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PARTE I. O Argumento: Para não esquecer o indizível

4. Materialismos, Poética e Crítica

4.3. O que exprime a crítica

Inversamente, a experiência do potencial das condições presentes em relação às obras. Diríamos que há, à partida, pelo menos duas formas gerais de abordar a questão das práticas literárias (cf. supra I.4.1): uma perspectiva endossada pela praxeologia, a procura por protocolos de interação que sirvam de caso geral e permitam uma certa previsão e controle (como exemplificamos com o caso paradigmático do ritmo de Gumbrecht); e uma outra, respeitante à Poética, aos usos e apropriações particulares que caracterizam a intervenção do sujeito sobre o meio, às práticas de inscrição que, te deum, variam tanto quanto as possibilidades imanentes aos meios. Defendemos a necessidade de vincular a reflexão sobre práticas a um programa estético-filosófico que leve em conta a materialidade; quer em relação à pesquisa por mediações técnicas quer poetológicas, a linguística se retira e o método se torna especulativo. Há que propor, assim, uma forma alternativa de participação e investigação acadêmica (cf.

supra I.4.2), quer como o que Gumbrecht chama de riskful thinking, quer na forma de uma

leitura. Mas qual é a causa, aqui, que move essas reorientações na poética, na investigação e no ensino? Três autores parecem-nos exemplificar tendências da crítica quanto à pergunta posta, via Lyotard, sobre como acontece a inscrição do que se está por pensar.

Do que até então apresentamos, aqui devemos apenas sumarizar, recobrar algumas inquietações que deram origem aos modelos de materialidades e práticas e reorientá-las no sentido de um programa de crítica, tanto no tocante à crítica literária como à crítica cultural. Podemos começar pela obra de Marjorie Perloff, a que já nos referimos nesse sentido. Perloff secundariza o papel da teoria em relação à crítica. Isso diz respeito às pretensões nomotéticas que a palavra porta – teoria como explicação geral de causas e funções dos dispositivos linguísticos das obras – contra a necessidade de uma prática idiográfica, direcionada ao particular. Essa particularização faz com que Perloff tome como ponto de partida a leitura

cerrada, que aparentemente evitaria a projeção da subjetividade (do gosto, mas também da

impostação cultural) e deixaria intocadas as obras. Se dissemos, no entanto, que esse método somente substitui a subjetividade por alguma formalização e dessa forma contrabandeia concepções, ele consiste para Perloff numa simples precondição de sua leitura diferencial, já que há um compromisso estético-filosófico de que a autora não tem a intenção de abjurar em nome de algum standard acadêmico. Por isso, no fundo, a crítica se torna mais “close” que o

close reading, e em certa medida desmente-lhe as premissas epistemológicas. O que leva à

leitura cerrada é sempre um interesse específico que “encerra” a obra; um interesse que, trazido ao reconhecimento, pode fazer-se próximo à obra sem a intenção de submetê-la à identificação. Isto é o mesmo que dizer que Perloff não propõe um modelo interpretativo, mas crítico, na medida em que sua validade é propiciada pelo objeto com que se mede. Não propõe um programa teórico tout court, mas crítico, na medida em que seu objeto de reflexão limita sua validade. Se quisermos, então, reelaborar aqui o problema da mediação entre o discurso acadêmico e a sociedade, diríamos que para Perloff a exterioridade é suscitada desde dentro do texto e com efeito torna-se já um “dentro” quando novas práticas poetológicas dão um salto desde o enunciado, em que se enxerga uma configuração linguística, para a enunciação, em que se visualizam as cenas do canal e do medium. A retirada da linguística implica a busca doutra

coisa que não configurações de sentido; a introdução da estética implica que essa coisa reflete

a experiência atual. Isso estava já no programa de Gumbrecht, como posição teórica; vemo-lo então na prática crítica. Haveríamos de perguntar-nos se essa “outra coisa” só surge na insuficiência da teoria para lidar com fenômenos contemporâneos ou se toda a teoria já não se ergueu sobre o silêncio daquilo que não seria redutível a seu protocolo de identificação.

Já a obra de Jerome McGann põe em maior evidência seu antagonismo em relação ao

close reading. Em The Beauty of Inflections (1985), o autor propõe uma hermenêutica materialista na direção contrária à tradição da Nova Crítica – a qual, de resto, é reputada por

De Man como substrato da Desconstrução no contexto acadêmico norte-americano (DE MAN, 1986, p. 116). Qual é o problema da Nova Crítica e, nessa via, da interpretação praticada pelos “desconstrucionistas” pós-demanianos? Já o dissemos. McGann acredita que adoção da doutrina da imanência, a qual por seu turno surgiu como um modo de defender as obras de arte e a subjetividade burguesa do filistinismo do mercado e do espaço público, era uma tática exegética com uma finalidade primariamente redutiva. Sob a prerrogativa do caráter autoconstituído do artefato, a leitura cerrada teria sido “precisely designed to generate meaning

which will establish no self-conscious or systematic relations with any of these contexts”

