressões,

abandonando a casa e outros bens materiais. Shenna e Cláudia, por exemplo, romperam o vínculo e foram obrigadas e recomeçar a vida do zero, sem casa, sem dinheiro, sem profissão e quase sem apoio: Eu não tinha profissão, não tinha nada. Não era justo tirar eles dali pra

viver sei lá como. Vinte anos é uma vida. Eu penso várias vezes que não tenho uma profissão hoje por causa dele.(Cláudia).

As agressões verbais são narradas como as experiências mais difíceis de serem superadas: A violência física às vezes a gente esquece. Os tapas, empurrões. Mas a agressão

moral ela é muito profunda. (Cláudia)

Os chistes que subjugam a mulher - levianamente interpretados como brincadeiras inocentes - transformam-se em um modelo de relação na esfera privada. Esse exemplo denota como uma “brincadeira” pode se instituir como uma pedagogia para o assujeitamento e insensibilidade à opressão. As falas das margaridas comprovam a eficácia simbólica das palavras quando relatam que não conseguem se libertar das agressões verbais: Ouvi muitas

besteiras, ouvi coisas que não posso nem relatar, porque ficou, sabe? Quando eu estava lá no auge, tava lá, aí lá vinha aquelas palavras: você é uma derrotada, que não sei o que, não sei o que... então há também essa parte e isso maltrata muito a gente tem coisas que você fecha

os olhos, você lembra, que você chora, ainda tem muitas coisas que eu choro ainda, não porque eu amei, porque eu perdi, porque eu vivi.

A reflexão sobre sua vivência particular, o compartilhamento em grupo e a articulação destas experiências com uma visão politizada das agressões, constroem o caminho alternativo, sem que ela se veja como vítima: hoje eu começo a ver as coisas diferentes. Eu achava que

tinha perdido onze anos da minha vida, e eu não perdi.

Claro está, pois, que o grupo de pessoas em situação de violência vive uma situação real de hierarquia de gênero e que essa vivencia tem efeitos profundos na sua existência.

4.5 PSICOLOGIA FEMINISTA: UMA POSSÍVEL ESTRATÉGIA DE INTERVENÇÃO