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Violência Conjugal: uma perspectiva da psicologia feminista no enfrentamento às situações de violência contra mulheres

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Academic year: 2017

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VIOLÊNCIA CONJUGAL: UMA PERSPECTIVA DA

PSICOLOGIA FEMINISTA NO ENFRENTAMENTO

ÀS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA CONTRA

MULHERES

Autora: Flávia Bascuñán Timm

Orientador: Prof. Dr. Vicente de Paula Faleiros

Mestrado

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FLÁVIA BASCUÑÁN TIMM

VIOLÊNCIA CONJUGAL: UMA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA FEMINISTA NO ENFRENTAMENTO ÀS SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia na Universidade Católica de Brasília, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Psicologia.

Orientador: Prof. Dr. Vicente de Paula Faleiros.

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Dissertação de autoria de Flávia Bascuñán Timm, intitulada “Violência Conjugal: uma perspectiva da psicologia feminista no enfrentamento às situações de violência contra mulheres”, apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Psicologia pela Universidade Católica de Brasília, defendida e aprovada em 30 de setembro de 2008, pela Banca Examinadora abaixo assinada:

_________________________________ Prof. Dr. Vicente de Paula Faleiros

Orientador

Mestrado em Psicologia – UCB

_____________________________ Profª. Drª. Berenice Bento Examinador Externo – UNB

_______________________________ Profª. Drª. Damares de Castro Aleixo

Examinador Externo – UNB

_________________________________ Profª. Drª. Ondina Pena Pereira Mestrado em Psicologia – UCB

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, às Margaridas, que se dispuseram a aprofundar um tema tão difícil e que atravessam tão dolorosamente suas memórias e vidas de violência. Suas reflexões e contribuições foram fundamentais para tecer o texto e para continuarmos acreditando em processos efetivos de mudanças e rompimento da opressão.

Agradeço imensamente ao professor Vicente Faleiros por sua generosidade ao aceitar prosseguir esse trabalho - sem me conhecer - acreditando na proposta. Agradeço pelas referências bibliográficas certeiras, pelo afeto e pelo acompanhamento durante esse percurso.

Agradeço especialmente à pensadora Prof.ª Ondina Pena Pereira pelas reflexões, cuidado e atenção dispensada às minhas idéias, apoio nas horas de crise, amizade, sensibilidade e apresentação de textos e autoras e autores que foram imprescindíveis para a formulação das perguntas e análise deste trabalho.

Agradeço à minha mãe pelo fundamental apoio de retaguarda, pelas idéias e pelas discussões do tema ao longo do trabalho. Agradeço sua compreensão nos momentos de tensão e pela minha ausência neste último um ano.

Agradeço minha querida irmã por ter suportado minhas angústias e afastamento durante este último ano.

Agradeço ao meu pai por ter me encorajado e impulsionado a fazer o mestrado. Devo ao apoio dele minha primeira iniciativa.

Agradeço à Daniela, companheira e leitora assídua dos meus textos, pelas idéias e reflexões diárias, sem ela nada disso teria sido possível.

Agradeço, especialmente, às minhas queridas amigas e amigos que não mediram esforços em me apoiar nas horas de exaustão e descrença com o rigor acadêmico. Certamente, sem vocês eu não teria insistido nesta tarefa.

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“Escrevo para registrar o que os outros apagam quando eu falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você.

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RESUMO

TIMM, Flávia Bascuñán. Violência Conjugal: uma perspectiva da psicologia feminista no enfrentamento às situações de violência contra mulheres. 2008. 100 folhas. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2008.

Este trabalho versa sobre o conjunto de fatores que corroboram para a permanência de mulheres no vínculo conjugal violento, em especial, pela influência de uma cultura patriarcal capaz de manter uma economia desigual de status entre os gêneros. A pesquisa foi orientada por pensadoras feministas, pesquisadorasa área de gênero, pelas análises foucaultianas e de Rita Segato. O método adotado foi a pesquisa qualitativa feminista e o enfoque narrativo de Michael White, dois suportes que auxiliaram na interação, de forma ética e engajada, junto às contribuições das seis mulheres em situação de violência que participaram da pesquisa. Os resultados apontam para uma violência moral, que legitima a violência, impedindo muitas mulheres em situação de violência de percebê-la como tal, naturalizando a opressão e perdendo sua potência diante das situações de agressão e intimidação. As análises desenvolvidas ao longo da dissertação sinalizam, ainda, que o esvaziamento do espaço público e o investimento recorrente na intimidade, funcionam como dois mecanismos que contribuem para a privatização do espaço íntimo e a submissão de muitas mulheres ao mundo privado.

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ABSTRACT

This study shows how a series of factors corroborate for the continuance of women in violent relationships, especially, due to the influence of a patriarchal culture, capable of maintaining an unequal economy of status between genders. This research was guided by feminist thinkers, authors in the field of gender, and the analysis of Michel Foucault and Rita Segato. The methodology adopted was qualitative feminist research and the narrative approach of Michael White, the basis of the interaction, in an ethical and engaged manner, with the contribution of six women who participated in the research. The results show that moral violence legitimates violence and impedes countless battered women of recognizing such violence, naturalizing oppressive situations and becoming less empowered in face of situations of aggression and intimidation. The study developed throughout this master thesis shows that the lack of attention given to the public sphere and the recurrent focus in intimacy act as two mechanisms that contribute towards the privatization of the intimate sphere and the submission of countless women to the private world.

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SUMÁRIO

1 PARA ALÉM DO DIVÃ ... 8

2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO E VIOLÊNCIA CONJUGAL ... 15

2.1 SEXO COMO CATERGORIA POLÍTICA DA SUPOSTA NEUTRALIDADE À CONSTRUÇÃO DA DIFERENÇA SEXUAL COMO PROJETO BIOPOLÍTICO ... 17

2.2 DADOS SOBRE A VIOLÊNCIA ENDÊMICA CONTRA MULHERES ... 23

2.3 FEMINISMO E GÊNERO NA PSICOLOGIA: UMA BREVE APRESENTAÇÃO ... 28

2.4 O PATRIARCADO SIMBÓLICO COMO DETERMINANTE DA VIOLÊNCIA CONJUGAL ... 32

3 CAMINHOS DA APROXIMAÇÃO: MÉTODO ... 36

3.1 DESCREVENDO A PESQUISA ... 40

3.2 PARTICIPANTES ... 41

3.3 PROCEDIMENTOS DA INVESTIGAÇÃO ... 42

3.4 INSTRUMENTOS ... 43

3.5 FUNDAMENTOS DA ENTREVISTA DE GRUPO FOCAL ... 43

3.6 FUNDAMENTOS DA PERSPECTIVA NARRATIVA DE MICHAEL WHITE ... 44

3.7 DESCRIÇÃO DOS ENCONTROS ... 46

3.8 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE - EXEGESE RECÍPROCA ... 50

4 A VIOLÊNCIA DE GÊNERO EFICAZ À ECONOMIA PATRIARCAL – CORPOS QUE IMPORTAM COMO MENSAGEIROS... 51

4.1 VIOLÊNCIA ESTRUTURAL: A HIERARQUIA QUE SURGE NOS MITOS DE CRIAÇÃO ... 52

4.2 VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES: DA PEDAGOGIA DA OPRESSÃO À PRODUÇÃO DAS IDENTIDADES ... 62

4.3 DA SUBMISSÃO DA IDENTIDADE À PRIVATIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA ... 68

4.4 EXPERIÊNCIA DE GRUPO: DESLOCAMENTO DA REVELAÇÃO INDIVIDUAL AO COMPARTILHAMENTO ... 73

4.5 PSICOLOGIA FEMINISTA: UMA POSSÍVEL ESTRATÉGIA DE INTERVENÇÃO NOS CASOS DE VIOLÊNCIA CONJUGAL ... 79

5 NOTAS CONCLUSIVAS ... 81

APÊNDICE A – ROTEIRO DE ENTREVISTA DE GRUPO FOCAL ... 92

APÊNDICE B – ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA ... 93

ANEXO A – HISTÓRIA FICTÍCIA DE APARECIDA ... 95

ANEXO B – CARTAZ ELABORADO POR UM COLETIVO DE MULHERES DA ARGENTINA, CHAMADO “MUJERES PUBLICAS”. ... 96

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1 PARA ALÉM DO DIVÃ

As mulheres receberam, e ainda recebem, uma carga mais ou menos pesada no que tange a produção maquinímica de subjetividades. (GUATTARI, 1981). O meu interesse no tema da permanência de mulheres no vínculo conjugal violento, motivador desta pesquisa, surgiu a partir das reflexões que articulam análises sob três eixos: cultura, sociedade e psiquismo. A idéia de uma onipotência psíquica capaz de operar, sem nenhuma interferência cultural, a vida das pessoas, parece-me inaceitável quando o tema é violência contra mulheres. Neste trabalho, entende-se que o vínculo violento é reproduzido e mantido pelas heranças machistas e misóginas calcadas numa cultura que ainda se fundamenta e edita suas referências numa ordem de status diferencial e hierárquica, dita de outra forma, patriarcal.

