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Fugindo ao tédio da relatividade: as insuficiências metodológicas

PARTE I. O Argumento: Para não esquecer o indizível

2. Hermenêutica, ou insuficiência epistemológica

2.2. Fugindo ao tédio da relatividade: as insuficiências metodológicas

Apesar de Gumbrecht não confessar haver um programa conforme o qual tenha desenvolvido suas reflexões (GUMBRECHT, 2005), é natural que ocorram algumas continuidades. No estudo da sua obra, nota-se sobretudo que a problemática da função e das feições do conhecimento se adensa em elaborações metodológicas. Como a Teoria nasce na condição de não ser evidente o que se quer dos estudos literários (GUMBRECHT, 2007), ela é tampouco capaz de legitimar a si própria, devendo então ratificar-se por meio de algum tipo de prática que lhe permita mensurar sua relação com o objeto e com sua finalidade. Ela precisa, portanto, de uma adequação progressiva, a qual, por seu turno, necessariamente reconfigurará

os postulados e hipóteses com que os estudos literários trabalham, não tanto na forma do acúmulo de conhecimento “novo” como na verificação de modelos e sua complementaridade. Uma metodologia correta viria suplementar os estudos literários com uma natureza científica. No final do texto publicado em 79, e.g., é possível perceber esse foco de Gumbrecht no instante mesmo em que faz uma ressalva à aplicabilidade de suas formulações:

No desenvolvimento do método, quase não podemos nos orientar ou por dados explícitos ou por estudos exemplares. Isso se deve ao fato de a estética da recepção e a ciência da literatura fundada na teoria da ação terem sido até hoje, mais freqüentemente [sic], objeto de debates fundamentais do que método de pesquisas concretas. O necessário desenvolvimento posterior de seus métodos, contudo, só poderá ser promovido pela aplicação dos primeiros projetos. (1979, p. 189)

Hoje não parece “evidente” a necessidade de desenvolver um “método de pesquisas concretas,” tal como talvez não o fosse antes dos anos 70 e 80. Nesse contexto, e mais precisamente para Gumbrecht, a “objetividade” da exigência pelo método é idêntica à obviedade do “interesse social” e, possivelmente, uma consequência direta do compromisso anteriormente assumido.40

Na sequência de uma observação tão séria sobre o próprio programa de pesquisa, Gumbrecht em 83 respondia a uma enquete lançada pelo periódico New Literary History (“Literary theory in the university: a survey”) sobre os estudos literários daqueles anos, similares à que o JLT faria décadas depois. À primeira questão, sobre quais são os objetivos e funções da Teoria Literária, Gumbrecht replica o seguinte: existe algo como literatura em torno do qual teorizar?

[I]n the present moment the main task of literary theory should not be to establish theories of literature but to think about the question – what the object (and the role) of our discipline ought to be, considering that we have now abandoned totality- concepts of history. (GUMBRECHT, 1983)

Não, não lhe parece que “literatura” seja mais do que uma construção social como outra

40 Um estudo largamente reputado sobre a relação entre as dimensões axiológica, ontológica, epistemológica e

metodológica da investigação científica pode ser encontrado em Paradigmatic controversies, contradictions and emerging confluences (GUBA; LINCOLN, 2005). No que essas definições de fato cooperam com as discussões que os humanistas deveriam propor, além do óbvio reconhecimento do caráter qualitativo irredutível à prática investigativa? Não muito. Se voltarmos à classificação de Habermas, publicada quase dez anos antes da proposta gumbrechtiana, encontraremos aí o interesse em produção de consenso, mediada pelo saber histórico- hermenêutico, característicos do saber e do objeto de estudo das Humanidades. Talvez importe notar, contudo, os vários usos do termo ontologia: uma ontologia formal diz respeito a determinado conjunto de coisas e suas propriedades; por “retorno da ontologia” normalmente se entende uma postura epistemológica realista, que atribui algum tipo de substância à realidade; ontologia heideggeriana é também uma forma específica de realismo; por fim, falar em “estatuto ontológico” de uma obra de arte, por exemplo, diz respeito ao problema da ontologia formal (o que são obras de arte, ou quais, e suas propriedades “intrínsecas”).

qualquer, e isso implica que a função da Teoria distancie-se ainda mais da obra literária do que na formulação de 1979. Aí está implicada uma lição da história disciplinar: se a fase pré-teórica dos estudos literários concebe a literatura como algo bom por si e, diante da perda de evidência do sistema literário, a Teoria busca elucidar, via conceitos, a relevância da literatura, a fase “pós-teórica” tem seu foco no estudo da literatura. Na obra de Gumbrecht, se o estudo da obra era secundário em relação à necessidade social da literatura, em 1983 é a própria “coisa literária” que não se pode associar a uma necessidade por si, já que seu pressuposto é histórico- social e, nessa medida, teoricamente evasivo. Uma vez em operação, porém, o olhar da Teoria deveria voltar-se às condições da disciplina ou, como o autor põe, deveria perguntar-se “what

the object (and the role) of our discipline ought to be, considering that we have now abandoned

totality-concepts of history” (1983. Ênfase nossa). Isto é, entendendo como o totality-concepts

of history a afirmação enfática do papel da humanística na construção social, talvez mesmo o

princípio ético que rege a participação institucional das Letras, como pensar a função do ensino de literatura, como recriar seu objeto sem aquela “ética filosófica” antes evidente?

