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Novos Materialismos, Morte da Linguística, ou Da insistência no Referente

PARTE I. O Argumento: Para não esquecer o indizível

5. Elementos para uma epistemologia materialista

5.2. Novos Materialismos, Morte da Linguística, ou Da insistência no Referente

O século XX assistiu, em diversos graus de arrivismo e também de probidade, a uma série de mortes, de pós- e des-, todos uma forma de demarcar a inocência do passado em relação à nossa não menos dogmática perspicácia. Uma virada linguística inicial proporia, na linha de Wittgenstein, que os problemas a que se dedicam a filosofia e as humanidades não passam de contradições aparentes que se dão no plano linguístico; dela aprendemos, consistentemente, sobretudo a inconsistência de nossos catálogos descritivos ou, senão, que algumas de nossas questões são impossíveis porque são falsas. Já uma virada cultural tornaria nosso olhar à participação social, à atuação de agentes no campo social ou simbólico, o que de fato constitui num ganho em relação ao problema de explicar o diferencial da experiência. No entanto, não é difícil perceber que as discussões sobre a materialidade permaneceram largamente sobredeterminadas, quando não foram simplesmente negligenciadas, pelos compromissos epistemológicos que tais posições assumem em relação à tarefa de autorreflexão que caracteriza o saber humanístico, sobretudo ao situarem o problema de sua validade como sendo local e não geral. Com efeito, por conta da inconsistência linguística e da divergência cultural, muito do que poderia ser discutido como observação da dimensão material da existência permaneceu

aprisionado a um relativismo instituído como a priori. Generaliza-se o abandono das asserções universalmente válidas em nome das particularmente válidas como forma de normalizar o saber. O que uma epistemologia da não-identidade sugeriria, em contrapartida, é que a validade de um saber não é comensurável com a estabilidade discursiva – que o pluralismo conquista fazendo rasura dos pontos de honra de quaisquer discursos teóricos – mas com sua potencialidade transformativa. É preciso absolutizar a relatividade na forma do “não há nada senão,” isto é, o que é relativo se põe em relação a algo que não pode ser relativizado. Explicar, por exemplo, que uma determinada noção de materialidade funciona em tal quadro não é suficiente, sendo talvez mais importante explicar em relação a que discurso ela é disfuncional e por que razão deve manter-se como tal se se quiser dela que seja mais que um dispositivo descritivo no interior de um sistema autorreferencial. Todavia, a ideia da harmonia de uma multiplicidade de concepções teóricas fazendo surgir uma multiplicidade de sentidos (e experiências?) da obra literária, junto à rasura do interesse, apaga as contradições inerentes aos artefatos culturais e exonera o crítico de um juízo enfático sobre a relação de uma obra com seu próprio tempo.

Essa postura epistemológica – pelo menos no tocante à libertação da materialidade de seus encargos semânticos e não tanto ao problema do pluralismo – aproxima a investigação materialista nos estudos literários aos New Materialisms (COOLE; FROST, 2010). O que é comum a esses materialismos é a recusa do preconceito “cartesiano” em relação à res extensa, que a toma por discreta, uniforme e passiva, e desse modo sujeita aos procedimentos de análise, quantificação e controle. Em lugar dessa compreensão, haveria um revival do hilozoísmo, da compreensão da matéria como gerativa, emergente e selvagem. Fala-se de um “materialismo encantado,” do “inorgânico vivo,” da matéria-devir contra a matéria-ser. A apresentação que Diana Coole e Samantha Frost propõem (2010, p. 1 ss.) dos ensaios reunidos nesse volume não é senão o que aqui apresentamos, ora esposando a física quântica ora a virada cultural dos anos 70, ora alguma biologia, a fenomenologia de Merleau-Ponty ou uma compreensão à la Derrida da matéria como alteridade radical. À la Derrida é, aliás, uma proposta que chama bastante atenção, a de um “Non-dialectical materialism”. Uma das teses lançadas por Pheng Cheah, e a mais curiosa para nossas considerações, é a seguinte: se a matéria não for concebida como heterogeneidade radical, como exterioridade absoluta, recairemos no idealismo e no problema do significado transcendental – em suma, só há logocentrismo (porque a cognição é necessariamente lógica) ou salto para a matéria alógica e inominável. Será? Paradoxalmente, tal esforço de banir a negatividade inerente à matéria em sua compreensão dialética leva a um