A produção de subjetividades em série, chamadas de maquinímicas por Guattari (1981), auxilia o desenvolvimento do tema no sentido em que revela o quanto o processo de subjetivação também é refém do modelo hegemônico de dominação, que cria padrões de comportamentos engessados e firmados em papéis sexuais e sociais.

Safiotti (2003) compartilha da idéia de produção de subjetividades e diz que a sociedade está estruturada no sexismo, no racismo e no capitalismo (que são escalas diferenciais de status), capazes de produzir insensibilidades e conformação do olhar sobre as desigualdades e, conseqüentemente, sobre as normatizações de gênero de forma “maquinímica”. A demanda de um modelo a ser seguido instaurou a norma como parâmetro, produzindo em larga escala, subjetividades acomodadas, conformadas, ao modelo hegemônico. A construção do que se entende por feminino e masculino segue esses eixos normativos, relegando aos corpos, a partir de traços biológicos determinados e entendidos como diferenciadores, uma identidade normatizada e uma subjetividade correspondente a cada um desses atributos sociais.

Wittig (2006) critica essa naturalização dos gêneros e argumenta que essa forma de determinar o gênero, é um mecanismo semelhante ao racismo, que toma a parte, no caso a cor, pelo todo. Segundo a autora, o sexo, que é parte do ser humano, é tomado pelo todo, e essas categorias criadas, masculino/feminino, macho/fêmea só servem para dissimular as diferenças sociais que emergem de uma ordem econômica, política e ideológica.

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A partir dessa breve reflexão e pensando no contexto da psicologia como pretensamente autorizada a proceder à análise dessas subjetividades, passei a me interessar por outras leituras capazes de abrir o meu campo de percepção. Assim, procurei articular sintoma e expressão do sofrimento com cultura e normas sociais, de forma a não reduzir as vivências de dor produzidas pelo preconceito social ou estereótipos pelos gênero, ao funcionamento de um aparelho psíquico.

Meu percurso na psicologia tem sido marcado pelo enorme desconforto ao perceber que a prática clínica tanto mais comprometida seria quanto fosse capaz de tratar, proporcionalmente ao cuidado que dispensa à investigação da intimidade das pessoas – a quem atribui uma codificação pautada no funcionamento do aparelho psíquico –, uma escuta disposta a dialogar com o seu sofrimento a partir de um contexto sociocultural mais amplo, numa proposta sem pretensões a uma falsa objetividade e a uma falsa neutralidade.

A história da psicologia, que até meados do século XX pautou suas investigações no modelo explicativo do positivismo, definiu seu objeto - a vida psíquica - a partir do modelo biológico, médico e pretensamente neutro e objetivo. Essa filosofia acadêmica que marcou o percurso da psicologia – e evidentemente o meu, por ver esse modelo sendo reproduzido na academia – produziu, por um lado, resultados úteis aos interesses dominantes da época, mas, por outro, contribuiu para atomizar o sujeito em categorias estanques.

A produção desse saber pautado no positivismo, apesar de ter encontrado respostas satisfatórias às perguntas ou às demandas da época, não foi capaz de sustentar críticas mais aprofundadas advindas da filosofia, como a de Foucault em a História da Loucura, e do estudo rigoroso de alguns modelos explicativos que buscavam replicar os experimentos já realizados. Este fato denuncia que o método para investigar o objeto de estudo – o psiquismo – encontra um vácuo entre biologia, sociologia, filosofia e psicologia. Nomes como do alemão Wilhelm Wundt, considerado o “pai” da psicologia, foram reconhecidos por terem contribuído para distinguir a psicologia como uma disciplina autônoma; e do inglês Edward Tichener, discípulo de Wundt, que aplicou experimentos em animais para explicar modelos de comportamento, são apenas alguns dos cientistas ligados a esse empenho (PÉCKER, 2001).

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descreviam as emoções, as atitudes, as atividades sexuais ditas saudáveis, entre outros comportamentos já normatizados, e as codificavam sob alguma nosografia.

Esse universo diverso da psicologia – marcado por diferentes teorias: psicanálise, gestalt, behaviorista, sistêmica, humanista – por um lado é rico ao apresentar diferentes enfoques e metodologias, mas, por outro, limitado por não conseguir manter uma discussão aprofundada sobre a relação entre a filosofia e a psicologia (PÉCKER, 2001), o que não somente empobreceu a reflexão crítica como pasteurizou as intervenções a partir de uma leitura sobre o sujeito e não para o sujeito. Este modelo de investigação em psicologia buscou, por muito tempo, conhecimentos objetivos, “isentos de valores sociais, políticos e morais, assentados numa filosofia individualista que encara as pessoas como racionais” (SAAVEDRA; NOGUEIRA, 2006), o que torna insustentável sua prática a partir desse modelo.

Minha inserção na prática aumentou o meu desconforto, em especial, ao perceber – a partir do trabalho com pessoas em situações de vulnerabilidade e violência – que uma ciência psicológica sobre o sujeito não as auxiliaria a romper paradigmas, analisar discursos hegemônicos e resistir a certos assujeitamentos, conforme descreve Foucault sobre o disciplinamento dos corpos (FOUCAULT, 1993).

Durante meu processo de formação acadêmica (na graduação), não houve espaço para contextualizações das experiências subjetivas a partir da articulação com categorias como raça, etnia, pobreza, gênero etc. Tratávamos subjetividades genéricas passíveis de enquadramento em estruturas clínicas e teorias universais, ou facilmente descritas em eventos ou estados sintomáticos, apartadas da realidade social das pessoas e explicadas racionalmente a partir de leis psicológicas – ou seja, estávamos preocupadas em descrever e apresentar o como e não um por que das coisas. A descrição dos fenômenos observáveis – o como – é uma prática recorrente nas ciências psis, o que pode ser facilmente verificado nos prestigiados manuais de codificação, como o Código Internacional de Doenças – CID 10 e o Manual Diagnóstico de Doença Mental – DSM –VI. Apesar de algumas profissionais não recorrerem a esses instrumentos, é inegável a influência dessa corrente filosófica do positivismo nas disciplinas e na metodologia acadêmica.

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solitária na prática e com uma responsabilidade quase mágica, para não dizer onipotente, de descrever a vida das pessoas, devolvendo-lhe fórmulas para resolver seus problemas. Eu as via sozinhas, sem rede de apoio, esvaziadas de compartilhamento coletivo, tendo como única alternativa de sobrevivência a possibilidade de reduzir toda a reflexão sobre sua vida a um suposto saber médico ou psicológico.

A partir do contato com a realidade e da escuta do que era trazido como “problema” pelas pessoas e pelas instituições – como a demanda de juízas nos casos de atendimento a adolescentes em regime socioeducativo de liberdade assistida e de conselheiras tutelares que queriam se certificar da capacidade da mãe poder criar uma filha a partir de um laudo psicológico –, fui percebendo a hegemonização do discurso da intimidade, da individualidade, restringida a espaços privados. As maiores queixas das “mulheres e mães” eram violências conjugais e sentimento de impotência e culpa por não terem tido condições de desempenhar sua função social de boas mães ou sexual como mulheres. Já as filhas que cometiam alguma infração justificavam suas ações a partir da situação de vulnerabilidade e violência vivenciadas dentro de casa. Esse ciclo de argumentações me fez pensar no quanto o discurso da família idealizada e das expectativas de conjugalidade estavam vinculadas à produção de sofrimento e culpa construídas socialmente e não individualmente.

