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Media moles, matéria dura – um modelo anestético de materialidade

PARTE II. Modelos de materialidade: contribuições para uma reorientação estética da Teoria

1. Do campo não-hermenêutico ao modelo epistemológico das Materialidades

1.1. Media moles, matéria dura – um modelo anestético de materialidade

Qualquer tentativa de homogeneizar o pensamento de H. U. Gumbrecht deparar-se-á com contradições. A primeira coisa a notar em sua obra é que ela é tão conceitualmente carregada que se descola da reflexão sobre objetos específicos, sobre obras literárias em particular: não é sobre literatura, é sobre formas de lidar com literatura. Por isso, para o bem ou para o mal, ela também se afasta de preconceitos específicos associados a esta ou àquela estética.92 Suas propostas, por assim dizer, surgem de alto a baixo, não raro fazendo jus à acusação de que toda teoria literária recorre a obras tão só para exemplificar aquilo que ela propõe. Essa condição, entretanto, não funciona como uma determinação, recorte ou limitação prévia de uma obra a estudar – como é a crítica feita por Perloff à teoria como discurso (cf.

supra I.4.1) – mas resulta de seu interesse mais radical de criticar os modelos descritivos e

formas de autorreferência dos estudos literários e insinuar aí a experiência humanística da contemporaneidade – esforço com o qual concorrem inevitáveis contradições. Nesse contexto, podemos começar nossa avaliação do materialismo gumbrechtiano a partir de uma distinção ad

hoc entre um “modelo descritivo-funcional” e um “modelo ontológico”93 de materialidade, que mais ou menos refletiriam a separação (com efeito problemática) entre “enunciados teóricos” e “enunciados de observação,” respectivamente, a que anteriormente aludimos (cf. supra nota de rodapé no. 49).

Modelos descritivos são instrumentos que participam de jogos de linguagem respeitantes à “zona de consenso” que Gumbrecht associa ao observador de segunda ordem (cf.

supra I.2.3 e I.4.2), àquele que se observa no ato de observação. Eles servem para explicar as

operações discursivas de que uma determinada ideia participa, investigar interações conceituais e traduzir observações. Modelos ontológicos, em contrapartida, ainda que pertençam à mesma

92 Outros constroem materialismos a partir de estéticas específicas, o que pode ser tanto uma perda de plasticidade

conceitual quanto um ganho em determinações, que de fato só são ganhos quando processualmente considerados. O viés, ou discurso, presente em Gumbrecht como em qualquer outra obra, é o que liga representação e mundo.

93 Poderíamos empregar também, respectivamente, “modelo instrumental” e “modelo mimético,” como sugerido

por Gumbrecht. Todavia, cumpre notar que instrumental e mimético não dizem respeito a formas distintas de lidar com a mesma questão: enquanto a instrumentalidade enfatiza a finalidade do conhecimento, mimese enfatiza sua gênese. Optamos pela oposição entre “funcional” e “ontológico” porque ambos caracterizam não a relação da teoria à coisa mas precisamente o tipo de modelo a que se faz recurso ou nível de “modelagem” em foco.

lógica discursiva, têm a pretensão de manter um nexo causal com a coisa, ou seja, respeitando ao observador de primeira ordem que percebe, distingue e classifica entidades sem a mediação de um terceiro. Eles têm, por assim dizer, um resíduo mimético ou teor experiencial. É uma distinção de sintaxe, bem ingênua e já elaborada algures, entre teoria literária e teoria da

literatura. A diferença, para usar uma nomenclatura da Teoria dos Sistemas, é entre uma função

autorreferencial (descritiva ou teórica) e uma heterorreferencial (ontológica, observacional) que atuam na construção de uma teoria.