noção puramente heurística de materialidade, uma materialidade que não é matéria para nada que exista através de categorias como sujeito e objeto, dentro e fora, presença e assim por diante. Citemo-lo:

Under conditions of radical finitude, where we cannot refer to an infinite presence that can give us time, time can only be thought as the gift of an absolute other that is unpresentable but that leaves a trace in the order of presence even as the phenomenalization, appearance, or presentation of the other is also its violation. Similarly, the very event-ness of an event consists in its not being identified, recognized, or anticipated in advance. Something is not an event if we can tell when and from where it is or will be coming. Hence, the event and the gift can only be if they are entirely other, if they come from the other. They must therefore be understood through the figure of the impossible, that which we cannot imagine or figure within the realm of the possible. They require the thought of an inappropriable other that must necessarily remain unappropriated. (CHEAH in COOLE; FROST, 2010, p. 75,76)

Materialismo ou obscurantismo idealista? Essa radicalização da matéria em relação ao espírito simplesmente atira a matéria para algum inferno idealista, como já o era o deus absconditus das tradições apofáticas da teologia e do racionalismo moderno. A ideia de “evento,” ou contingência, pese que a formulação nos seja mais do que familiar, investe-se de toda a aura da divina revelação, matéria aí sendo o cerne dum messianismo qualquer, de um reino “lá fora” que nos agraciaria com o inexperienciável. O resultado é outro que não o nosso. Cheah repete a dicotomia entre a representação logocêntrica da coisa e a coisa-em-si posta do avesso como entidade inacessível, sem considerar que qualquer representação só se produz dentro do mundo de que coparticipam a coisa e o sujeito – que a referência é já um referente mundano.

Não é preciso dizer que essa ideia de que a negatividade dialética harmonizaria a matéria em conformidade com a Ideia é uma leitura muito pobre do Idealismo Alemão pós-kantiano. Cheah lê Hegel como se a Fenomenologia fosse uma inocente ontologia. Discussões recentes, como propostas por Markus Gabriel em Mitologia Loucura e Riso (2012) e Slavoj Žižek, a despeito do descrédito que seu show-off lhe causa no meio acadêmico, indicam que a anterioridade idealista da Ideia em relação à matéria não representa o primado de leis sobre um mundo progredindo para a perfeição mas o esforço de romper desde dentro as limitações kantianas, que se põem como um problema do conhecimento (ŽIŽEK; GABRIEL, 2012, p. 13

passim). A Fenomenologia é uma crítica do conhecimento filosófico e por isso só se refere às

coisas da perspectiva da representação, é antes um modo de pensar as aparições do espírito no devir do ser, de pensar a improbabilidade de algo acontecer no “nada” que constituiria a existência predicada como idêntica a si própria. A “verdade especulativa” é o que se apresenta

no hiato entre o sujeito e o predicado proposicional (cf. supra nota de rodapé no. 82), e sem a compreensão adequada do que seria a filosofia da linguagem hegeliana não se pode senão fazer de Hegel a figura totalitária que é hoje corriqueira entre os detratores da dialética, de resto o senso comum filosófico. Dialética, dialexeis, é por si só algo que acontece através da linguagem, e nesse sentido a verdade é aquilo que figura nos limites do fracasso denotativo e lógico. O movimento do Espírito hegeliano é perfeitamente concretizado pelo próprio Cheah: porque a epistemologia é já um construto, um “dentro” da camisa-de-força da linguagem, a primeira coisa a fazer à matéria ontológica é atirar-lhe para fora – lá fora a matéria idêntica a si própria em sua infinitude de predicações (im)possíveis, cá dentro nós não-idênticos a nós próprios (graças à matéria!) e exatamente por isso incapazes de sair. Mas é também assim que o Ser hegeliano é idêntico a si mesmo e, por isso, é morto. Ser é Nada (e, contudo, alguma coisa se passa). A negatividade dialética da matéria é negatividade em relação ao postulado espiritual dessa identidade, ou seja, a simples refração da ontologia à predicação epistemológica.