Como, então, perguntava-me, propor atendimento às pessoas se elas estavam absolutamente excluídas de seu contexto histórico, cultural e político? Como escutar e produzir mutuamente rupturas com as estruturas de assujeitamento se eu não sabia situar ou analisar criticamente o contexto externo que produzia sofrimento nas pessoas?

Recuperar os conceitos que foram banidos das ciências – como o uso das emoções – e propor uma análise contra-hegemônica apenas delineou o início desse caminho. A utilização da afetividade em prol do conhecimento foi um dos caminhos escolhidos para me aproximar das experiências de sofrimento, conforme proposto por Sawaia (2001), por pensadoras feministas como Alisson Jaggar (1997) e pelo enfoque narrativo de Michael White (2002).

Assim, a afetividade foi mais que uma ferramenta de estudo, foi o que tornou possível a ponte entre a reflexão crítica e as produções discursivas pulverizadas no cotidiano capazes de mutilar as relações, a capacidade de autonomia e a subjetividade das pessoas que pediam ajuda (SAWAIA, 2001).

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vivida como motivação, emoção e necessidade do eu. A queixa está vinculada a todas essas categorias e à produção sintomática também. Para Sawaia (2001, p. 99), essa experiência de sofrimento no sujeito da exclusão não tem a gênese nele, “e sim em intersubjetivdades delineadas socialmente”. As manifestações de sofrimento evidenciam as dominações ocultas, muitas categorizadas como parte de uma dita natureza humana. O discurso da inevitabilidade, criticado por Segato (2003), engessa hierarquias e aliena o sujeito numa posição de conforto, de acomodação do olhar com todas as desigualdades que estão escancaradas nas ruas, nas falas misóginas, na diferença social e econômica, entre outras. Não estudar pela via das emoções simboliza, para mim, o (des) compromisso com elementos reais da vida cotidiana que produz sofrimento persistente nas pessoas.

Categorizar não é uma tarefa difícil, mas se debruçar para encontrar um caminho alternativo e romper com comportamentos maquinímicos ou miméticos que alimentam o sofrimento e a conformação em descrever quadros clínicos (FOUCAULT, 1993) foi uma tarefa quase impossível só com o recurso da Psicologia. Passei a me interrogar como seria possível uma prática clínica politizada e que pudesse atender a demanda da pessoa em situação de violência, principalmente de mulheres agredidas por seus companheiros. Foi então que comecei a me interessar por leituras em outras disciplinas e percebi que as teorias não eram tão neutras e imparciais quanto se mostravam, tendo em vista que a produção de um conceito estava intimamente relacionada com o momento histórico e político, e essas influências se intersectam com a subjetividade: “ninguém vê a realidade através de uma lente livre da estampa da nossa própria subjetividade” (GOLDNER, 2007, p. 106)

Neste trabalho, interessei-me, particularmente, pelo enfoque narrativo proposto por Michael White (2002) por sugerir um enfoque metodológico que valoriza as falas das pessoas e que favorece caminhos mais próximos de suas experiências. Sua proposta delineia um caminho alternativo para nos aproximarmos da vivência de dor e sofrimento das mulheres em situação de violência. O objetivo não é interpretar suas falas, o que sem dúvida carrega um valor da pesquisadora ou do pesquisador, mas de apresentar como essas narrativas são construídas e subjetivamente vivenciadas a partir de um marco de inteligibilidade. A esse respeito nos diz White (2002, p. 18):

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Para o autor, não há processo de interpretação neutro: “[...] vivemos através dos relatos que temos sobre nossas vidas, que essas histórias em efeito modelam nossas vidas, as constituem e as abraçam.”

A violência contra mulheres1, bem como qualquer outra forma de hierarquia pautada na escala de valor social desigual - aqui se insere o racismo, a homofobia, o sexismo, o especismo – merece destaque nas análises críticas das relações de gênero e do capitalismo (SAFIOTTI, 2003). Na questão da mulher, podemos ressaltar a importância das contribuições feministas que deram visibilidade a posição de subalternidade do feminino e da mulher. Porém, essas discussões não foram suficientes para interromper o ciclo de agressões contra as mulheres no Brasil e no mundo. Uma das principais forças que impedem a interrupção desse ciclo é o modelo dicotômico naturalizado que estabelece não apenas a oposição binária de gêneros, mas outros binarismos como: senhor e escravo e sujeito e objeto (GOLDNER, 2007), o que será discutido na seção 4.1.

Essa estrutura excludente continua a reforçar a herança cultural do patriarcado, que por sua vez subsidia constantemente as polaridades tradicionais e faz vigorar uma prática médica e psicológica que reproduz uma visão dicotômica, binária e essencializadora de corpos e subjetividades. O importante é não negligenciar a existência de uma essencialização de gênero instituída nas relações entre as pessoas, para assim, manter a tensão ao refletir sobre os paradoxos das identidades e estar atenta à complexidade dessas contradições (GOLDNER, 2007).

Minha participação em um grupo de mulheres com experiência de violência conjugal teve como um dos principais objetivos compartilhar essas experiências, valorizando suas narrativas e pautando uma intervenção propositiva que permitisse a busca de ruptura com a situação de violência. Foi a partir dessa vivência que recortamos e transcrevemos juntas as narrativas que tanto apresentavam heranças machistas e misóginas – influências estas que as aprisionaram em processos de subjetivação de dor, sofrimento e tolerância às situações de agressões – quanto seus anseios e lutas por romper o ciclo da violência e construir sua autonomia2. A permanência no vínculo violento foi por elas justificada como um conjunto de fatores que se entrelaçam, que vão desde acomodações e repetições culturais que definem o

1A presença do artigo feminino no plural “as” ou no singular “a” implica limitações semânticas e universaliza as

mulheres.

2 Autonomia é aqui entendida como prática de auto-realização e liberdade que depende de comunidade,

interlocução; não se assemelha a individualização ou solidão. Conforme definição do coletivo corpuscrisis, de micro-política feminista, autonomia é “precisar do maior número de pessoas possível. precisar não, é querer estar perto, produzindo, sonhando y plantando com o maior número possível de pessoas, de maneira liberta, libertadora, comunitária. liberdade é uma prática que se constrói coletivamente.”, conforme citado em <

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destino das mulheres até experiências de medo, sofrimento profundo e expectativas de mudança.

O objetivo geral da pesquisa foi entrar em contato com a construção narrativa dessas mulheres, para, juntas, percebermos o eixo entre a experiência subjetiva de cada uma e os aspectos socioculturais que determinam a permanência no vínculo e a produção de estados de angústia, dor e sofrimento, pensando ações para sua desestabilização (contextual) e re-significação (experiencial).

As temáticas evidenciadas no grupo de pesquisa e na dissertação seguiram os seguintes eixos: identificar nas narrativas das mulheres os significados atribuídos às vivências de violência conjugal; identificar a herança sexista, essencializada e binária dos discursos socialmente reproduzidos e legitimados; relacionar esses significados a aspectos socioculturais (questões de gênero e reprodução do patriarcado); investigar a relação entre os fatores socioculturais e a produção de subjetividades em série e, por fim, re-significar as experiências a partir da própria narrativa e do compartilhamento em grupo, provocando as certezas aprendidas no que se refere às especificidades de gênero e da essencialização dos corpos a partir de uma leitura pautada na perspectiva feminista.

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2 VIOLÊNCIA DE GÊNERO E VIOLÊNCIA CONJUGAL

O tema da violência conjugal, objeto de estudo desta pesquisa, é uma triste realidade que atinge mulheres, homens e crianças. Em especial, trata-se de uma situação que leva ao sofrimento e ao adoecimento de muitas mulheres (SCHRAIBER; D‟OLIVEIRA, 2003). Em termos numéricos, sabe-se que existe um quantitativo muito maior de mulheres agredidas por homens, principalmente dentro das relações afetivo-amorosas – como apontam os indicadores de violência contra mulheres – do que homens agredidos por mulheres, embora seja importante ressaltar que também há homens que sofrem agressões.

A pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo (2001) apontou que o marido ou parceiro íntimo são responsáveis pela violência conjugal, sendo os principais agressores. As agressões variam entre 53% em ameaça a integridade física com armas e 70% corresponde a “quebradeira dentro de casa”. Mesmo com percentuais alarmantes, pode-se inferir que os índices apresentados de violência contra mulheres não representam mais que 5 a 10% da incidência real, o que denuncia que a situação é ainda mais grave (SEGATO, 2003).

Os dados são nítidos e delatam a situação opressiva vivida pelas mulheres, como será apresentado no próximo capítulo, mas definições sobre a violência conjugal e a forma de investigação sobre o tema se diferenciam a partir da concepção teórica da investigadora.

Neste trabalho partiremos da análise de gênero, que abre o campo para contextualização, escapando, assim, às categorias puramente psicológicas, e ainda, incluiremos a abordagem teórica e metodológica feminista para nos aproximarmos da realidade de algumas mulheres em situação de violência, que será melhor contextualizada na seção 2.2.

A inserção dessa categoria analítica de gênero na condução da pesquisa implica dizer que serão consideradas outras nuances para problematizar o tema, tais como a construção do paradigma da diferença sexual como identidade e a construção de um eixo diferencial que atribui poder ao masculino, o que Segato (2003) intitulou de patriarcado simbólico.

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Uma possível definição para qualificar o fenômeno da violência contra mulheres é dada pela Convenção Interamericana para Erradicação da Violência Contra a Mulher, Belém do Pará, 1994:

[...] Violência contra a mulher é qualquer ação ou conduta, baseada no gênero,

que cause morte, dano físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada. [...] a violência contra a mulher constitui uma violação aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, e limita total ou parcialmente à mulher o reconhecimento, gozo e exercício de tais direitos e liberdades. (SECRETARIA ESPECIAL DE DIRIETOS HUMANOS, 2006, p. 328, grifo nosso).

A violência conjugal – recorte desta pesquisa – é uma das manifestações da violência de gênero, na qual o parceiro subjuga e maltrata a companheira para afirmar sua masculinidade ameaçada. O processo de construção da masculinidade não será tema dessa dissertação, mas é importante ressaltar que os “homens” também passam por reiterados treinamentos sociais para fazer funcionar o estereótipo viril do que é ser homem na cultura. Toda essa reflexão está articulada com o modelo de homem branco heterossexual europeu.

No entanto, quando o tema é desigualdade de gênero e violência contra mulheres, são os indicadores que evidenciam o problema. As mulheres continuam sendo as maiores vítimas da violência doméstica e familiar. Por outro lado, e na mesma linha estereotipada dos gêneros, as mulheres continuam sofrendo as conseqüências das ocupações de trabalho mais subalternas, o que reflete na saúde e na sua condição econômica.

Dados da PNAD (2008) evidenciam que as mulheres, sobretudo negras, lideram as posições de trabalho doméstico remunerado, o que marca o “legado histórico patriarcalista e escravocrata, perpetuadores das desigualdades de gênero e de raça no país”. (p. 20). Seguindo a mesma lógica, são elas, as mulheres, as primeiras a serem preteridas em momentos de crise econômica. E ainda, podemos destacar que são poucas as mulheres que ocupam cargos de decisão e poder no cenário nacional.

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negligenciadas ou mal atendidas pelos serviços de saúde, jurídico ou socioassistenciais) e agressões físicas (tapas, chutes e espancamentos),. Sabe-se que muitas das agressões físicas são antecedidas por longos anos de violência psicológica, o que algumas autoras, como Hirigoyen (2006), chama de preparo do terreno para intensificação das agressões.

2.1 SEXO COMO CATERGORIA POLÍTICA DA SUPOSTA NEUTRALIDADE À CONSTRUÇÃO DA DIFERENÇA SEXUAL COMO PROJETO BIOPOLÍTICO

Para melhor compreender o problema da violência conjugal, não basta traçar os fatores individuais que remontam a história familiar ou atribuir uma causalidade para a violência, como o uso abusivo de álcool pelos homens, distúrbios de personalidade, fatores de relacionamento versus dificuldade econômico-financeira, entre outros. Não podemos descartar que esses fatores intensificam a violência contra mulheres, mas não são responsáveis pela expressão do fenômeno. A extensão do problema envolve uma trama sociocultural complexa que, pautada no modelo patriarcal e na lógica biológica e binária da análise dos comportamentos, instituiu as diferenças como desigualdades e construiu uma teoria machista que as naturaliza e que colocou as mulheres numa situação de constante vulnerabilidade.

Noções como a honra masculina ainda estão fortemente presentes nos discursos dos agressores que violentam suas parceiras. Uma possível explicação para a perpetuação desse argumento pelos homens-agressores pode advir dessa lógica binária que essencializa a existência das pessoas a partir da visualização e da construção discursiva acerca do sexo (fêmea/macho, mulher/homem, feminino/masculino). Para Wittig (2006, p. 26), “a categoria sexo é uma categoria política que funda a sociedade como heterossexual” e complementa que é através desse entendimento naturalizante que “metade da população – as mulheres – são heterossexualizadas”. O binarismo contribuiu para definir estereótipos rígidos dos papéis sociais e criou, além de uma inteligibilidade dos gêneros, um eixo diferencial e hierárquico entre os mesmos.

A lógica binária pautada primordialmente no argumento da diferença sexual foi objeto de estudo de diversas disciplinas, sobretudo da perspectiva teórica biomédica, o que repercutiu em diferentes áreas do conhecimento.

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(1998) o campo cultural, as suas discursividades, constituem o indivíduo “assujeitado”, ou seja, normatizado. É por meio desse discurso que se constitui não apenas a subjetividade, mas a forma de ser e agir no mundo.

Fazendo um breve resgate histórico sobre a diferença entre os sexos, observamos que a filosofia também inseriu o sexo como objeto de estudo e reflexão. A dicotomia entre atividade e passividade, por exemplo, pode ser revisitada nas explanações de Galeno e Aristóteles na Antiguidade Clássica. Galeno foi responsável pela versão final do paradigma do sexo único e Aristóteles estabeleceu seus alicerces fundamentais (BIRMAN, 2001).

Aristóteles concebeu a geração como diferentemente distribuída entre as figuras da mulher e do homem, compreendendo a mulher como a sede e o vetor da causa material da geração, ou seja, um corpo depositário da procriação, e atribuiu ao homem o poder de causa formal. A descoberta da participação do homem no processo de fecundação fortaleceu a idéia de superioridade masculina que, para Aristóteles, estaria concebida no ato sexual, uma vez que o homem seria o responsável pela transmissão da humanidade. O macho seria, pois, ontologicamente o princípio motor e gerador, ou seja, o único ser que poderia engendrar “outra”. A figura da fêmea, associada à mulher, esperaria passivamente para ser engendrada. A mulher ofereceria a matéria, o útero sobre a qual o macho trabalharia a sua “artesania divina” (BIRMAN, 2001). Essa dicotomia dos corpos e passividade associada à mulher é ainda esperada nos padrões de relacionamento, sobretudo heterossexuais.

Retomando o impacto das elucubrações filosóficas na produção de saber sobre os sexos, Galeno introduziu a teoria dos humores como modelo explicativo para descrever a fecundação, geração. Para ele, havia a presença e dominância do humor quente no ato da geração. Nesta concepção, a morfologia corporal tem especial importância, uma vez que a genitália será responsável pela circulação dos humores. A teoria galênica supunha existir uma equivalência bem precisa entre cada um dos elementos presentes nos aparelhos genitais da mulher e do homem, contribuindo, então, para a difundida correspondência entre as genitálias na fêmea e no macho. Essa pretensão do sexo único valoriza a função masculina no ato da geração. Neste modelo, o pólo masculino seria caracterizado pela luminosidade, veracidade, atividade e perfeição, já o pólo feminino pela obscuridade, não-verdade, passividade e imperfeição (BIRMAN, 2001). Essa associação remete ao androcentrismo, que coloca o homem no vértice da hierarquia.

