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A expressão ‘cultura corporal’ no debate atual: saldos e problemáticas para o ensino da educação física

No documento Educação física escolar (páginas 80-83)

A expressão ‘cultura corporal’ surge e se desenvolve na área da Educação Física em um momento no qual, do ponto de vista acadêmico, procurava-se questionar sua associação com a ideia de atividade físico-espor- tiva (BRACHT, 1999, COLETIVO DE AUTORES, 1992), o que ocorreu em um contexto político e social marcado pela abertura democrática no Brasil5. Nesse processo, enquanto se explicitavam as necessidades teóricas para a busca de outros termos designadores do objeto de ensino da área (negando-se, por exemplo, termos como ‘atividade física’ e ‘cultura física’), a adoção de novos termos também carregava uma dose de arbitrariedade ou convenção, dada pelo momento em que surgem e as disputas políticas e teóricas em torno deles.

Como afi rmam Souza Junior et al. (2011, p. 399), citando entre- vista realizada com os autores da obra Metodologia do Ensino da Educação

Física, o termo “cultura corporal, enquanto termo que irá fundamentar o

objeto de ensino da Educação Física [...] foi, provisoriamente, utilizado para denominar uma ampla área da cultura, sendo também na época alvo de inúmeras críticas”.

Se não podemos fugir de certa dose de arbitrariedade quanto às pa- lavras utilizadas para designar o objeto de ensino da Educação Física, não podemos ser arbitrários quanto ao signifi cado que estamos atribuindo a tal expressão. Parece, então, que – como área – foi salutar aceitarmos os limites semânticos da expressão ‘cultura corporal’ e/ou de todas as suas variantes, para nos situarmos de modo mais propositivo em um debate conceitual em

4 Sobre as categorias singular, particular e universal ver artigo de Oliveira (2005).

5 Este percurso, gestado ao longo da década de 1980 e conhecido como movimento renovador da

Educação Física, está registrado nas publicações clássicas na área: Medina (1986); Ghiraldelli Junior

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relação à expressão adotada. A coerência terminológica segue sendo impor- tante, mas desde que subordinada à coerência do sistema teórico ao qual a expressão se vincula. Como assinalava Resende e Soares, ainda em 1996:

Cabe esclarecer que a expressão “cultura corporal” pode não ser a mais adequada porque é difícil imaginar uma atividade humana que não seja culturalmente produzida pelo homem, assim como é difícil imaginar uma atividade cultural manifesta que não seja corporal. (...) a expressão cultura do movimento humano também tem limitações, visto que nem todo movimento humano está associado à tradição da educação física, dos esportes e da recreação (RESENDE; SOARES, 1996, p. 58). Com efeito, esse debate em torno da expressão ‘cultura corporal’, registrado na produção acadêmica e em propostas curriculares (Nacional, Estaduais e Municipais) produziu, ao menos, dois importantes saldos para a área.

Um primeiro saldo diz respeito à consolidação do vínculo estrutural da Educação Física escolar com a cultura, o que contribuiu para desnatu- ralizar nossos conteúdos de ensino e, assim, superar os então paradigmas hegemônicos da área, biologicistas e esportivistas. A constituição de um paradigma cultural da Educação Física tem marcado uma orientação pe- dagógica e didático-metodológica para se efetivar, nas aulas de Educação Física, a democratização dos seus conteúdos de ensino, conhecimentos esses que deveriam ser acessíveis a todos e não só ‘aos mais hábeis ou aptos’ fi sica- mente. Além disso, como escreve Bracht (1997), implica reconhecer que a Educação Física trabalha com um duplo saber: um ‘saber fazer’ e um ‘saber sobre o fazer’ corporal, ou seja, que as ações e práticas corporais realizadas na Educação Física são, elas mesmas, conhecimentos que precisam ser não só experimentados e apropriados corporalmente, mas também observados, compreendidos, explicados e sistematizados, o que requer a sua articulação a um sistema de conceitos que se quer desenvolver nestas aulas.

