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2.1 Compreendendo a lógica discursiva

2.1.3 Explanando a teoria do discurso

Nos tópicos anteriores descrevemos a concepção de sujeito e identidade na teoria do discurso adotada que, no entanto, não nos dá um instrumental metodológico para a análise de material empírico, ou seja, existe um desafio metodológico, na medida em que

existe uma separação entre os conceitos ontológicos abstratos e a necessidade de conceitos que lidem com o nível ôntico. Em outras palavras como se constituem nos discursos dos desenvolvedores do PUG-PE os antagonismos, hegemonia e significantes vazios? Que aspectos do processo inovador de desenvolvimento de software em comunidades são adequados para uma abordagem da teoria do discurso? Ao considerar tal lacuna, fizemos a opção por realizar uma “construção metodológica” tomando por base as sugestões proferidas por Jørgensen& Phillips (2002).

Para Jørgensen& Phillips (2002), Ernesto Laclau e Chantal Mouffe estão mais interessados em fenômenos abstratos, quando identificam determinados discursos específicos, em vez de investigar como discursos constituem recursos que as pessoas usam para transformar suas práticas da vida cotidiana (ver Figura 2). Não significa, entretanto, que os conceitos teóricos de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe não possam ser usados em análises empíricas detalhadas.

Figura 2 - Focús Analítico.

Fonte: Adaptado de Jørgensen& Phillips (2002).

Para a investigaçãoda dinâmica dos discursos em diversos materiais empíricos levantamos questões basilares como: de que modo cada discurso representa o conhecimento, a realidade, as identidades e as relações sociais? Onde os discursos funcionam discretamente lado a lado, e onde existem antagonismos abertos? Quais

Discurso do dia-dia Discurso abstrato

Psicologia discursiva

Análise do discurso crítico

Teoria do Discurso de Laclau e Mouffe

intervenções hegemônicas estão se esforçando para substituir os conflitos? De que forma e com que conseqüências?

Para alcançar o propósito do presente estudo utilizaremos conceitos de antagonismo, hegemonia e significantes vazios, uma vez que partimos da hipótese de que os discursos articulados pelos usuários e desenvolvedores visam tanto à criação de um sistema de vínculos, solidariedade e compartilhamento intersubjetivo dentro da comunidade, como criar limites simbólicos à determinados discursos externos que colocam os usuários e desenvolvedores numa situação permanente de negociação.

Nesse sentido, os discursos dos usuários/desenvolvedores podem ser vistos como uma estratégia para assegurar as condições de possibilidade para a produção e reprodução de software livre nas condições tecnológicas atuais permite. Nesse sentido, os discursos dos usuários/desenvolvedores de software livre nunca são completamente estáveis e irrefragáveis, podendo, assim, ser transformados em orientações metodológicas relativas à localização das linhas de tensão no próprio material empírico.

Pode-se, então, questionar quais entendimentos diferentes da realidade estão em jogo e onde eles estão em oposição antagônica entre si? E quais são as conseqüências sociais se um ou outro sair vitorioso e hegemonicamente imobilizar os sentidos do significante vazio?

No entanto, a concepção de que os discursos e articulações são contingentes, isto é, todos os aspectos do social são fixações precárias (BUTLER, et al., 2004) tem provocado críticas a Laclau e Mouffe por superestimarem a possibilidade de mudança (por exemplo, JØRGENSEN; PHILLIPS (2002). CHOULIARAKI 2002; CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999).

As críticas ocorrem no sentido de que esses autores ignoram o fato de nem todos terem possibilidades iguais para rearticular elementos em novas formas discursivas e,

assim, gerar mudanças sociais (JØRGENSEN; PHILLIPS, 2002). Os discursos das pessoas freqüentemente estão sujeitos a restrições que não emanam do nível discursivo, mas a partir de relações estruturais de dependência como etnia, classe e gênero.

Para Chouliaraki e Fairclough (1999), os autores da Teoria do Discurso esquecem os constrangimentos estruturais porque eles se concentram mais na contingência. Sob essa lógica, tudo está em fluxo e todas as possibilidades estão abertas. Lilie Chouliaraki e Norman Fairclough consideram importante identificar os domínios estruturais nos quais as estruturas são socialmente criadas e fixadas, pelo menos para os grupos dominados.