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da mulher e do homem numa perspectiva natural biológica. Essa é a maior herança da filosofia positivista nos estudos sobre a diferença entre os sexos na psicologia, que procurou traçar as diferenças anatômicas e correlacioná-las ao intelecto.

Os estudos das ciências psicológicas compararam a partir da categoria genital - pênis ou vagina - o funcionamento mental das pessoas. Esse tipo de estudo foi utilizado pela psicologia do desenvolvimento, pela criminologia, entre outras áreas do conhecimento, para naturalizar as desigualdades e criar categorias de comportamento e de personalidade. O mesmo tipo de argumentação foi feito para afirmar a diferença de intelecto entre homens e mulheres. Por outro lado, os manuais de psiquiatria auxiliaram na descrição minuciosa de todos os comportamentos observáveis de “(des) adaptação” de gênero. Parte do resultado de todo esse projeto binário e essencializador está ainda vigente no DSM – IV, que dispensa uma seção para descrever os transtornos sexuais e de identidade de gênero. Mulheres em situação de violência, por exemplo, acham que são “portadoras” de alguma disfunção sexual por não sentirem prazer e nem orgasmo com os seus companheiros, e muitos médicos encontram respaldo médico-científico para enquadrá-las nessas descrições, o que contribui para motivar o sentimento de culpa.

Dando continuidade a construção histórica e política da diferença e desigualdade entre os sexos, a Revolução Francesa também teve importante contribuição no processo de fortalecimento do modelo androcêntrico. Embora tenha sido marcado como momento histórico de luta pela igualdade, também contribuiu para reforçar estereótipo de gênero, uma vez que a afirmação da igualdade em nome da razão confere valor ao masculino. A razão foi erigida como símbolo do conhecimento, da ciência, e o acesso ao “saber” estava associado as atribuições a serem desempenhadas pelos homens. A inferioridade da mulher foi então reafirmada para assegurar os valores morais – marcando a suposta natureza biológica – que a alocariam no mundo privado. O cuidado, a procriação e a responsabilidade de educar moralmente suas filhas pesaram totalmente sobre o corpo e vida da mulher. Razão e paixão são as marcas dessa diferença sexual legitimada também no discurso libertário e da igualdade da revolução francesa, que corroboraram para propagar a imagem da mulher como governadas pela paixão e desprovidas de racionalidade (BRIMAN, 2001).

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masculinos e femininos é naturalizá-los a partir de uma explicação biológica. Diante disso, os comportamentos e ações morais da mulher ou do homem são naturalizados como correspondentes imediatos da genitália que possuem. Destaca-se, aqui, a naturalização da maternidade. O ser da mulher só é possível em torno da figura da mãe, de objeto sexual (para fins da satisfação masculina) e da finalidade específica de reprodução da espécie, todos atributos esperados socialmente.

Esse discurso da diferença entre os sexos, fortemente argumentado pelos estudos da biologia (teoria evolucionista) e experimentado pela psicologia positivista, permitiu a leitura dos corpos a partir da visualização direta e observável da genitália, atribuindo significados como natureza/sentimento à mulher e aproximando o homem ao campo da civilização/razão. A essa associação chamamos de essencialização dos gêneros, que, apesar de ser problematizada pelas teóricas pós-estruturalistas, está, por outro lado, muito próxima do cotidiano das pessoas que vivem lado a lado com a violência conjugal.

Estudos subseqüentes, e também sustentados pelas pensadoras feministas, procuraram evidenciar que as diferenças anatômicas não são determinantes das diferenças culturais, o que Bento (2003) afirmou em: “não existe sexo sem gênero, in natura” e em “o corpo nasce maculado pela cultura”. Certamente, a genitália não edita nenhum significado. É, antes de tudo, um significante apropriado pela cultura, que institui as diferenças e teoriza sobre elas a partir de um discurso naturalizante. Foi essa discursividade hegemônica da natureza que atribuiu significados assimétricos e rigidez aos corpos.

A autora traz uma reflexão importante para essa discussão quando articula os significados atribuídos aos gêneros e sua relação com o corpo. Embora sua análise parta da experiência transexual, podemos destacar essa correlação da adequação social e sexual na experiência da violência contra mulheres. Muitos relatos evidenciam a vulnerabilidade sentida por mulheres quando percebem que o corpo delas é um território possível de dominação masculina e, para se esquivar desse destino, procuram no casamento a salvação desse mal, tema abordado na seção 4.1. O que faz de seu corpo um alvo de usurpação é a construção cultural e não sua natureza. Os homens não estupram porque isso é natural, mas porque o corpo da mulher simboliza, a partir dos significados culturais, um território a ser conquistado. As mulheres não são naturalmente estupráveis, violáveis, elas foram construídas nessa categoria de fragilidade, objeto e mensageiro de poder e conquista (SEGATO, 2003).

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cadeia discursiva cria um pacote de expectativas sobre como deverá ser o comportamento e a sexualidade daquele bebê.

A produção discursiva feita a partir de um corpo sexuado põe em relevo outra discussão, na qual nem o próprio sexo pode fugir das interpretações culturais. O conceito de matrizes hegemônicas, definido por Butler (2003), ressalta que os discursos difundidos socialmente seguem uma matriz primordial, e esta define o que será inteligível na cadeia de significados da sociedade. É essa “inteligibilidade dos gêneros” – conforme cunhou Butler (2003) - que, em certo sentido, institui e mantém relações de coerência e contigüidade entre sexo, gênero, prática sexual e desejo. A maior marca dessa matriz seria o desejo heterossexual compulsório. Para ela, “as pessoas se tornaram inteligíveis adquirindo gênero Qualquer inversão abre margem para a psicopatologização, discriminação e sensações de desacordo entre o corpo e a identidade de gênero: “as identidades de gênero e sexo que se conformam às normas de inteligibilidade cultural parecem apenas fracasso de desenvolvimento ou impossibilidades lógicas” (BUTLER, 2003, p.38).

A autora, assim, define o gênero como

uma identidade tenuamente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos. O efeito do gênero se produz pela estilização do corpo e deve ser entendido, conseqüentemente, como a forma corriqueira pela qual os gestos, movimentos e estilos corporais de vários tipos constituem a ilusão de um eu permanentemente marcado pelo gênero. Essa formulação tira a concepção do gênero do solo de um modelo substancial da identidade, deslocando-a para um outro que requer concebê-lo como uma temporalidade social constituída. (BUTLER, 2003, p.200).

A partir desse debate, fica evidente que não basta simplesmente definir gênero como uma interpretação cultural do sexo, mas localizar a cadeia pré-discursiva que assentou esse saber como verdade e que instituiu uma cadeia significante capaz de atribuir significado inclusive ao sexo. É essa cadeia que garante eficazmente a estabilidade da estrutura binária, de disputa, e de essencialização do gênero. A articulação desse debate nos leva às contribuições de Segato (2003) sobre a naturalização do ato violento que, genericamente, segue a mesma produção lingüística, assentado nos saberes também binários, entre a figura do legislador e do legislado, que naturalizam a violência. Este tema será aprofundado na seção 4.1.

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discursos, como aspectos e heranças históricas, sociais, políticas, raciais, coloniais, entre outras, como parte da responsabilização da repetição de padrões estereotipados de gêneros. E, ainda, procuramos esvaziar o foco exclusivo no privado e na idéia de uma personalidade passiva ou ativa – engessada numa figura fixa de homem e mulher. Smigay (2002) conclui que esse paradigma opera uma “gramática do gênero.”

Ao partir-se da perspectiva de gênero, que consiste numa categoria analítica para problematizar a construção das diferenças sexuais e dos papéis sociais (MAIA, 2006), compreendemos que a violência contra mulheres, historicamente representada em episódios como a Inquisição e os estupros coloniais, como exemplos, encontra respaldo epistemológico nas postulações biologizantes, estabelecendo uma leitura binária, naturalizada e hierarquizada das relações de gênero, com prejuízo para as mulheres.