Bastante menos seguro do papel social das Letras, dois programas surgem-lhe como essenciais para, como dissera, “redeterminar o campo e as tarefas que a crítica literária projeta no horizonte cultural” (1998a, p. 23): 1) o desenvolvimento de conceitos “normativos” para o uso não-acadêmico e fruitivo de textos numa futura sociedade do ócio; 2) a integração da competência hermenêutica dos estudos literários à disciplina da história e da sociologia interacionista (GUMBRECHT, 1983). Em parte, a primeira ideia retoma, de maneira atenuada, a sua “pragmática normativa,” enquanto a segunda – colocar o saber à disposição de outras disciplinas – ofereceria uma saída ao impasse da prática da teoria como indicado no texto de 79. Nos dois casos, o que secretamente era assegurado é que o índice de autonomia dos estudos literários só se sustentaria se o conhecimento e o método produzidos nesse campo pudessem colocar-se à disposição de outras áreas – a literatura não só conforme a tradição do Bildung, da formação espiritual do indivíduo burguês, mas como algo pertencente à dimensão do trabalho, da produção social.

Essas duas linhas programáticas não parecem responder, contudo, à suspensão do pressuposto ético – haveria algo mais ético do que obrigar-se à participação social, a procurar algo que é ainda relevante “para a sociedade inteira” (1979, p. 173)? Ou ratificar com um “nós” (“we have abandoned”) a crítica dos pressupostos de uma disciplina não é tomar partido por

dada ética?41 O que se recusa na afirmação paradoxal do abandono duma noção da história é a possibilidade mesma de tornar sua crítica algo mais do que “plausível.” Assim, não se respondia à aporia do dever do humanista na condição da impossibilidade do “ético” mas, com bastante menos condescendência, a seguinte questão: como proceder para justificar a sobrevivência da nossa disciplina quando se torna evidente seu caráter obsoleto?42 Com isso, começava-se a delinear, no cerne da ansiedade conceitual de Gumbrecht, a preocupação com a sofisticação metodológica per se, a qual não asseguraria tanto o a validade interna e a consistência de dado estudo de obra literária quanto a possibilidade de ajustar o campo a outros interesses. Esse é o motor da participação de Gumbrecht nos colóquios de Dubrovnik, como ele diz:

percebemos, lamentavelmente que os conceitos que conseguimos desenvolver para descrever os casos de não-emergência do sentido continuavam sendo os conceitos hermenêuticos. Este não foi o progresso esperado. (...) porque a questão que não tínhamos resolvido era a questão dos efeitos dos elementos materiais sobre o receptor. (...) Este paradigma de “produção de presença” [o que se desenvolve a partir das materialidades] já sugeriu três conseqüências [sic] para um novo tipo de historiografia. (2004a, p. 25. Nossa ênfase)

Embora o desenvolvimento do tema da materialidade faça-lhe algo próximo à Estética – quer como disciplina que reflete sobre Arte quer sobre a relação entre o sensório e a cognição – ao ocupar o hiato epistemológico entre percepção e experiência (1998c, p. 351, 2004b, p. 21,26), isso não indica nenhum privilégio ou compromisso com alguma noção dessa disciplina – por exemplo, o princípio de imanência, que ratifica noções da arte romântica, ou o de juízo de gosto, ou qualquer outro – nem se pode, tampouco, considerar a intenção de criticar a Teoria Literária precedente. O critério da utilidade aplicado aos estudos literários por meio da recusa da dimensão ética, enquanto doutrina, é que é decisivo para sua transformação em hard science. “Método de pesquisas concretas.”