1.1.1. Materialidades da Comunicação: Sistemas, Estados, Acoplagens

Que função é predominante no modelo de materialidade gumbrechtiano? Uma de suas narrativas, redigida em 1993, sobre a formação do “campo não-hermenêutico” e o surgimento da ideia de materialidades pode complicar ainda mais nossa pergunta:

Como um modo de apresentação do campo não-hermenêutico, empregarei a teoria semiótica de Louis Trolle Hjelmslev. Contudo, o faço como estratégia de apresentação; pois, para mim, Hjelmslev também pertence ao campo hermenêutico. Emprego sua teoria somente para elaborar uma cartografia. (GUMBRECHT, 1998a, p. 144)

O que interessa a Gumbrecht na retomada de Hjelmslev é a distinção que o estruturalista faz entre “forma” e “substância” como subdivisões dos planos de “expressão” e “conteúdo” (respectivamente, o Significante e o Significado saussureanos). Dessa maneira, a topologia do campo não-hermenêutico incidiria sobre os elementos distintos da substância da expressão e de sua forma, como da forma do conteúdo e de sua substância. Essas quatro formações explicariam, para Gumbrecht, os interesses de autores tão diversos como De Man e Foucault, Zumthor e Iser, e seu afastamento da questão do significado textual. Localizar sua proposta das materialidades nesse mapa seria, claramente, assumir uma postura descritiva, propor que, tão só a partir dessa “estratégia de apresentação,” o objeto de sua investigação pode ser compreendido como tal. Materialidade, para Gumbrecht, é a investigação da forma e da substância do plano da expressão enquanto algo cindido do conteúdo (1998a, p. 146–147), portanto, como condições de emergência do conteúdo. Já vimos (cf. supra I.1.2) que sua definição de materialidade seria a de “qualquer objeto que participa na produção de sentido sem ser sentido ele mesmo” (2004a, p. 19); as perguntas do ensaio de 1993 pormenorizariam a questão de como essa participação se caracteriza. Contudo, a proposta cartográfica de Gumbrecht se torna realmente problemática no passo seguinte:

A primeira pergunta teórica radicalmente nova coloca a indagação filosófica: o que é uma “forma”? Afinal, se, de fato, a distensão entre os campos está em curso e, se, em verdade, as novas perguntas investigam as condições da possibilidade de sentido, então precisamos enfrentar um duplo problema: o da passagem da substância do conteúdo à forma do conteúdo e o da passagem da substância da expressão à forma da expressão. Como é possível que algo não estruturado adquira forma? (1998a, p. 148)

A ideia de materialidade de tal forma engendrada evoluiu pouco, o mesmo esquema conceitual de 1993 se apresentando em Production of Presence (2004b, p. 13–15). Aproximou-se-lhe uma terceira pergunta, entrementes lançada, sobre como acontece a acoplagem entre “forms of

content and forms of expression into signs or into larger signifying structures” (2004b, p. 15).

Não é preciso pensar muito para perceber o salto (ou sub-repção) epistemológico: de um modelo descritivo, de um mapa discursivo, passa-se à suposição de que existe algo como substância que se articula numa forma. Se fosse fiel ao quadro, como o apresenta, a pergunta de Gumbrecht soaria mais como “como passar da teoria do imaginário de Iser (substância do conteúdo) à

leitura teórica de De Man (forma do conteúdo)? Como acoplar as duas a uma gramatologia?”

No entanto, passando da cartografia à filosofia, Gumbrecht propõe (e “assinala”) uma definição de forma que não é mais do que uma leitura “sistêmica,” luhmanniana, da primeira lei da forma de Spencer-Brown94: “proponho [para a forma] a seguinte definição: forma é a unidade da

diferença entre referência externa e interna” (1998a, p. 148. Ênfase do autor). Estranhamente

dialética se confrontada com a metáfora conceitual da “oscilação,”95 a ideia é de que não há dentro/fora senão como modos de relação (referência) da unidade abstrata que é a forma, o exemplo de Gumbrecht sendo o do “Eu” como sistema psíquico.96 Algo como forma emerge da substância em relação a seu outro como um Eu emerge do corpo no mundo.