(MCGANN, 1985, p. 3). Essa licença reduz a obra a uma entidade ontologicamente linguística. O princípio da incursão metodológica de McGann é, assim, uma tomada de partido: a exterioridade histórica ilumina, antes de tudo, aquilo que no texto pareceria “apenas” linguagem. A exterioridade não é suscitada porque a constituição do sentido textual lhe carece, é antes uma invectiva contra a semântica. Nesse momento inicial de sua crítica, McGann se refere à teoria do enunciado concreto, de Medviédev;78 conforme essa teoria, cada enunciado carrega uma avaliação (diríamos inscrição) social e histórica, a qual por seu turno constituiria o verdadeiro material da poesia. Valor de verdade é uma espécie de ressonância (não necessariamente harmônica) entre a linguagem e a experiência, o que aqui entenderíamos como o diferencial que surge na obra.

No entanto, ainda, como essa adoção se justifica de uma perspectiva crítica e não tão só enquanto a priori teórico? A chave aqui já foi citada: “deformance sends both reader and work

through the textual looking glass” (2001, p. 116). No programa dos anos 80, tratava-se de

entender o “texto” numa linha filológica, isto é, como parte de um processo de escrita, apesar

desse processo participar de um determinado discurso: “[w]e need to do more than explain what our texts are saying (or what we think they are saying); we need to understand what they

are doing in saying what they say” (1988, p. viii. Ênfase do autor). Essa restituição da

performatividade textual tem um débito (ou talvez uma concorrência conceitual) com a

78 Não raro atribuída a Bakhtin. Não vemos razão para coroar Bakhtin o príncipe dos teóricos do “Círculo.” Com

efeito, a teoria do enunciado concreto, em função de localizar historicamente os materiais da experiência verbalmente mediada (MEDVIÉDEV, 2012), afasta-se bastante da tendência bakhtiniana de metahistoricizar a enunciação, como é o caso implicado em sua teoria dos gêneros (BAKHTIN, 1997). O interesse presente não pode se abater sobre a história como terminus ad quem de seu potencial para a verdade.

intertextualidade, já que atos poéticos, carregados de valores sociais, “most certainly are

involved with extra-poetic operations” (1985, p. 21). Já nos anos 2000, o que se não quer é que

a obra seja mediada por dado método com determinada finalidade, mas que ela constitua uma mediação per se, que ela seja o meio de contato do presente com os diferenciais, que a mediação poética seja por seu turno mediada pelo extrapoético que ela medeia. O reconhecimento da

deformance restituiria a obra, não como concretização semântica mas atualização de potências

não enunciadas. Mas o que isso diz quanto à crítica? À primeira vista, acrescentando à necessidade de buscar por algo que não o sentido, a crítica materialista deveria orientar-se de

maneira produtiva – e-laborar esse algo.

Essa proposição abstrata do dever da crítica solicita uma pormenorização se se quiser que ela seja mais do que o crítico-como-artista que caracteriza muito do pós-estruturalismo. Não se trata de produzir sentido. Enquanto tradicionalmente o juízo de valor é concebido como o momento posterior à prática interpretativa (cf. supra I.4.2), a ideia da deformance como constitutiva da obra implica que o juízo sobre o valor é imanente à ferramenta empregue. Diante disso, como recuperar algum ideal de neutralidade axiológica, que não permita que a prática do crítico se limite, se se pode colocar a questão dessa maneira, simplesmente a uma questão de “gosto” ou à mera reprodução do establishment teórico e estético, que o método sempre corrobora?

It’s useful to think – to remember – that there’s no such thing as a bad poem. Some poems appear better than others, some appear better to others. But in verse nothing bad can happen (…) To choose to write a poem means that you’ve already professed your faith in the grace of language. And so the gods are indulgent – where men often are not. So in thinking about poetry after the fact, beware. The gods don’t take kindly to those who mistreat their favorites. There is such a thing as good and bad criticism. (MCGANN, 2009, p. 2–3. Ênfase do autor)

Para McGann, a tarefa de curadoria, ou do sacerdócio literário (2006, passim), deve limitar a crítica. O desencantamento do juízo, a favor do qual argumenta no ensaio “Inside a Dog”, se faz necessário: quando se suspende voluntariamente a crença, para usar seus exemplos, em Shakespeare ou em Rousseau, como na Bíblia, há a possibilidade de conscientemente simpatizarmos com sua fraqueza e sua presente alienação. É outra forma de pensar o desencantamento que apontamos no programa gumbrechtiano (cf. supra I.2.1).