O acertado nome de “Materialidades da Comunicação” implicava não apenas o estudo dos meios de comunicação mas essa necessidade de mover os estudos literários do seu tradicional âmbito acadêmico histórico-hermenêutico para o das disciplinas empírico- analíticas. O campo de estudos, que então nomeia não-hermenêutico, “caracteriza-se pela convergência no que diz respeito à problematização do ato interpretativo (...) a possibilidade de

41 Uma das formas dessa “totalidade” é, tipicamente, o estudo de literaturas nacionais e, no fundo, a própria

periodologização da Literatura, os quais tendem a ignorar diferenças sutis enquanto elegem critérios descritivos arbitrários, por vezes a fim de dar relevo à posição excêntrica de um autor eleito. Como conhecimento “acabado,” identificar traços gerais de um período é um exercício improfícuo, um teste da capacidade associativa.

tematizar o significante sem necessariamente associá-lo ao significado” (GUMBRECHT, 1998b, p. 147). A problematização, todavia, é antes um pressuposto desses estudos. A definição de Gumbrecht abarca todas aquelas disciplinas que se afastam do problema intensivo, imersivo, da interpretação literária – aquilo que diz que uma obra é sobre algo – e se aproxima duma relação extensiva, que procura lidar com a multidimensionalidade do objeto e não visa dar uma resposta final ao problema colocado pela sua carga semântica. Dessa definição, poderíamos inferir que as materialidades nascem como um tipo de pós-formalismo, a partir da dissociação do significante e do significado e de sua orientação como “poética do significante,” como investigação da lógica autônoma da materialidade. A distinção real dá-se com a introdução da discussão sobre a substância, que o estrito formalismo/estruturalismo de origem neokantiana43 não subscreveria. A transição de um quadro a outro, que é então da poética à estética, porém, é difícil: como conciliar a crítica das noções atinentes à prática acadêmica (interpretação, representação, etc.) à abordagem empírica dos meios?

Podemos dizer, retomando a De Man a oposição entre “estética” e “teoria,” que o pensamento de Gumbrecht ocupa não uma posição média entre a ratificação ideológica e uma instância crítica, mas uma terceira formação discursiva. Se um paradigma epistemológico se respalda em seus postulados e métodos, além, é claro, na própria necessidade social do objeto estudado, a questão é que, na deterioração do valor epistêmico desse objeto, o método tem de operar em conformidade com critérios estranhos ao campo, seja porque o conhecimento “correto” a ser obtido é outro que não o inicial seja porque o objetivo de conhecer é outro. Ele não é ideológico porque não tenta legitimar determinada concepção de literatura ao naturalizar a história ou a estética; ele não é crítico tout court porque sua intenção é, no fundo, acusar mesmo a crítica como parte ativa dessa deterioração epistêmica. Esse movimento, o reconhecimento da perda de evidência dos estudos literários, é da mesma natureza que a passagem da pergunta metafísica sobre “qual é o sentido” para a investigação materialista em torno de “como emerge o sentido,” com a qual os “critérios estranhos” (as Materialidades) cooperam também na renovação do interesse pelo objeto. (No fundo, embora sejam essas as perguntas, a passagem seria do Gumbrecht das competências cognitivas ao das possibilidades dos media.)

É o nascimento da preocupação com os media: o como do processo ganha relevo

43 Sobre isso, veja-se o já mencionado artigo “O modelo semiótico nos estudos literários” (DE BRITO; DURÃO,

2014). Para uma perspectiva discordante quanto à origem neokantiana do Estruturalismo, veja-se Jan Broekman, Structuralism: Moscow – Prague – Paris (1974).

conforme seu quê perde importância – a teoria não incide sobre o objeto mas sobre suas condições. Ao mesmo tempo, nos dois âmbitos, como o que se intenciona não é um conteúdo proposicional (ou sequer a reprodução desse conteúdo, viz. o ensino), a tônica deixa de recair sobre a legitimação da literatura como ciência para a sua legitimação social. A Materialität marca o apogeu e o declínio do Gumbrecht-que-faz-teoria. O princípio lógico da identidade conforme o qual dado signo é identificado a dado significado, ou tal fenômeno é explicado por tal teoria num processo de abstração e generalização, é secundarizado em relação à exploração de modelos funcionais, conforme um método (frouxamente) hipotético-dedutivo.44

Seen this way, the problem of the scholarly description of rhythmic language becomes a paradigmatic case of our general epistemology. (...) [Precisamente pela possibilidade de tematizar objetos materiais sem fazer referência à dimensão da infinidade de perspectivas do observador autorreflexivo, a “segunda ordem”], several phenomenological complexes such as rhythmic language have been included in the concept of “materialities of communication,” complexes in which the consensual zones of the first and second orders overlap. Other examples of those complexes are imagination, affects and violence. The inclusion of such newly constituted themes will oblige us to expand and differentiate the catalogue of our descriptive discourses. This could ultimately help alleviate the schism between the natural sciences and the humanities (GUMBRECHT; PFEIFFER, 1994, p. 182)

Constroem-se modelos a ver se funcionam. Mas então é preciso notar que essa adequação de modelos conceituais depende de um projeto maior: conforme se aplicam, o veredito sobre sua própria limitação impulsiona a diferenciação e complexificação de ideias.