As relações de hierarquia e poder ainda ocorrem em face das evidências anatomo-fisiológicas valorizadas socialmente, atribuindo aos homens atributos como racionalidade, objetividade, domínio do espaço público e da força bruta, naturalizando, por outro lado, o papel das mulheres como natureza, fragilidade, introspecção, nutrição e cuidado. Essa subordinação está profundamente arraigada na cultura patriarcal e na reprodução de padrões de comportamentos essencializados entre mulheres e homens, ou entre vulnerabilidades e poder, o que provoca sua banalização e naturalização em massa. Bater em mulheres (BANDEIRA;BATISTA, 2002), além de ter sido uma prática corriqueira até poucos anos, não era percebido como um ato de violência pela sociedade. Mulheres vitimizadas por violência conjugal permaneciam em silêncio, sem conseguirem nomear ou denunciar seus sofrimentos. A naturalização desse fenômeno é antiga e coloca muitas mulheres numa situação de servidão (HIRIGOYEN, 2006).

Tal processo de naturalização requer uma releitura dos modelos patriarcais mantidos e reproduzidos até hoje na cultura. A análise crítica do patriarcado demanda (re)pensar o impacto da cultura no processo de constituição das identidades de gêneros e seus desdobramentos, como as subjetividades individuais.

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simbolicamente violenta entre os gêneros. A violência não é somente psicológica; antes de tudo, é moral. (SEGATO, 2003).

Essa análise sobre o fenômeno da violência de gênero deu visibilidade à discussão sobre a opressão vivida pelas mulheres em diferentes situações de violência – o recorte local, aqui, é o Ocidente – e impulsionou os movimentos sociais feministas a pressionarem organismos internacionais de defesa dos direitos humanos para incluir as mulheres na agenda de defesa contra as discriminações tanto de raça quanto de gênero. Essa luta persistente das feministas tem promovido ações que legitimam a discussão da arbitrariedade dos padrões de relacionamentos androcêntricos e convocam diferentes estados e países a consolidarem instrumentos jurídicos e sociais de proteção às mulheres em situação de violência. No caso do Brasil, podemos destacar a criação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340 de 07/08/2006) e de Secretarias e Núcleos específicos para se pensar e propor ações para as mulheres. Na próxima seção, assistiremos ao cenário real dessa assimetria nos dados sobre a violência contra mulheres.

2.2 DADOS SOBRE A VIOLÊNCIA ENDÊMICA CONTRA MULHERES

O Brasil apresenta índices significativos de violência contra mulheres. Segundo dados da Fundação Perseu-Abramo, a cada 15 segundos uma mulher é agredida. A pesquisa detectou ainda que 33% das brasileiras já foram agredidas, sendo que 57% destas agressões foram praticadas pelos próprios parceiros. 19% das mulheres entrevistadas declararam espontaneamente ter sofrido algum tipo de violência por parte de algum homem; 16% relatam casos de violência física; 2% citam alguma violência psíquica e 1% fala de assédio sexual.3

A extensão do problema pode ser vista por diferentes pesquisas. O relatório mundial da OMS (2002) sobre saúde e violência reserva um capítulo para retratar a complexidade da questão da violência perpetrada por parceiros íntimos. Os dados evidenciam que de 10 a 69% das mulheres de todo o mundo relataram ter sofrido agressão física por parceiro íntimo. De acordo com Marinheiro, Vieira e Souza (2006), o risco de uma mulher ser agredida por seu companheiro, e dentro de casa, é quase nove vezes maior do que o risco de ser vítima de violência de rua. No Brasil, a cada quatro minutos uma mulher é agredida dentro de seu próprio lar por uma pessoa com quem mantém uma relação afetiva (NARVAZ; KOLLER, 2006).

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Uma a cada quatro mulheres no mundo é vítima de violência de gênero e perde um ano de vida potencialmente saudável a cada cinco em decorrência desse tipo de violência. No Brasil, 23% das mulheres estão sujeitas a violência doméstica – forma mais recorrente da violência de gênero na esfera privada – sendo que 70% desses crimes contra mulheres ocorrem dentro de casa e são praticadas pelo próprio companheiro ou marido. As violências resultam em lesões corporais graves, tais como chutes, socos, queimaduras, espancamentos e estrangulamentos e chegam a 40 % dos casos. Os dados apontam, ainda, que o companheiro é responsável por 56% dos espancamentos e 70% pela destruição dos bens da casa (REDESAÚDE, 2001, NARVAZ; KOLLER, 2006).

A Organização Mundial de Saúde (OMS) desenvolveu uma pesquisa com mulheres de idades entre 19 e 45 anos na cidade de São Paulo e na Zona da Mata em Pernambuco. 29% das entrevistadas afirmaram que sofreram agressões físicas e sexuais pelo parceiro. No município de Pernambuco, esse número chegou a 37%. O estudo aponta que os insultos, a humilhação e a intimidação são os abusos emocionais mais citados (SHRAIBER; D‟OLIVEIRA, 2005).

O Informe Mundial sobre Violência e Saúde (2002), da OMS, relatou que quase metade das mulheres assassinadas são vítimas de seus companheiros/parceiros. A violência corresponde a 7% de todas as mortes de mulheres na idade entre 15 a 44 anos em todo mundo.4

Segato (2003) ressalta o impacto desse tipo de violência na economia nacional ao resgatar um dado do Instituto de Direitos Humanos da ONU que revela que o Brasil deixa de receber 10% do PIB – Produto Interno Bruto em conseqüência da violência cometida contra mulheres (MORAES, NAVES, 2002 apud SEGATO, 2003). Os custos sociais também são evidentes, uma vez que recorrem mais aos serviços de saúde em decorrência das agressões físicas e psicológicas – em grande parte provocadas pelos companheiros – e também por perderem um em cada cinco dias de folga ao trabalho para se dedicarem aos cuidados do corpo (violência física) e da angústia (violência moral e psicológica) desencadeadas pelas agressões.

A pesquisa Ibope realizada pelo Instituto Patrícia Galvão em maio de 2006 apontou que 55% das entrevistadas afirmam que o tema que mais preocupa a mulher na atualidade é a violência contra mulheres ocorrida dentro de casa. Esse dado é grave, e chega a superar a preocupação com a Aids e com o crescimento do chamado fenômeno de feminização da Aids

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entre mulheres. 51% revelaram que conhecem pelo menos uma mulher que já foi agredida pelo companheiro.5

A pesquisa realizada pela DataSenado – Secretaria de Pesquisa e Opinião Pública – 2007, revelou que a cada 100 mulheres brasileiras, 15 vivem ou já viveram algum tipo de violência doméstica. A violência no âmbito doméstico tem múltiplas formas de apresentação, podendo ser agressões de pais, tios, filhos e/ou cônjuges. Contudo, é a violência conjugal que apresenta os maiores índices. Segundo a pesquisa, 87% dos casos de violência doméstica foram provocados pelos maridos ou pelos companheiros; em 59% desses casos, as mulheres sofreram violência física. Esses dados revelam a necessidade de aprofundar-se o estudo sobre a violência conjugal.

Frente a estatísticas tão alarmantes, o Brasil assumiu o compromisso de combater qualquer discriminação contra mulheres, comprometendo-se a tentar mudar a cultura patriarcal que aterroriza muitas mulheres. O país é signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, adotada pela resolução 24/180 da Assembléia Geral da ONU, em 18 de dezembro de 1979. No entanto, foi apenas cinco anos mais tarde, no dia 1º de fevereiro de 1984, que o Brasil assinou a Convenção, decretando sua promulgação em 13 de setembro de 2002, com o decreto n° 4.377 (SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS, 2006).

Em 30 de junho de 2002, o Brasil assinou o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e promulgou o Protocolo no Decreto n° 4.316 no dia 30 de julho de 2003.

Entre essas datas ocorreu, em Belém do Pará, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher organizada pela Assembléia Geral da OEA, em junho de 1994. O documento gerado por essa convenção foi assinado pelo Brasil na mesma data e promulgado pelo Decreto nº 1.973 no dia 1º de agosto de 1996.