No entanto, quando Laclau e Mouffe (2001) afirmam que tudo pode ser diferente, não significa que tudo está em fluxo, ou que a mudança é necessariamente fácil. Eles distinguem entre o objetivo e o político para salientar que, apesar de tudo ser contingente, há sempre um campo objetivo de discurso sedimentado - uma longa série de arranjos sociais que tomamos por certos e garantidos e, portanto, não questionamos ou tentamos mudar.

Os conceitos de “discurso" e “campo de discursividade” de Laclau e Mouffe (2001, p 105, 112) podem ajudar a entender melhor essa relação entre estabilidade e permanência. Enquanto “discurso "é o termo para a fixação parcial de sentido”, o campo de discursividade" é termo que se refere ao excedente de sentido, ou seja, todos os significados possíveis que são excluídos de algum discurso específico (SALES Jr., 2008; SEIDMAN; ALEXNDER, 2003).

Não obstante os dois conceitos, Jørgensen e Phillips, (2002, p. 56) acrescentam a "ordem do discurso" que passaria a denotar um espaço social em que diferentes discursos cobrem parcialmente o mesmo terreno no qual competem entre si para preencher e fixar sentidos, ou seja, construir uma hegemonia, de acordo com as suas próprias especificidades.

O estudo de Fremman (2012) que mostra os discursos contraditórios entre os desenvolvedores e usuários do modelo aberto de desenvolvimento de software é elucidativo, nesse sentido. As análises apontam que, apesar de fazerem parte de uma mesma ordem discursiva, diferenças existem entre a ética hacker ou governança no estilo bazar, e as comunidades profissionalizadas e estrategicamente reguladas, fazendo com que ambas estejam envoltas na mesma competição discursiva para fixar seus sentidos hegemônicos do que seriam modelos de produção aberta de software.

Berry (2004; 2006), ao analisar projetos de “cultura livre” que protestam contra a lógica de cultura proprietária e da privatização dos bens simbólicos, percebeu outros conflitos discursivos dentro do próprio domínio da “cultura livre” entre os movimentos do Creative Commons7, Free Software Foundation8e Open Source Movement9, apesar de, no senso comum, serem usadas uma pela outra, com pouco rigor conceitual.

Nas conclusões do estudo, longe de constituírem um enfraquecimento da formação discursiva, tais fricções e antagonismos constituem o combustível que manterá a cultura livre viva e se expandindo e, portanto, tal multiplicidade de redes singulares representa algo produtivo e construtivo para o crescimento e consolidação da “cultura livre” como movimento hegemônico.

Os conceitos de "antagonismo" e "hegemonia" irão, nessa construção, pertencer ao nível da "ordem do discurso" - "antagonismo" é o conflito aberto entre os diferentes discursos em uma determinada ordem de discurso, e "hegemonia" é a dissolução do conflito por meio do deslocamento das fronteiras entre os discursos.

O “campo de discursividade” é, assim, concebido como o reservatório geral dos significados não incluídos em um discurso específico (BOUCHER, 2008). O conceito é

7

Apresenta um discurso mais legalista. Tem como principal protagonista Lourence Lessig.

8

Apresenta um discurso pautado na ética e na liberdade do conhecimento. Tem como principal protagonista Richard Stalman.

9

Apresenta o discurso do liberalismo econômico e da eficiência técnica. Tem como principal protagonista Raymond Williams.

necessário na medida em que enfatiza a contingência e a abertura fundamental de todos os fenômenos sociais, o que permite chegar ao conceito de significantes vazios.

Sob essa lógica, para a análise dos materiais empíricos buscou-se desenvolver uma aproximação e articulação da análise do discurso com a Teoria do Discurso, segundo a qual, nos termos de Burity (2007), a primeira se apresenta como método de tratamento da linguagem, aqui em forma de texto, e a segunda como referencial teórico-metodológica ou gramática analítica geral.