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1 Explicações preliminares

T

enho como objetivo neste texto analisar os usos de ser/estar em estru-

turas atributivas, expressão de “propriedades temporalmente limita- das de individual” (Mateus et alii 1983: 138), ou seja, atributos se- manticamente transitórios e os usos de haver / ter, como verbo de posse, em estruturas de tempo composto e como verbo existencial, em uma amostra das Cartas de D. João III (Ford 1931), em comparação com o que já pesquisei e escrevi sobre esses verbos na Obra Pedagógica de João de Barros (Buescu 1971) e em amostra da Primeira e Segunda Décadas da Ásia do mesmo autor (Baião 1988) nos textos A definição da oposição ‘ser’ / ‘estar’ em

estruturas atributivas nos meados do século XVI e Vitórias de ‘ter’ sobre ‘haver’ nos meados do século XVI: usos e teoria em João de Barros (neste

livro).

A intenção deste trabalho é, portanto, verificar se o encontrado em João de Barros nas obras referidas se confirma, ou não, em documentação de outra natureza textual – não-literária, oficial – coetânea aos escritos do eru- dito escritor dos meados do século XVI.

Em 1931, J. D. M. Ford editou pela Universidade de Harvard 372 docu- mentos de D. João III, rei de Portugal de 1521 a 1557. João de Barros, por sua vez, desde muito jovem, sendo bastardo e órfão, foi acolhido nos Paços da Ribeira e, na corte de D. João III, exerceu várias funções oficiais: iniciando, muito cedo, como moço do Guarda-roupa do futuro rei D. João III, já em 1525 era Tesoureiro da Casa da Índia, Mina e Ceuta e, em 1553, Feitor da Casa da Índia, cargo que exerceu durante 35 anos. Em 1535 o rei lhe concedeu a Capi- tania do Maranhão, que não chegou a dirigir pelo conhecido episódio do nau- frágio da expedição colonizadora que enviou ao Brasil e que o deixou em dívidas pelo resto da vida. Morre em 1570 ou 1571 (Buescu 1984).

Por essas informações biográficas, vê-se que João de Barros viveu no tempo de D. João III e conviveu desde cedo no interior da sua corte como alto funcionário do reino. Assim se justifica a comparação da escrita literária

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de João de Barros com a não-literária das cartas oficiais do rei. Na maioria são elas dirigidas a Dom Antônio de Ataíde, Vedor da Fazenda, com exce- ção de seis – uma para Afonso de Albuquerque; uma para o Papa Clemente VIII; três para Tomé de Souza e uma para Lopo de Souza. Há ainda cinco ordens especiais e dois alvarás, também editados (Ford 1931: XI – XII). A edição utilizada recobre um total de 372 documentos, datados de 1523 a 1557. A grande maioria é da década de trinta do século XVI (documentos de nº. 6 até o de nº. 322).

Desse conjunto de 372 documentos, recortei quarenta e sete cartas, que perfazem 1003 linhas impressas (documentos: nº. 323 a 369), escritas entre 1541 e 1551, sessenta e seis cartas, no lapso de tempo que se ajusta, por sua coetaneidade, à Obra Pedagógica de João de Barros (impressa em 1540, exceto a Cartinha/Cartilha, que é de 1539) e à Primeira e à Segunda

Décadas da Ásia, impressas em 1552 e 1553, respectivamente. Desse modo

tem-se para comparação textos de natureza diferente, escritos no mesmo tempo histórico e no âmbito da corte de D. João III. Quero deixar logo claro que esta é uma com- paração aproximativa, já que analisei 4.266 linhas impressas da

Obra Pedagógica de

João de Barros; 2.133 linhas, em cada Déca-

da e 1003, nas Cartas de Dom João III.

As Cartas do rei, vale deixar claro, são todas assinadas por ele, mas quem as escreveu é um conjun- to de, provavelmente, funcionários a seu ser- viço. Com exceção de duas (Documentos 371 e 372), autó- grafas de D. João III, que perfazem apenas trinta e três linhas im- pressas, sem data, de que tratarei no item 4, como curiosidade histórico-lingüística. Quase todos os docu- mentos acabam, de

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)

maneira formular, indicando quem o “fez”, o local e a data, como, por

exemplo, na Carta 323: “Fernam d’Alvarez a fez, em Almeyr1!, aos XXX

dias de Janeiro de 1541” (Ford 1931: 358).

Considerando as quarenta e sete cartas analisadas, foram, no total, oito escrivães que as redigiram, além dessas, oito cartas estão sem escrivão explícito (v. Q 1) e o rei assina no final. Indicarei o nome desses escrivães, porque, com essa diversidade de mãos, não havendo ainda uma norma estabelecida e estabilizada para a escrita, o conjunto, por natureza, indica- rá, inevitavelmente, idiossincrasias, sobretudo de natureza gráfica.

Escrivães nº. das Cartas André Soarez 11 Adrian Lucio 09 Fernan d’Alvarez 07 Antônio Ferraz 05 Pedro Amriquez 02 Antonio de Mello 02 Francisco Velho 02 Manuel da Costa 01

Sem escrivão explícito 08

Quadro 1: Escrivães de D. João III

Na análise a seguir (itens 2 e 3), busquei verificar:

a.se a oposição entre ser/estar, como verbo de “atributo permanente” e verbo de “atributo transitório”, respectivamente, está já estabelecida (cf. 2), como verifiquei estar em João de Barros, conforme demonstrado no estudo referido no início deste item;

b.se ter já é o verbo selecionado para as estruturas semanticamente de posse, em detrimento de haver (cf. 3.1); se, nas estruturas de tempo composto, ter é o auxiliar selecionado, como ocorre sistematicamente em João de Barros, e se há ainda variação na concordância do particípio passado de verbos [+ transitivo], como ocorre em João de Barros e também se ser é ainda selecionado para o tempo composto de verbos [- transitivos], como também ainda ocorre em João de Barros (cf. 3.2). Por fim, se já ocorre o ter existencial, que aponta em João de Barros (cf. 3.3). Esses usos de João de Barros estão analisados no estudo mencionado no início deste texto.

No item 4, concentrar-me-ei nas duas cartas autógrafas do rei, para verificar o que nos diz a escrita de D. João III, sem as intermediações dos seus escrivães, sobre os tópicos aqui focalizados.

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