• Nenhum resultado encontrado

PARTE I. O Argumento: Para não esquecer o indizível

1. Crise versus fim da teoria

1.5. Fim da teoria? Não, obrigado!

Se a Teoria, como De Man diz, consiste numa resistência autorreflexiva perenemente em marcha, nada mais é natural do que propor, ao inverso, que o único gesto decisivo seria dar cabo do movimento, recusando até mesmo um entusiasmo crítico para as humanidades e os estudos literários (GUMBRECHT, 2004b, p. 166 ss.). Gumbrecht refere-se a isso usando a bem pouco neutra expressão “Gelassenheit.”29 Esse ideal de passividade, revogando a ética da “mobilização geral” – Adorno diria “sociedade socializada” (ADORNO, 2009, p. 263) para se

26 A formulação de Adorno, axiomática para uma estética crítica, seria a de que “[a] identidade estética deve

defender o não-idêntico que a compulsão à identidade oprime na realidade.” (ADORNO, 1982)

27 Speculative Computing Laboratory. O homônimo livro de Drucker (2009b) retrata alguns dos projetos. 28 Applied Research on Patacriticism. Veja-se Drucker (2009b) e sobretudo McGann (2007; 2009).

29 Gelassenheit é a palavra semiteológica de Martin Heidegger (1889—1976) para a devida postura do Ente em

relação ao Ser, ou daquilo que existe em relação à própria condição de existência. Sobre a Gelassenheit, e oferecendo uma luz quanto ao título desta seção, conferir Žižek (2006, p. 278–288, 2012, p. 896–903).

referir ao caráter autorreflexivo das ações e projeções dos sujeitos no espaço social – que se introjeta na forma da crítica, revelaria e consolidaria um desejo de coisidade, de uma imediatidade substancial na relação do sujeito com o mundo; é isso que se implica em seu “fim da teoria” (2007). Mas haverá realmente razão para “ficar quieto um momento”?30

É preciso rever o quadro que elaboramos: a crise dos estudos literários é um complexo que se estabelece na lacuna entre academia e sociedade (cf. supra I.1.1), indo desde o problema histórico de como localizar o conhecimento das Letras no quadro maior das humanidades (cf.

supra I.1.2) à dificuldade de se estabelecer uma metodologia adequada ao evasivo objeto de

estudo (cf. supra I.1.3), o que se liga ao problema de como a teoria se relaciona com o mundo para além do confinamento epistemológico, sua forma de práxis (cf. supra I.1.4). O que é sintomático na crítica de Perloff (cf. supra I.1.4), e também discutido por Vincent Leitch em seu relato pessoal em Literary Criticism in 21st Century (2014, cf. “Antitheory”), é que estética ressurge como preocupação com uma função cultural irredutível quer à academia quer às expectativas sociais. A hipótese com que trabalhamos é a de que a emergência de novos paradigmas não se deve unicamente a um avanço da “ciência do texto” como tal, i.e., da sofisticação do conhecimento em relação a um objeto que se deve deter de maneira segura, mas da necessidade de refinar esses conhecimentos como resposta à generalizada insatisfação do público com a tradição humanística, seja ou não “teórica.” O mais importante é pensar o quão “extrínseca” é a crítica que então se faz à teoria, isto é, a introdução de modelos não se pautando numa reconfiguração imanente às suas categorias em sentido reto, mas em detrimento destas.

Não se trata de maquiar um cadáver (o da teoria) com algum novo tipo de verdade mas de reconhecer, na era da obsolescência de um sentido “alto” (ou, mais precisamente, “acadêmico”) de cultura, a necessária transição por que os estudos literários têm de passar, sem que isso seja simplesmente tomado como uma obviedade. Por outro lado, aquilo que se espera é que essas transformações ocorram em função de uma necessidade imanente e não por remissão imediata – ou conforme o diktat dos mecenatos – ao quadro sócio-histórico ou político-institucional em que se inserem; do contrário, mesmo a “desinstrumentalização” forçada constituiria pouco mais que um redobramento ideológico. A única forma de sustentar com rigor essas transformações é construir sua objetividade: que a crise seja não mera

30 A crítica de Gumbrecht, no fundo, deveria orientar-se contra as regras de produtividade acadêmica – a máquina

institucional – legitimadas pela ideologia do texto (DURÃO, 2011b). Em nossa leitura, porém, a proposta sintomatiza não a inesgotabilidade do problema literário (o que afinal poderia fazer tabula rasa de todas as predicações) mas a monotonia do mundo administrado, o fato de o nivelamento vir antes de qualquer predicação, como consequência do construto teórico empregue. Gelassenheit não é simples despolitização.