As Conferências Mundiais das Mulheres - notadamente a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Beijing, em 1995 -, contribuíram para promover e difundir uma concepção nova sobre as desigualdades de gênero no Brasil e no Mundo.

Contudo, as medidas protetivas, tais como essas convenções internacionais, as leis específicas de proteção à mulher (Lei Maria da Penha) e a política nacional de enfrentamento à violência contra mulheres, embora se tenham mostrado úteis para divulgar a situação de abusos e violações, para encorajar as mulheres em situação de violência a denunciarem e,

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também, para punir alguns dos agressores, não foram suficientes para deter as mortes e as agressões realizadas pelos maridos ou companheiros de mulheres em situação de violência conjugal.

Dados da Central de Atendimento à Mulher do Brasil (Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SPM – Ligue 180) evidenciam o aumento da procura por informações após a divulgação do problema e interesse do Estado em coibi-la. Os relatos de violência – denúncia, reclamações e procura por serviços, somou mais de 204.978 atendimentos no ano de 2007 e só no período de janeiro a agosto de 2008 o número alcançou 166.970 atendimentos. Em alguns estados, por exemplo, o número de registros de atendimentos no Ligue 180 aumentou 327%, como em Pernambuco, e 300% no Maranhão (SPM, setembro de 2008). Estudos em diferentes áreas têm se debruçado sobre esse fenômeno. Na área da psicologia, por exemplo, tem-se produzido estudos sobre o tema da violência conjugal, que vão desde a perspectiva transgeracional até a psicanalítica. Essas análises, em geral, se dedicam à compreensão das dinâmicas entre o casal ou da relação conflituosa entre as genitoras e o processo de identificação do bebê. Mas dificilmente encontramos autoras que problematizam as questões de gênero imbricadas nas relações afetivas e que tenham uma visão crítica sobre o surgimento das instituições familiares enquanto mantenedoras da ordem diferencial de status e do padrão hegemônico dominante. As interpretações, com freqüência, fundam-se na justificativa de que a repetição da violência está ancorada no modelo familiar, em outras palavras, numa mera reedição da história de violência na família.

Esse modelo, ainda que evidencie a repetição da violência, não se esquiva de uma explicação moralizante sobre a permanência da mulher no vínculo, uma vez que traz na própria definição conceitos como transgeracionalidade e família, sem qualquer problematização, o que se torna ainda mais questionável quando se discute violência de gênero.

Narvaz e Koller (2006) assinalam que a violência conjugal é um tema controverso na literatura científica e atribuem contribuições feministas positivas para o estudo do fenômeno. Segundo as autoras, algumas teorias explicativas destacam a contribuição das mulheres no ciclo da violência, outras, ainda chegam a acusar sua passividade como mantenedora da situação, codificando suas reações no reducionismo psíquico. Esse discurso da codificação da subjetividade está calcado em ideais normativos instituídos em termos culturais, tal como descrito por Foucault (1993) em “História da Sexualidade”.

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conseqüência da agressão na produção de sofrimento, ou seja, de um fator externo que a intimida e não como um mecanismo interno que a faz submeter. Muitas Margaridas relataram que resistiram à primeira agressão, mas essa resistência foi imediatamente acompanhada por desmaios, dores fortes e sentimento de culpa, sensações que terminavam por recolocá-las no lugar essencializado de mulher. Isto é, no momento em que percebem sua resposta como agressiva, vêem neste ato uma atitude viril, o que não corresponde aos significados assumidos por um corpo que é marcado pela desigualdade de gênero. Esse mecanismo será debatido na seção 4.2.

Retomando Narvaz e Koller (2006), estas chamam atenção para a necessidade de considerar os diversos aspectos envolvidos na investigação da violência conjugal, uma vez que existe uma complexa articulação entre os aspectos de gênero e os aspectos psicológicos; por gênero entende-se também a articulação entre os significados socioculturais e a produção de subjetividades instituídas e mantidas por oposições dicotômicas, principalmente de raça, classe e sexualidade. A multidisciplinaridade tem importante papel ao fazer dialogar teorias culturais, filosóficas, lingüísticas e sociopolíticas para aprofundar o tema.

A psicologia pode contribuir para avançar o conhecimento nessa área a partir de uma análise crítica e contra-hegemônica, propondo, inclusive, uma prática clínica politizada, no sentido de tornar pública a esfera íntima e romper com os psicologismos, tema que será desenvolvido na seção 4.3.

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Diante do exposto, esse projeto resulta dos seguintes questionamentos: As matrizes de gênero disseminadas6 na cultura têm participação ativa na forma de estabelecimento dos relacionamentos conjugais? Quais são os padrões estereotipados de gênero que estão profundamente arraigados em algumas dessas subjetividades humanas? Como os tradicionais papéis de gênero se articulam com a violência conjugal? Quais as justificativas que as mulheres apresentam para permanecerem nessa vinculação violenta? Quais os aspectos socioculturais que as mantêm nesse tipo de vínculo? E, por fim, como podemos analisar o tipo de vinculação dessas mulheres em situação de violência conjugal em uma perspectiva sociocultural e subjetiva?

Por fim, conclui-se que é preciso estar atenta à multiplicidade de fatores envolvidos no problema da violência conjugal contra mulheres e recorrer a outros tipos de leituras, estabelecendo pontes que ampliem a capacidade analítica. As principais leituras que influenciaram minha atenção no alargamento deste tema foram: Rita Laura Segato (2003), Lourdes Bandeira (2002), Ondina Pena Pereira (2004), Heleieth Saffioti (2003), Vicente Faleiros (1998), Berenice Bento (2003), entre outras, e mais pensadoras feministas, como Alisson Jaggar (1997) e Cecília Sardenberg (2002). Também contribuíram para as minhas indagações os dois primeiros volumes da História da Sexualidade de Foucault (1993).

2.3 FEMINISMO E GÊNERO NA PSICOLOGIA: UMA BREVE APRESENTAÇÃO

O processo de incorporação dos estudos feministas e de gênero na psicologia é recente – data de meados da década de 70 – e seu impacto na produção científica tem sido lento e gradual. Os primeiros trabalhos científicos publicados apareceram na década de 80. A importância do feminismo nas disciplinas, principalmente na antropologia feminista, foi de demonstrar e denunciar os efeitos políticos, sociais e culturais que estão imbricados na reprodução do saber e do poder.

De maneira geral, os estudos de gênero na psicologia estão inseridos no contexto da psicologia social, que se propõe a dialogar com outros campos de saber e a pensar o sujeito a partir do seu contexto sociocultural. Apesar da emergência do gênero nesta psicologia, ela

6 A dicionária elaborada pelo coletivo corpuscrisis define que o termo “etimologicamente, vem do latim:

dissemìno,ás,ávi,átum,áre 'id.'; ver semin(i)-; f.hist. 1567 desemear, 1651 disseminar. Significa espalhar as sementes, noção que compartilha sentidos com uma de espalhar sêmen. Ela é bastante ilustrativa de como determinadas expressões, formas lingüísticas são fundamentadas em experiências facilmente associadas ao dito masculino. Talvez o uso de "polinizar" esteja mais isento de significados andro/falocêntricos que ‟disseminar‟, portador de uma carga falogocêntrica explícita.”. Retirado de <

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continua apartada dos estudos clínicos, que ainda seguem um modelo universal de sujeito, descrevendo-os e definindo quadros clínicos de maneira isolada.

As primeiras mulheres feministas na psicologia eram, em geral, mulheres brancas, ricas, norte-americanas (estadunidenses) de origem britânica, solteiras e sem filhos, embora tenham existido algumas casadas e que só foram promovidas, de acordo com Rhoda Unger (2007), por intermédio de seus maridos que já eram psicólogos proeminentes.

Esse feminismo branco e ocidental, apesar de se ter pretendido global em algum momento da história, atribuindo uma identidade hegemônica à mulher, como criticou Butler (2003), foi importante para romper com o silêncio histórico que aprisionava as mulheres em papéis rígidos e confinados ao mundo privado. No entanto, posteriormente a esse movimento, podemos destacar outros feminismos que, não se pretendendo universais, contribuíram para revelar a história de opressão de diferentes mulheres.