No ensaio datado do mesmo ano de 1998 e com que fecha o mesmo volume:

“substância do conteúdo” se refere a imagens, intuições, sentimentos não estruturados ainda, suscetíveis de preencher nossa consciência; ao passo que “forma do conteúdo” designa o resultado de sua transformação em estrutura – transformação necessária a qualquer tipo de articulação. “Substância da expressão” inclui qualquer material utilizável na articulação do sentido, como tinta, som, chips de computador e energia elétrica, por oposição a letras, fonemas ou textos na tela de um computador, enquanto

94 A lei da chamada diz respeito à demarcação primitiva estabelecida sobre um espaço não previamente marcado.

Discute-o McGann em “Dialogue and Interpretation at the Interface of Man and Machine” (2001, p. 193–208). O “sistêmico” aí seria associar essa lei ao problema da auto- e da heterorreferência como posto por Luhmann; de resto, a noção de referência já não estará contida na “chamada,” calling de Spencer-Brown?

95 Oscilar entre dois termos é a figura antidialética por excelência. No entanto, a unidade de demarcação de que a

oscilação depende, i.e. ao passar de uma forma de referência a outra, é algo sumamente dialético.

96 Seria diferente se se pusesse o exemplo do “mim” como heterorreferência, isto é, como função de um “eu” que

“formas de expressão” (1998a, p. 169)

Poderíamos começar aqui com o problema anteriormente mencionado da forma spencer- browniana, ou luhmanniana (2012b, p. 114), como unidade que demarca a referência interna da externa: sem o abono de uma disciplina como a psicologia cognitiva, fica difícil falar desse processo de demarcação como sendo concomitante à articulação de uma “substância” de consciência numa “forma” de consciência em relação a um contexto exterior – o pressuposto aí sendo a imanência desses conteúdos.97 Que fenômeno Gumbrecht está indicando por “estruturação” da substância do conteúdo através de uma forma do conteúdo da consciência? Claro, o recurso a uma tal classificação se deve, antes de tudo, ao fato de essas distinções de Hjelmslev fazerem parte do repertório comum dos estudos literários e não tanto à sua validade em geral; entretanto, o próprio Hjelmslev não parecia indicar com suas distinções (conteúdo e expressão, forma e substância, etc.) senão a relação mesma entre esses binômios e não um outro domínio ao qual rigorosamente corresponderiam (TAVERNIERS, 2008, p. 4). O quanto elas são comensuráveis com a definição de Spencer-Brown ou Luhmann é ainda outro problema. Seria preciso questionar se a relação entre essa substância do conteúdo suscetível de “preencher a nossa consciência” está para sua forma própria de articulação de modo igual ou similar à passagem da substância da expressão para a sua forma, isto é, se conteúdos da consciência se articulam em ideias e conceitos da mesma forma como um ajuntamento de circuitos e componentes eletrônicos projeta imagens no ecrã. Do contrário, não se trata tão somente de uma passagem indevida do modelo descritivo-funcional para o ontológico, mas de uma distorção conceitual geral.

Mas a pergunta mais radical a fazer seria a seguinte: existe algo não formado? O erro do estruturalismo neokantiano, se se trata aqui de compreender o mundo como sempre já estruturado, é certa ingenuidade hermenêutica, de que também compartilha a formulação de Gumbrecht: aquele encara o mundo da cultura estruturado per se, este visa uma substância que ainda não se apresentou, que não gerou sua forma a partir de si própria. O corretivo hermenêutico para o estruturalismo seria perceber a hipóstase do a priori da estrutura como