consequência de uma ética mal transportada para a teoria (a acusação normalmente feita aos

studies), mas que essa exterioridade seja reivindicada através e mesmo contra a teoria (contra

sua obsessão pela imanência), a partir, sim, de uma posição suscitada pelo seu objeto. Porque não poderíamos falar de um “fim da teoria” promovido desde fora sem cair na reversal demaniana de que essa resistência será definitivamente confiscada pelo olhar teórico (porque o discurso acadêmico parece alimentar-se de arrivismos), ser-nos-ia mais proveitoso defender que o sistema de contradições da teoria não pode abrir à “universalidade” indefinida mas precisa, se não quiser confessar o idealismo abstrato de suas oposições, recusar-se a si próprio por mor daquilo que tenciona alcançar31: a teoria é literária se se limita com o uso da literatura. Assim, é importante discutir o interesse como elemento irredutível da produção de conhecimento, não sendo acidental na discussão sobre uma “crise de legitimação” dos estudos literários. Com efeito, qualquer acusação das insuficiências epistemológicas ou metodológicas se deve a certa imagem normativa, senão interna ao campo ou predicável aos objetos, ao menos referente à função social da academia. Não é possível escapar à teleologia intrínseca à ferramenta nem à teleologia da função postulada para a atividade de produção do saber. Como indicamos, o interesse surge como constitutivo tanto do que chamamos de problema epistemológico (grosso modo, o “quê” do conhecimento), como do metodológico (seu “como”), bem como da pedagogia ou da relação à exterioridade (sua função e seu nexo social imediato).

Podemos seguir Habermas (2009) para pensarmos o sentido dessas recentes reivindicações (ou imprecações) em relação às humanidades e à teoria. Habermas produz uma tipologia das ciências tomando como critério, além da natureza do saber produzido, o interesse cognitivo que lhe é associado. Nesse quadro, em contrapartida ao saber técnico do método empírico-analítico das ciências, as ciências humanas tradicionalmente constituir-se-iam por um interesse prático ligado ao método “histórico-hermenêutico,” exercido não pela “observação” e pela “comprovação” mas pela “interpretação de textos” e pelo “consenso dos agentes,” suas dimensões sendo a linguagem e a cultura (HABERMAS, 2009, p. 137–140). A diferença entre ambos os métodos é ao mesmo tempo sua correspondência estrutural, grosso modo causada pelo vínculo pré-científico entre a atitude teórica e a suposição ontológica, que assegura o

31 Essa é a leitura que pretendemos fazer de Gumbrecht (2004b); o que nele rejeitamos é que empregue conceitos

sob a prerrogativa do que lhes é ontologicamente irredutível: consideramos que aquilo que é irredutível ao conceito, especialmente no tocante ao problema do literário, é ele mesmo produzido como sua contraparte e retroativamente posto; algo surge como estando fora da linguagem apenas porque, mirabile dictu, a linguagem é corroída desde dentro. Em verdade, em verdade, a linguagem arrasta consigo todo o caráter mundano da experiência, tome-lhe o enunciado, ou não, por “referente.” Quanto a isso, cf. Žižek (2012, p. 695–702).

devido enquadramento do objeto ao substituir o sujeito do conhecimento pelas prescrições metodológicas,32 sc., a formalização obliterando a autorreflexão crítica. Como situar, então, o interesse específico que atravessa os autores que viemos acompanhando senão como uma tomada de partido por uma crítica radical do quadro? Habermas discute ainda um terceiro saber, que se caracteriza por seu método crítico e sua natureza emancipatória, atuando na dimensão em que conhecimento e interesse coincidem – será “método” quando não quer seguir simplesmente o protocolo? De qualquer maneira, não será esse o espaço que a estética e a história vêm hoje ocupar? Doutro modo, o que podem materialismos que tematizem matéria e materialidade como objeto a um só tempo natural, cultural e social?

O problema a ser desenvolvido, de qualquer modo, não é a da quietude ingênua a que nos convida a “coisidade” da literatura. Fosse somente isso, o trabalho por conceitualizá-lo seria tão despropositado quanto a imagem projetada sobre a prática da teoria. A questão não é os estudos literários carregarem a cicatriz de uma crise geral – não havendo, portanto, uma particular gravidade –, mas precisamente todas as crises surgirem como respostas a uma pergunta que ainda não foi elaborada em seus devidos termos, e que só pode sê-lo à medida que a “crise” se desdobra. A proliferação de discursos teóricos é um epifenômeno e, como parecem pressentir alguns, sua celebração abstrata funciona como estratégia de ocultação, de neutralização de uma necessidade concreta relativa aos meios e práticas da literatura, de interesses que se reconfiguram em torno (e em função, e contra) as limitações do conhecimento discursivo. A aporia dominante – e que se reflete no que a theory demaniana tem do trágico e do demoníaco – é que sua crítica urgente, na medida em que toma parte do presente estado de coisas, não implicaria senão um prolongamento dessa neutralização do que a literatura, mesmo a produzida no passado, ainda pode ser. O que pela crítica mata, pela crítica morre. Não obstante, se se pode dizer que a Teoria, qua forma mental hermenêutica, arrasta para si e resolve o mundo dentro de seu sistema de coerência – mesmo que essa coerência seja a da negatividade em relação a si mesma –, a esperança subjacente à sua crítica é a possibilidade de abrir-se a uma exterioridade “que não se mostraria mais hostil.”