Um segundo saldo decorre da contribuição que o consenso6 em tor- no da cultura corporal como termo designador do objeto de ensino da Educação Física escolar tem dado para consolidar a necessidade de abarcar- mos a ‘diversidade’ de manifestações corporais ao selecionarmos os nossos conteúdos de ensino. De uma ação pedagógica ‘consagrada’ e restrita às quatro modalidades esportivas de quadra (futsal, voleibol, basquetebol e handebol) e a alguns elementos da ‘ginástica’, esta reduzida à condição de

6 Quando nos referimos à existência de um consenso em torno da expressão ‘cultura corporal’, que-

remos dizer que já existe uma ampla assimilação desse termo, ainda que acriticamente, no plano do senso comum (GRAMSCI, 2001).

Capítulo 5 – A categoria atividade como fundamento da cultura corporal: contribuições para o ensino da educação física

‘exercício físico’ (KIRK, 2010; SOARES, 1994), passa-se a uma crescente legitimação e difusão da necessidade de se reconhecer e ‘tematizar’ os di- versos tipos de jogos, brincadeiras, modalidades gímnicas, danças, lutas etc. considerando, ainda, suas múltiplas e singulares formas de expressão.

Esses ‘saldos’, entretanto, foram gestados em grande medida a partir do uso empírico da expressão cultura corporal, o que desemboca, na atuali- dade, na (in)cômoda diminuição dos esforços para sistematizar e desenvol- ver continuamente os fundamentos pedagógicos e fi losófi cos que sustentam a adoção dessa expressão7.

Ainda que muito utilizada e mesmo hegemonicamente aceita no discurso acadêmico e no discurso ofi cial (BRASIL, 1997; BRASIL, 2017) a expressão ‘cultura corporal’ aparece, frequentemente, reduzida a uma condição de termo-título para designar e agrupar um vasto conjunto de exemplares que vêm sendo historicamente assumidos como ‘conteúdos de ensino’ da Educação Física: ‘o jogo’, ‘a dança’, ‘a luta’, ‘a ginástica’ etc. O desdobramento pedagógico mais imediato desse uso empírico da expressão cultura corporal, descolada de seus fundamentos fi losófi cos, é, como dizem Neira e Gramorelli (2015, p.1) “Envernizar propostas convencionais pro- pagandeando-as como novas”.

Exemplo disso é nomear aspectos ou mesmo estereótipos de ‘movi- mentos corporais’, que historicamente foram incorporados a uma deter- minada atividade da cultura corporal, como critério para a sua identifi ca- ção: um sujeito fazendo uma ‘parada de mãos’ estaria fazendo ‘ginástica’; um sujeito fazendo um giro e saltos ritmados estaria fazendo ‘dança’; um sujeito realizando um golpe com as mãos em um boneco estaria fazendo ‘luta’. Assim, uma manifestação corporal, digamos um tipo de ginástica, é nomeada, por força do vocabulário corrente na área, de ‘cultura corporal’, mas segue sendo tratada pedagogicamente como uma ‘atividade física’, isto é, mantendo-se as características ou relações sociais que a fazem ser um ‘exercício’.

Nota-se, então, que a despeito dos dois importantes saldos que a ex- pressão cultura corporal forneceu à prática pedagógica da Educação Física, ainda vivemos, como área, um dilema entre “uma prática docente na qual não se acredita mais, e uma outra que ainda se têm difi culdades de pensar e desenvolver” (FENSTERSEIFER; GONZÁLEZ, 2009, p. 12), ou seja, entre uma crítica (pertinente) ao ensino centrado no treino de destrezas e capacidades físicas, direcionado a um viés competitivo e excludente, e uma

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ainda busca por princípios, objetivos e critérios teóricos e metodológicos para um trabalho pedagógico com as diversas formas da ‘cultura’ no campo dos jogos, danças, lutas, ginásticas etc.

Nossa perspectiva, semelhante aos estudos de Brasileiro et al. (2016, p. 992), é analisar a base conceitual que sustenta o termo cultura corporal, “tomando como referência sua obra de origem ‘Metodologia do Ensino da Educação Física’ em diálogo com as referências que lhe dão sustentação teórica”, particularmente para nós, neste texto, a categoria ‘atividade’.

Do ponto de vista metodológico, o exame das defi nições sobre ‘cul- tura corporal’ dá-se mediado por uma pergunta que revela o arcabouço teórico a partir do qual examinaremos tais defi nições: O que signifi ca con- cretamente assumir que os conteúdos de ensino da Educação Física tenham uma natureza cultural e social?

A categoria atividade como fundamento da cultura corporal:

No documento Educação física escolar (páginas 80-83)