97 Isto é, a ideia de “preenchimento da consciência” remete à intencionalidade husserliana, da consciência enquanto

consciência de algo. Gumbrecht está incorporando mais elementos da fenomenologia de Husserl ao modelo cognitivo, já bastante husserliano, adotado pela Teoria dos Sistemas (MOELLER, 2006). Já se disse do ambíguo caráter, abstrato mas (por isso) de aplicação geral, da Teoria dos Sistemas: por um lado, suas definições carecem de fôlego para ir ao encontro da coisa em sua especificidade, opinião que o próprio Gumbrecht avança (1996); por outro, ela pode funcionar como instrumento para reinventar fenômenos já conhecidos (MOOIJ, 1979, p. 126 ss.). A generalidade é que parece provocar essa reduplicação conceitual (a abstração de Husserl exige o retorno de Husserl para fazer sentido, etc.).

efeito de uma compreensão insuficientemente autorreflexiva,98 de resto um problema análogo ao que os idealistas alemães encontraram em Kant (ŽIŽEK; GABRIEL, 2012). Mas e a visada de Gumbrecht? Não devemos apressar um juízo quanto ao problema. Embora o dê a entender a formulação, não é senão hermeneuticamente-ingênuo-às-avessas nessa matéria: o que ele realmente quer é contrabandear uma visão substancialista dos fenômenos de Presença e materialidade, uma visão da coisa bruta antes de ser observada ou demarcada, em vez de simplesmente pensar a “presentificação” ou “materialização” como artifícios semânticos ou efeitos linguísticos de segunda ordem, na senda do estruturalismo (cf. supra nota de rodapé no. 91). Ele opta pela figuração da “oscilação,” em lugar do que podemos entender como uma certa dialética que Luhmann desdobra na relação entre a comunicação como subsistema social e o sistema da mente, para afastar esses polos:

[T]he independence of each closed system is a requirement for structural complementarity, that is, for the reciprocal initiation (but not determination) of the actualized choice of structure. (…) Communication is made all the more possible if we are not in the position of simultaneously perceiving what others are perceiving, and in this way we are independent of other’s perceptions or failures to perceive that we perceive what we perceive. (LUHMANN in GUMBRECHT; PFEIFFER, 1994, p. 380–381)

A comunicação para Luhmann não é, assim, a transposição de conteúdos de uma parte a outra (da comunicação à mente) mas um duplo processo de estimulação que produz, a cada parte, uma resposta própria. Perspectivada de fora, essa seria uma cena dialógica em que uma fusão dos horizontes não se pode operar porque o horizonte de cada uma das partes é incomensurável; perspectivada de dentro, é uma cena em que o elemento alien provoca uma resposta interna que não necessariamente lhe corresponde, isto é, que não desperta os mesmos elementos estruturais em cada parte mas permite diferentes seleções. Por isso essa “oscilação” discursiva entre o descritivo e o ontológico apresenta uma formidável ressonância com sua teoria da experiência estética como oscilação entre os efeitos de sentido e os efeitos de presença (cf. supra I.2.3). Uma metáfora para essa oscilação seria a proibição tradicional de se dançar

98 A miúdos: o erro comum aos estruturalistas e a Kant é a hipóstase do caráter transcendental e constitutivo das

formas – no estruturalismo, essa é a crítica que lhe endereça Jacques Derrida (1995, p. 229). Mesmo a visada às estruturas depende de um olhar que em si já é pré-estruturado e, por essa razão, a reflexão dessas condições ameaça a estabilidade, o acabamento e a finalização do sistema. O problema toma a figura da semiose infinita, da ideia de que o que C. S. Peirce chamou de interpretante do signo é apenas outro signo e não o sentido numa forma acabada e delimitada pela experiência do sujeito (cf. supra I.1.1.4). Quanto ao restante do comentário, não se trata de maneira alguma de colocar o pós-estruturalismo no mesmo espaço conceitual que o Idealismo pós-kantiano, já que a certo modo o pós-estruturalismo permanece fiel ao giro copernicano de Kant (RORTY, 1981), enquanto o Idealismo se caracterizou pelo esforço em resolvê-lo, por isso a glosa romântica da reconciliação.

