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1 Por que razão meados do século XVI?

E

m janeiro de 1536 saía dos prelos de Germão Galharde a Grammatica

da lingoagem portuguesa, assim está na portada da edição princeps,

ou “primeyra anotação da lingua portuguesa”, como se encontra na primeira linha do texto, também no colofão da mesma edição. Em 1540, dos prelos de Luiz Rodriguez, vinha a público o que se veio a chamar de Obra

pedagógica de João de Barros – Grammatica da língua portuguesa, finali-

zada pela Ortografia; seguida dos dois diálogos – Dialogo em louvor da

nossa lingoagem e Dialogo da viçiosa vergonha, precedido esse conjunto

da Cartinha, datada de 1539.

Iniciava-se, com a “primeyra anotação da lingua portuguesa” e a chama- da obra pedagógica de João de Barros, o percurso infindo da língua portu- guesa como “(meta)linguagem sobre si mesmo”, na expressão adequada de Ivo Castro em “Para uma história do português clássico” (1996: 137).

Em 1552 e 1553, dos prelos de Germão Galharde, saíram, respectiva- mente, a Primeira e a Segunda Décadas da Ásia de João de Barros (cf. Cintra, 1974: V-VI).

O centro deste estudo é o uso variável dos verbos haver e ter em estru- turas, semanticamente de posse, examinadas todas as ocorrências na obra pedagógica de João de Barros (4.266 linhas de texto), exceto a Cartinha; o uso variável de haver e ter nos «tempos per maneira de rodeo», referentes ao passado, depois chamados de tempos compostos, examinadas a obra peda- gógica e uma amostra da Primeira Década da Ásia (2.133 linhas de texto) e, ainda, o uso variável de haver e ter, como verbo existencial, examinadas as obras anteriores e uma amostra correspondente à da Primeira Década na

Segunda Década.

Contudo, a pesquisa sobre os dados do primeiro gramático “preceitista” ou prescritivista da língua portuguesa forneceu-me dados que considero sig- nificativos, como novos indicadores lingüísticos para definir os limites

O Português Quinhentista - Estudos Lingüísticos

finais do período arcaico: em João de Barros o traço semântico de transito- riedade ou de “predicador de propriedades temporalmente limitadas de individuais“ (Mateus et alii 1983: 138) do verbo ser já era um resíduo arcaizante, como busquei mostrar em outros trabalhos (1999 e 2000), ou seja, a oposição semântica entre ser e estar estava definida na obra peda- gógica de João de Barros. Também o uso de haver como predicador de posse já era um resíduo arcaizante na referida obra (1999 e 2000). A exclu- são de ser, na expressão da transitoriedade, e o de haver, na de posse, podem ser indicadores lingüísticos que marcam 1540 como um forte can- didato para, juntamente com outros indicadores intralingüísticos e extralingüísticos, delimitar os finais do período arcaico da língua portu- guesa.

Como se sabe, as questões de periodização, embora não essenciais, a meu ver, na história das línguas, são um tema recorrente nos estudos his- tóricos em geral e, conseqüentemente, nos estudos de história das lín- guas.

No caso da história do primeiro período documentado da língua por- tuguesa, o período arcaico, o seu limite inicial se pauta sempre pelo surgimento de documentos escritos em português. Esse limite a quo tem sido revisto: na tradição filológica mais antiga se situava no fim do século XII, com o Auto de Partilhas e o Testamento de Elvira Soares; na década de sessenta, Lindley Cintra, Avelino de Jesus da Costa e Rui Pinto de Azeve- do (Cintra, 1963) demonstram que tais documentos são falsificações dos fins do século XIII e propõem como os mais antigos documentos em por- tuguês o Testamento de Afonso II, datado de 1214, e a Notícia de torto, situável entre 1212 e 1216. Nesta última década, as pesquisas de Ana Ma- ria Martins na Torre do Tombo (Martins, 1999), desvelando documentos de scripta conservadora, alatinada, mas já em português, faz outra vez recuar, com novas informações, esse limite inicial para as últimas décadas do século XII.