Em seu primeiro artigo no volume Materialities of Communication (1994, p. 170–182)¸ o que Gumbrecht intenciona fazer é elucidar a dimensão do “ritmo” na poesia antes de ele ser capturado pelo discurso descritivo típico dos estudos literários, ou seja, interpretado como uma dimensão representativa ou semântica.45 Para fazê-lo, i.e., para fugir às restrições da semântica, ele recorre ao instrumental teórico da fenomenologia de Edmund Husserl, da linguística, da

44 “Frouxamente,” que implica a contingência irredutível da teoria literária precisamente por conta da dificuldade

em “verificar” determinada hipótese (MOOIJ, 1979, p. 131–132): 1) coloca-se um problema; 2) constrói-se um modelo teórico; 3) buscam-se consequências específicas; 4) testam-se hipóteses; 5) revisa-se a formulação, reajusta-se o modelo. A verificação é difícil porque muitas proposições teóricas ou são incomensuráveis umas com as outras ou não são de todo observáveis, e a imposição de coerência – se não for essa hipótese a testar – sobre teorias distintas pode ser ilegítima, porque inócua. Wolfgang Iser, em How to do Theory, salienta a íntima associação entre esse critério de validade e o problema do interesse nas humanidades (2006, p. 6).

45 Um procedimento algo enganoso. Certo é que a discussão sobre “forma significante,” “organicidade” e afins é

apenas um redobramento do paradigma comunicacional que adotamos, o privilégio do significado na epistemologia “metafísica” que é também constitutivo da função acadêmica. Não se pode inferir, porém, que a recusa desse plano discursivo produza uma descrição imune às fragilidades da “segunda ordem,” como Gumbrecht mais tarde concluiria. Isto é, embora próximos em natureza, um conceito não é idêntico a uma fórmula matemática ou modelo molecular, e qualquer sentido que “teoria” tenha no espaço interpretativo está ainda muito distante do laboratório. Conceitos têm sempre uma dimensão experiencial de que não se pode fazer rasura.

Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann, da biologia de Maturana e Varela, da sociologia de Alfred Schütz e de George Mead – um árduo procedimento de amálgama conceitual que vem no fundo desde seu período em Constança. Ao dizer, ao mesmo tempo, que algo é “paradigmático” e fazer sua tônica recair no “alívio do cisma entre as ciências e as humanidades,” não sendo essa uma consequência acidental, Gumbrecht parece assumir que a metodologia apropriada para o novo quadro epistêmico é aquela que procura soluções conceituais ad hoc a fim de reelaborar problemas. Construir arcabouços teóricos coerentes e testá-los empiricamente, sua aposta, deve engendrar perspectivas diferenciadas e mais ricas; doutra forma, o conhecimento humanístico parece-lhe tornar-se num meio cuja finalidade é reproduzir-se indefinidamente. “It is precisely,” comenta, “on behalf of this function [de prover modelos para variação] that such theories, which appear at first glance as counterintuitive,

have a greater chance of making a difference than those that simply satisfy commonsense expectations” (GUMBRECHT; PFEIFFER, 1994, p. 390). Vorwärts, Gumbrecht! A ideia

acompanha-lhe anos a fio:

That we can analyze riskful topics thanks to the tower’s [trata-se da metáfora da torre de marfim] distance from society, and that we can work them through under conditions of low time pressure, means that, rather than being obliged to reduce their complexity (as we invariably have to do in everyday situations because we have to come up with quick solutions), we may expose ourselves to their complexity and even increase it. This is where “lived experience,” the second of the two convergences between our conception of aesthetics and our conception of history comes in. (GUMBRECHT, 2004b, p. 127)

Uma ratio metodológica dessa natureza, que é “subversiva” sem intencionar uma “subversão dos poderes,” mas muito ao contrário do que De Man quereria com a autorrevolução teórica, implica que o estudo é bom conforme ele, em seus próprios termos, fracasse.46 Arrisca-se, perde-se, refaz-se a aposta. A pergunta sobre como sobreviver à obsolescência transforma-se na intenção não de simplesmente identificar mas sobretudo de produzir diferença no discurso literário. Esse é o análogon metodológico daquilo que Gumbrecht mais tarde dirá “pensamento de risco.”

46 À partida é difícil pensar, como Catherine Malabou expressaria, se se trata duma “flexibilidade” cúmplice dos

imperativos do sistema sócio-econômico, segundo a qual as disciplinas de Humanas seriam mero ratificador do mundo, ou se duma “plasticidade” capaz tanto de integração quanto de desagregação, sendo àquelas dada a possibilidade de construir um novo horizonte normativo (apud HAYLES, 2012, p. 188).