um tango cantado (2004b, p. 108) ou de pensar no corpo enquanto se dança (2012b, p. 116), já que a atenção à dimensão lírica e talvez impedisse a acoplagem “ótima” entre o corpo e o ritmo da música e inversamente, o investimento rítmico-proprioceptivo ofuscaria a qualidade cognitiva da canção, o mesmo valendo para a auto-observação do corpo. (Claro, o pressuposto aí ratifica aquilo que há de pior no “cartesianismo,” que não é tanto o primado do cogito sobre a coisa extensa – e, portanto, o mito de que a razão e o espírito determinam a experiência e sobre o mundo – quanto a oposição mais fundamental entre o sensível e o inteligível, que lhe prepara o terreno [cf. infra II.1.2.4].)

“Acoplagem,” aquilo que manifesta o que Luhmann se referiu como “complementaridade estrutural,” diz respeito às práticas relativas quer às obras literárias quer aos artefatos mediais que as instanciam, e, sobretudo com respeito aos artefatos, essa oscilação trata de uma conceitualmente saudável distinção entre comê-los e compreendê-los (GUMBRECHT, 2002, p. 15), entre fazer um uso estético ou aplicação conceitual, entre sucumbir ao mecanismo de uma piada (o súbito, a disrupção, etc.) e fazer análise do discurso, e toda a série de circunstâncias de interação que, naturalmente, envolva a seleção de um critério e o afastamento de outro. Mas, mais do que isso, essa oscilação entre participação e explicação como “acoplagens” distintas confere uma enorme elasticidade à “tematização” de todo um universo de problemas que ficam sempre aquém ou além da redução interpretativa, que pressupõe sempre a comensurabilidade entre as partes. Esse passo da descrição para a ontologia, se se dá em falso, deve ser conscienciosamente admitido por um pensamento voltado à não- identidade, a princípio porque o rigor da cartografia gumbrechtiana, como a escala do famoso mapa de Borges, sobrepõe-se à nossa realidade cultural e disciplinar – e importa-nos precisamente em função das falhas que apresenta.

Já vimos que a intenção de formular um programa de materialidades era aliviar o cisma entre as ciências duras e moles (cf. supra I.2.2), e que sua ideia era atingir o não conceitual, o elemento que se dá à percepção antes de tornar-se o objeto da (experiência de) compreensão hermenêutica (cf. supra I.2.3). Nesse ínterim, podemos falar de uma materialidade dura, do corpo que se acopla a uma máquina e do ritmo gerado (1998a, p. 149) como fenômenos que só se permitem pensar – como exigido pelo seu programa – num âmbito empírico-analítico. Acoplagem é categoria central que Gumbrecht emprega para esboçar uma reflexão sobre o tema, como já o vimos discutir (cf. supra I.2.2). O que ela tem de hard science, de dureza, é o seguinte:

[numa acoplagem de primeiro nível] dada a existência de dois sistemas, Sistema 1 (S1) e Sistema 2 (S2); se, no S1, verifica-se um Estado 1 (E1), este E1 condiciona no S2 um Estado 1’ (E1’). Por sua vez, se o S2 se encontra na situação do E1’, então este E1’ condiciona o S1 no Estado 2 (E2). Agora, se o S1 adota o E2, este passa a condicionar o S2 a um Estado 2’ (E2’). (1998a, p. 149)99