A feminista norte-americana Rodha Unger abordou o tema da história da psicologia feminista em diferentes conferências, e neste trabalho será considerada a transcrição feita por Alejandra Araiza Díaz, psicóloga e especialista em estudo de gênero e teoria feminista. O seminário ocorreu em 2007 na Universidade Autônoma de Barcelona.

Díaz (2007, p.145) relata que Unger detalhou o androcentrismo acadêmico e os espaços falogocêntricos das universidades, assim como apresentou outras mulheres feministas que ingressaram no universo acadêmico, como Sandra Harding e Naomi Weisstein. Unger, por exemplo, relatou que entrava pelas escadas do sótão do edifício da universidade para chegar à biblioteca. Esse tipo de cerceamento evidencia que as mulheres não eram bem vindas ao universo acadêmico predominantemente povoado por homens.

A primeira onda do feminismo na psicologia se caracterizou por investigações tímidas e segregadas, na qual mulheres investigadoras eram quase ausentes do cenário acadêmico (SAAVEDRA; NOGUEIRA, 2006) e só após a década de sessenta, caracterizada pela segunda vaga feminista na psicologia, as mulheres começaram a ingressar em diferentes disciplinas acadêmicas. Neste período, as investigações produzidas eram nomeadas de „psicologia da mulher‟, designação apontada pela Divisão 35 da American Psychological Association e pela British Psycological Society (UNGER, 1998; WILKINSON, 1997 apud SAAVEDRA; NOGUEIRA , 2006).

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A epistemologia dominante nesta recém-nascida ciência orienta-se para a procura de um conhecimento objetivo, isento de valores sociais, políticos e morais, assentando numa filosofia individualista que encara as pessoas como racionais, livres e auto-determinadas (GERGEN, 2001 apud SAAVEDRA; NOGUEIRA, 2006, p. 114).

Os estudos em Psicologia, neste primeiro momento, fins do século XIX e princípios do século XX, revelam que a maior parte das investigações debruçava-se sobre a comparação de características motoras, fisiológicas, anatômico-cerebrais, entre outras, de mulheres e homens.

A relação da psicologia com a biologia serviu para assentar saberes sobre a inferioridade intelectual da mulher, uma vez que se acreditou na relação direta entre fisiologia e tamanho do cérebro, por exemplo. Estes estudos assinalavam, ainda, a superioridade do homem com relação à força física, ao reflexo, à precisão de movimentos, entre outros. Há, ademais, relação intrínseca entre essas descobertas fundamentadas na diferença anatômica entre os sexos, e a divisão do trabalho na sociedade.

No entanto, as teorias de bases biológicas que descreviam as diferenças entre os sexos não estavam suficientemente fundamentadas, uma vez que as pesquisadoras inseriam-se na mesma teia sociocultural e as investigações seguiam pressupostos morais dominantes. Essas escolhas teóricas demonstram nitidamente que as investigações também se fundamentavam em eleições políticas, que acreditavam no discurso “naturalizador”, binário e “essencializado dos gêneros”.

O essencialismo de gênero, advindo dessa posição teórico-política e reeditado nas produções científicas sobre a diferença dos sexos, passou a ser questionado pelas feministas, que passaram a estudar “as diferenças” a partir da influência do meio social e cultural. Este estudo logrou descobrir que os treinamentos sociais diferenciados eram responsáveis pela reprodução de papéis estereotipados de gênero. Wooley (1993 apud SAAVEDRA; NOGUEIRA, 2006, p.115), por exemplo, apontou que os homens “eram treinados para a individualidade, para serem independentes na ação e no pensamento”, encorajados a manipular ferramentas e máquinas e experimentar diferentes atividades. Já as mulheres, ao contrário, eram “ensinadas à obediência, dependência e deferência”.

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A Divisão 35, consolidada no seio da APA – American Psychological Association, contribuiu para dar legitimidade a esses estudos e luta. Foi essa geração que se interessou pelo tema de gênero como uma construção social das diferenças sexuais, rompendo definitivamente com o naturalismo biológico (DÍAZ, 2007).

A segunda onda do feminismo na psicologia, recente na história se considerarmos que grande parte dos estudos passou a ser divulgada após a década de 70, impulsionou os estudos das discriminações vinculadas às questões de poder e denunciou as “generalizações abusivas de um saber que identifica a masculinidade como universal e exclui e subordina mulheres, seja como objeto seja como sujeito” (COLLIN, 1991 apud SAAVEDRA; NOGUEIRA, 2006, p.117).

Alcançando novos espaços, começa-se a denunciar outros mecanismos opressivos, como a invisibilidade da mulher no campo científico – tanto na forma de sujeito quanto pesquisadora. Mulheres eram interpretadas a partir do olhar de homens e desapareceram, inclusive, do papel de investigadoras por muitos anos. A visibilidade e o prestígio das ditas descobertas científicas ficaram praticamente referentes à imagem de um homem cientista. Este cenário também contribuiu para as pressões morais sobre o corpo das mulheres.

As atitudes de (des) centramento e a reflexão crítica proposta pela epistemologia feminista e a pesquisa qualitativa feminista ficaram, por muito tempo, às margens do modelo imperialista do saber. As reações aos estudos feministas por diferentes disciplinas ainda é intensa, mas a insistência no feminismo multicultural é imprescindível para explicitar a diversidade das experiências das mulheres e abrir novas áreas de estudo e investigação (SAVEEDRA; NOGUEIRA, 2006).

O campo de investigação feminista é ainda emergente e diversificado. Olesen (2006) afirma que a pesquisa qualitativa feminista tem se inserido cada vez mais nos trabalhos acadêmicos, assegurando sua importância social e política. Ela rebate a crítica de que a pesquisa qualitativa feminista não tem alcance em larga escala, afirmando que “o trabalho feminista tem ultrapassado em muito as visões limitadas, empregando uma ampla variedade de métodos.” (OLESEN, 2006, p. 220).

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É importante ressaltar que uma visão aprofundada a respeito desse fenômeno implica em discussões sobre racismo, capitalismo e trato discriminatório a diferentes etnias. Nesta pesquisa, contudo, o recorte será feito na experiência cotidiana de mulheres que vivenciam ou vivenciaram a violência conjugal. O desafio será romper com o determinismo psíquico, fundamentado numa suposta escolha conjugal para subserviência, e articular a construção dessa subjetividade a partir dos enunciados da cultura sexista, patriarcal, que legitima a assimetria e mantém a tolerância à violência de gênero.

A visão aqui trabalhada será de um feminismo dinâmico, que denuncia a opressão, mas que também se pondera criticamente, propondo uma metodologia qualitativa e uma psicologia feminista que estão atentas às interseções culturais, sociais, raciais e classistas, envolvidas nas questões e no conceito de gênero, abrindo espaço para a contestação de significados hegemônicos e desestabilizando a presunção de um ideal normativo capaz de representá-las.

2.4 O PATRIARCADO SIMBÓLICO COMO DETERMINANTE DA VIOLÊNCIA CONJUGAL

Tendo em vista o panorama geral dos dados estatísticos da violência contra mulheres e as evidências do movimento feminista para os estudos de gênero, pode-se inferir que há uma relação intrínseca entre o tema da violência conjugal e as implicações da estrutura do patriarcado nas relações de gênero. Saffioti (2003) afirma que as estruturas patriarcais de poder estão presentes em todas as instituições sociais. Para a autora, nada ocorre fora destas estruturas patriarcais. Este modelo colocou o homem (e o que se refere ao masculino) no vértice da hierarquia e lhe conferiu valores superestimados socialmente, como domínio do espaço público, legitimidade da força bruta e referência como ser racional7 e objetivo, conforme modelo da ciência positivista.

Segundo Johnson (1997), a assimetria entre os gêneros nasceu quando da descoberta da participação masculina no ato da fecundação, isto entre os anos 5000 aC e 4500 aC. Até então, as mulheres eram consideradas seres mágicos por serem capazes de se auto-fecundarem. A imprescindibilidade do homem na procriação abriu caminho para a construção

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