Com isso, gostaríamos de fazer uma aposta conceitual: um novo materialismo não precisa simplesmente confiar numa negação abstrata de uma concepção dialética de matéria, substituí-la numa inocência de segunda ordem por uma versão positiva atirada num outro espaço borgesiano. Isso seria, no máximo, uma metáfora contra a qual mensurar certas proposições excessivamente enfáticas, só operaria num modo dialético ou parabásico (cf. infra II.2.2). Não se trata, tampouco, de propor uma “dialética (em sua versão) negativa,” quando a ideia é a de uma “dialética (que não pode ser senão) negativa.”86 Todo artefato, como se diz, se opõe a si. A noção žižekiana de paralaxe é interessante para pensar um materialismo não sobredeterminado pela representação (e com uma afinidade ‘patafísica irrefutável):

Materialism is not the direct assertion of my inclusion in objective reality (such an assertion presupposes that my position of enunciation is that of an external observer who can grasp the whole of reality); rather, it resides in the reflexive twist by means of which I myself am included in the picture constituted by me – it is this reflexive short circuit, this necessary redoubling of myself as standing both outside and inside my picture, that bears witness to my “material existence.” Materialism means that the reality I see is never “whole” – not because a large part of it eludes me, but because it contains a stain, a blind spot, which indicates my inclusion in it. (2006, p. 17)

86 Assim, Adorno é só um pouco mais hegeliano que os hegelianos de seu tempo. A (sua) negatividade dialética

implica considerar a verdade especulativa da experiência e recusar a redução proposicional, não mais do que esse evento discursivo. Dialexeis não é logocentrismo mas dissoilogoi, dislogismo através e na linguagem. Quanto a isso, Adorno encerra sua Introdução (sobre a Experiência Espiritual Integral) à Dialética Negativa com uma reflexão sobre a importância da retórica (ADORNO, 2009, p. 55–56) para o pensamento da verdade.

Portanto, materialismo não é uma questão de passar de uma representação exterior a alguma forma de incidência sobre o real – ou de alcançar o não conceitual com o conceito – mas de reconhecer que, se a representação surge do real, ela arrasta consigo um excedente de materialidade que não é solúvel na dimensão das representações – é reconhecer o não conceitual do próprio conceito como precondição de alcançá-lo. A primeira contribuição de Žižek, aqui, é a inclusão da subjetividade na representação. O excedente material da experiência, se se quiser falar dessa forma da “percepção” de Gumbrecht, não é algo que simplesmente “ficou de fora” da representação, mas aquilo que na representação mesma impede seu fechamento e que provoca o sujeito, como diria esse autor, “as if from inside.” A segunda contribuição de Žižek é essa dialética: como a linguagem não é capaz de suster-se, como a representação, o Uno, etc., são menos do que parecem ser, o que aparece na aparição da linguagem – na linguagem de Gumbrecht, a Presença (cf. supra I.2.1) – é o real inassimilável às configurações de sentido que medeiam a experiência social do sujeito. Uma tal concepção materialista atribuiria à estética não somente uma relevância epistemológica (cf. supra I.2.3), no sentido de permitir a constatação de tais e tais aspectos sociais e mecanismos cognitivos, mas crítica, ao sugerir coordenadas mundanas da experiência literária: em quê, por quê e como a literatura toma parte no mundo – e como transformá-lo.