Voltando ao close reading e à Desconstrução. Não será também aquela ironia, a reversão da condição de possibilidade em impossibilidade, que se opera na crítica derridiana à metafísica da presença? Na Arte, a doutrina de imanência torna-se uma ideia redutiva; a crítica daí derivada

troca os pés pelas mãos no tocante ao valor. Enquanto o objetivo de Derrida era criticar a ilusão de uma prima philosophia (cf. supra notas de rodapé no. 17 e no. 47) que se espalhava em formatos diversos por toda a filosofia e ciência “continentais,” seu argumento malogrou-se ao ser reapropriado pela academia americana: sem um fundamento para uma certeza, tudo poderia ser reenviado ao espaço borgesiano dalguma biblioteca de Babel.79 Um óbice foi assim pervertido num gozo de outra espécie, e o que surgiu daí foi uma das primeiras figuras da atual crise (cf. supra I.1.1 et seq.), a jeremiada do referente. Se alguns, como De Man, souberam explorar e contribuir com o impulso crítico da desconstrução derridiana, aos demais ela fez-se catecismo. Obra autorreferencial, linguagem autorreferencial e, no fundo, a crítica também: não consegue escapar à camisa-de-força de seus próprios conceitos.80 Esse seria o início de um esboço para o antagonismo de Gumbrecht.

Ao construir a narrativa do “campo hermenêutico,” o que Gumbrecht quer transformar em tema é todo o horizonte patológico de uma ansiedade epistemológica por que ele mesmo passara. Nos anos da desconstrução e do pós-estruturalismo, outras noções rivalizavam o processo de diluição que dissemos acontecer a Derrida: “intertextualidade” parecia introduzir regras novas no jogo, tal como as noções de “discurso,” de “poder” e assim por diante, tudo sempre já por resolver-se e integrar-se, desse modo, ao quadro anterior. Por um lado, tudo isso revelava o surgimento de novos interesses e novos esforços de aliviar o cisma entre o discurso acadêmico e as necessidades sociais reais – e com razão ainda revela. Essa também não era e é a intenção de Gumbrecht? Então, onde está o “por outro lado”? A princípio, no fato de que ele sabia a duras penas (cf. supra I.2.1) aquilo a que se referia Derrida: há um tema que retorna junto às figuras recentes, que reata sua história ao mito da origem, do logos, do que chamamos de princípio da identidade. Para Gumbrecht, se lhe quisermos dar uma formulação adorniana à qual não se oporia: todas as tentativas de criticar desde dentro o paradigma hermenêutico reproduziam uma “incapacidade de poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos, de poder tocar o imediato com as próprias mãos” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 47). Talvez

79 Pense-se, por exemplo, na proposta de uma “ciência da inscrição,” que para Derrida impediria o postulado de

um fundamento último do conhecimento, transformada na procura por um fundamento de outro tipo. Não podemos ignorar a ressonância da gramatologia com a ‘patafísica: a ciência que rege as exceções como eventos não reiteráveis proíbe qualquer tipo de universalidade. De resto, essa “perversão” já estava contida na palavra gramatologia, que dá a entender que os media de inscrição efetivamente fundamentam a experiência humana.

80 René Wellek produz uma descrição aforismática: “No self, no author, no coherent work, no relation to reality,

no correct interpretation, no distinction between art and nonart, fictional and expository writing, no value judgment, and finally no truth, but only nothingness – these are negations that destroy literary studies” (1990). Em contrapartida, se precisassem de tanta ancoragem na suposta “realidade” dessas noções para justificar sua legitimidade em relação aos interesses sociais, talvez os estudos literários não merecessem, de fato, existir.

fosse essa a intenção contida na equação entre materialidade e substância: materialidade como

prius implica não sujeitar a coisa a um novo regime interpretativo e, não o fazendo, recusar-lhe

o problema da teleologia imanente (sempre já imputada pela interpretação), implica reinvestir a experiência duma certa imediatidade. A palavra que Gumbrecht oferece para isso, no que bem funcionaria como o caveat lector do volume Materialities of Communication, é contingência:

Perhaps we even jeopardize the most important option offered by materialities approach if we dream of a new stability for renewed concepts in a future age of theory. This most important option might well be the possibility of seeing the world under a radical perspective of contingency – as a sphere of extremely short-lived phenomena and without any stable or general concepts for their description. (1994, p. 402. Ênfase do autor)

A terceira sugestão para a crítica literária, à luz do que discutimos, diz respeito à necessidade

de salvaguardar o imediato na qualidade do contingente, do que difere em si.