Quanto ao limite final do período arcaico, estudos de filólogos e lin- güistas historiadores da língua portuguesa demonstram uma notável falta de consenso, como busquei mostrar em artigo de 1994, intitulado «Para uma caracterização do período arcaico do português». Examinando pro- postas de doze especialistas, os finais do período arcaico variam entre 1500, com o término da fase principal da expansão portuguesa, e 1572, com a publicação de Os Lusíadas. Esses autores, em geral, se pautam por fatores ou da história social de Portugal, ou seja, a tradicionalmente chamada história externa; ou se pautam por fatores da história da literatura; ou, ainda, por um fator que chamarei de sociolingüístico, que é o surgimento das primeiras reflexões sobre a língua portuguesa – 1536, 1540. Esse últi- mo fator reúne muitos dos filólogos e lingüistas pesquisados. No meu tra- balho referido, de 1994, problematizo essa questão e proponho que, sem uma cronologia relativa de fatos intralingüísticos que caracterizam o perío-

Rosa Virgínia Mattos e Silva e Américo Venâncio Lopes Machado Filho (orgs.)

do arcaico e vão sendo desusados do século XV para o XVI, um limite final de base lingüística, ou de história interna, na designação tradicional, se faz, a meu ver, essencial.

Em geral, nos estudos de filólogos e lingüistas, que trabalham sobre o período arcaico e sobre questões referentes à periodização, fatos gráfico- fônicos, morfo-fônicos e mórficos, que caracterizam esse período, têm sido utilizados. Cito, como exemplo, a tese de Evanildo Bechara – As fases his-

tóricas da língua portuguesa (1985: 50-64); o Curso de história da lín- gua portuguesa de Ivo Castro et alii (1991: 244-248); a dissertação de

mestrado de Maria José Carvalho – Do português arcaico ao português

moderno (1986) e o estudo de Clarinda Maia – “Periodização na história

da língua portuguesa: ‘status quaestionis’ e perspectivas de investigação” (1999: 21-40), em que revê, problematiza e indica novos caminhos de pes- quisa.

São privilegiados, em geral, nesses trabalhos, que utilizam indicado- res lingüísticos, os fatos fônicos referentes ao sistema de sibilantes; a con- vergência das vogais nasais finais em um ditongo nasal; os chamados “hiatos desfeitos”, refletidos de várias maneiras na grafia da documentação preté- rita; os fatos morfo-fônicos referentes ao desuso do particípio passado <- u-do> em proveito do <-i-do> para os verbos da 2ª. conjugação; a perda do <-d-> etimológico na 2ª. pessoa do plural dos verbos; os mórficos se referem, em geral, ao desaparecimento dos chamados “possessivos áto- nos” <ma, ta, sa>; a perda das formas reforçadas dos demonstrativos do tipo <aqueste, aquesse> e também mudanças fônicas e/ou analógicas no sistema dos verbos de padrão especial, ou seja, os verbos irregulares.

Entre outros fatos morfossintáticos, morfossemânticos e sintáticos que, no meu trabalho referido de 1994, proponho que sejam examinados, para delimitar o final do período arcaico, estão a questão da variação dos ver- bos ser/estar em estruturas de atributos semânticos transitórios; a da vari- ação haver/ter como predicadores de posse e a da gramaticalização do tempo composto.

Sobre os dois últimos fatos lingüísticos e sobre a emergência do ter existencial em João de Barros, centrar-me-ei neste estudo e pretendo que ele mostre que os meados do século XVI pode ser uma proposta significa- tiva para os finais do período arcaico e os inícios do moderno, por outros designado como período pré-clássico ou clássico. Somar-se-ão assim ao fator sociolingüístico antes referido – o surgimento da reflexão sobre a língua portuguesa, fatores intralingüísticos que não se cingem aos níveis fônicos, morfo-fônico e mórfico, mas, fundamentalmente, estará centrado este estudo no avanço do verbo ter sobre campos de uso de haver, antes indicados, questão semântico-sintática.

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2 Vitórias do verbo ter: do século XIII para os meados

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