Um exemplo breve (e aqui rudimentar) disso é a integração primária do corpo ao teclado de escrever, pese que na sua condição de máquina (e não de Sistema) seu estado não se altere imediatamente em conformidade com o sistema (sensório-motor e psíquico) a que se acopla: o padrão QWERTY engendra um hábito – uma forma ou um ritmo – no sistema psíquico dos usuários através dos estados subjetivos que refletem o persistente estado 1 da máquina, um E1’. Noutras palavras, o estado fixo da máquina se reflete no hábito, por exemplo, de digitar sem olhar para as próprias mãos. Não raras vezes, contudo, sequências como esta acabam por tornar- se “drwmcias ,p,p rdys,” a partir de uma parcial falha do algoritmo de digitação (desloca-se a diagonal “se” do padrão para a diagonal imediatamente adjacente “dr” e o demais, e.g.). Se o computador fosse completamente responsivo a essa sequência markoviana, como parcialmente o é na autocorreção (que tanto prevê a cacografia quanto o lapsus digiti), ele adotaria um estado 2 com base no E1’ pressuposto ao input estocasticamente variado, e a percepção dessa correção automática, tal como a percepção do erro (que é de fato o E2 do output no ecrã), faria com que o usuário adotasse outra estratégia (ou retornasse à anterior, como é o caso). Assim, uma pergunta “mole” das materialidades da comunicação poderia principiar por um: como o formato do padrão QWERTY, acoplado ao sistema psíquico do usuário, oferece condições para a emergência de sentido? Já numa versão hard core: como desenvolver um algoritmo computacional que perceba de modo eficiente o padrão do ruído e reduza-o automaticamente, otimizando o canal e poupando com isso ao usuário o dispêndio da reescrita? Porém, ambas as perguntas parecem fazer pouco sentido no universo dos estudos literários, ao menos colocadas dessa forma, se não existe uma preocupação específica com o modelo do teclado para a compreensão da obra x ou com a prática contemporânea de usá-lo num programa tecnoestético,

99 N. Luhmann oferece uma distinção entre “loosely coupling” e “tight coupling” (LUHMANN, 2000 passim) que

vale uma menção: diferentemente do esquema de Sistemas e Estados que se espelham num arranjo rigoroso ou “tight,” a “acoplagem frouxa” é caracterizada pela múltipla possibilidade de condicionamentos respectivos, os estados não se sucedendo necessariamente através do feedback E1-E1’–E2-E2’, etc. Um exemplo disso é folhear um livro: não há nada na própria forma do livro que condicione a sucessão página a página, nenhuma exigência do artefato – senão apenas mais uma convenção narrativa – para que se obedeça uma sequência linear de leitura. É possível perceber essa flexibilidade do livro quando contrapomos o seu volume à bidimensionalidade do ecrã do computador ou do e-reader, desconsiderando, é claro, os elementos hipertextuais que, pelo menos em relação à flexibilização do manuseio, dariam “volume” ao espaço eletrônico. Gumbrecht refere-se a essa acoplagem loosely como típica da segunda ordem, aquela em que a auto-observação produz “novos elementos de influência recíproca,” tendendo à semantização do que está ser observado (GUMBRECHT, 2012b, p. 115).

por exemplo, como certas tendências pós-OuLiPianas.100 Essa é a razão pela qual a discussão proposta por Gumbrecht tendeu a casos mais gerais (como as funções do ritmo da linguagem, cf. supra I.3) e, na ausência de uma produção paradigmática de comentários a partir desses conceitos e categorias, simplesmente não vingou como modelo.101 Também há aqui um duplo problema: o da passagem da teoria materialista da comunicação à teoria materialista da literatura e, assim, da substância da comunicação à forma literária.

Há ainda outra forma de esclarecer o quadro em que Gumbrecht quer inscrever seu programa das materialidades. Muito próximas às considerações que o autor faz estão as observações de Wolfgang Iser sobre a história da teoria literária, as quais anteriormente comentamos através de Prado Coelho (cf. supra I.5.1). Para Iser (1979, 2006, p. 8 ss.), haveria um encadeamento teórico-metodológico entre os modelos estrutural, funcional e comunicacional do texto literário, com base em suas insuficiências particulares:

The historical sequence of the respective booms enjoyed by each of the concepts [estrutura, função, comunicação] has a certain element of inevitability, as the links in this chain are the deficiencies of the respective booms enjoyed by each of the concepts