Do percurso crítico de Gumbrecht, já dissemos o mais. Se a tarefa crítica consiste, então, em propiciar as condições para uma certa experiência presente – diferencial, restitutiva das obras e vivida em sua contingência –, a solução gumbrechtiana consiste em abandonar a representação como fons et origo de nossos discursos descritivos e retomar o comentário como prática doutrinária (cf. supra I.2.3). Porque no comentário não se implicaria a varredura das figuras de linguagem numa reconfiguração de (muitos ou poucos) sentidos, mas a agregação da memória da experiência tanto sedimentada na obra quanto por ela desencadeada. O desencadeamento, se se tratar disso, do que Lyotard chamou de passagem. Ao falar do comentário, porém, já não discutimos somente uma prática de curadoria – do crítico enquanto o que comenta obras – mas um gênero textual. De tudo o que dissemos, haveria uma forma textual que propiciasse o contato com aquilo que é o objeto da crítica – a materialidade, a atenção às práticas, a vivência dos diferenciais, da contingência, etc. – num duplo movimento de restituição da obra, isto é, da imediatidade da obra à experiência presente? Especificamente, não nos parece.81 Mas abundam contraexemplos. Talvez aconteça de um modelo determinado, o da análise sucedida de avaliação, prestar-se demasiado facilmente à regressão, à anestesia estética, à serialização industrial: qualquer um que aprenda o catecismo das categorias pode rezar a missa literária no suplemento dominical e isso, ainda, com bastante mais “objetividade”

81 Nossa opinião é de que a boa crítica, como a chamaria McGann (cf. supra), sempre se ocupou de mediar a

relação entre as obras de arte e a sociedade com maior ou menor clareza conceitual ou escopo, não sendo pertinente propor que um modelo retórico particular seja (ou fosse ou tenha sido) mais ou menos capaz de fazê-lo. Só que a verdade de um pensamento vence a prazo.

do que aquele impressionismo crítico de que o século XX se orgulhou de dar cabo. Como dissemos, a forma proposicional, “isto se refere a...” (cf. supra I.4.2), não dá conta de verdades especulativas, isto é, da experiência vivida no espaço performativo da literatura, do reconhecimento do erro, da deformação como constitutiva de sua validade.82 Porque é um jogo fácil o da análise associada à concepção linguística das obras, talvez fosse necessário tomar um partido efetivo por outras formas. Não uma forma, mas outras. Talvez o impressionismo tenha aí sua verdade, num certo esforço de tentar reelaborar (ou perlaborar? restituir? reapresentar?) aquele efeito de encanto da experiência, do contingente, do diferencial.

***

A partir de uma reflexão sobre a imbricação da investigação poética ou poetológica ao problema das correntes práticas artísticas em relação a determinados conceitos de materialidade (cf. supra I.4.1) sugerimos a possibilidade de comunicar alguma performatividade às práticas de investigação acadêmica através de um pensamento deliberadamente especulativo e participativo (cf. supra I.4.2). Essas duas formas de reflexão abririam para o que, seguindo Lyotard, tomamos como passagem e como experiência. Num terceiro momento, consideramos três aspectos da prática crítica em relação ao tríplice problema enformado pela materialidade, pelas práticas e pelo que aqui chamamos de lógica da não-identidade. Essa crítica (cf. supra I.4.3) deveria ocupar-se de considerar o diferencial como espécie performativa, mantendo uma postura restitutiva e aberta à experiência do contingente.

A pergunta a ser elaborada faz-se finalmente presente: em que medida teorizar sobre a materialidade permitiria a passagem, então no sentido lyotardiano, da inscrição?

82 A passagem de Hegel: “O enunciado contém, assim, o resultado [o sentido total], ele é esse resultado em si

mesmo. (...) o resultado não é ele mesmo expressado no enunciado; é uma reflexão exterior que o reconhece nele. – Quanto a isso, no início tem de ser feita imediatamente essa observação geral de que o enunciado, na forma de um juízo, não é apropriado para expressar verdades especulativas (...) O juízo é uma relação idêntica entre o sujeito e o predicado; nele se abstrai do fato de que o sujeito ainda tem mais determinidades do que aquelas do predicado, bem como que o predicado é além do sujeito. Se, porém, o conteúdo é especulativo, então também o não idêntico do sujeito e do predicado é momento essencial, mas isso não está expresso no juízo” (HEGEL, 2011a, p. 80–81). Hegel segue, a partir disso, delineando uma teoria da exposição (Darstellung, não Vorstellung, representação) que não reduza o conteúdo especulativo do enunciado por meio da pressuposição de uma unidade (de sentido) que implique a indiferença dos objetos do juízo. “A unidade exprime, por conseguinte, a mesmice inteiramente abstrata”(2011a, p. 82). O especular, aí, parece remeter à metáfora paulina do conhecimento “por espelho, em enigma” e não face a face, como no capítulo 13, versículo 12, da primeira epístola aos Coríntios (TURKEN, [S.d.]). Especular seria a parcialidade progressiva por oposição à revelação dada de uma vez por todas.