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Reelaborando a dimensão performativa dos estudos literários

PARTE I. O Argumento: Para não esquecer o indizível

4. Materialismos, Poética e Crítica

4.2. Reelaborando a dimensão performativa dos estudos literários

A forma da proposição não é adequada para expressar verdades especulativas. G. W. F. Hegel

Experiência, mais acima dissemos (cf. supra I.2.3), implica uma passagem. Uma

71 Mais precisamente contra a diluição da teoria e sua hipóstase. A questão ingardeniana não era uma obra

ontologicamente apresentar carências, já que as lacunas eram fenomenais, respeitantes à constituição do sentido pela leitura (BORDINI, 1990, p. 91 ss.). Todavia, a meia-volta aí intencionada implica a obsolescência do programa: não mirar os gaps em que o leitor pode inscrever o seu sentido, mas precisamente aquilo que, na escrita, escapa e que resiste à configuração semântica, aquilo que ainda não é, do ângulo fenomenológico, linguagem.

72 A versão filosófica da tese é a do excedente material do mundo sobre a inteligência humana, donde a necessidade

de impor limites e reduzir o mundo a leis, etc., de explicá-lo em conformidade com um aparato mínimo. Não será o caso da história da teoria literária, o esforço de reduzir a experiência a questões de semântica e forma?

passagem, portanto, que se dá num determinado meio. Embora a síntese de passagem a que se refere Lyotard aluda à experiência do psicanalista, talvez a mesma experiência seja tipificada pela estética: um efeito de memória que perlabora uma inscrição que não era visível.73 A pergunta que Lyotard fazia era a seguinte: a tecnologia dos novos media abriria para esse tipo de performance cognitiva, permitiria o surgimento da inscrição ou a reprimiria? Essa pergunta é importante porque conjuga a nossa ideia de diferencial a um contexto tecnológico, como dissemos. Também parece ter ficado clara a associação da materialidade ao problema cognitivo, seja como prius ou emergente. Mesmo em Gumbrecht, no esforço de purgar o conceito e afastá-lo do habitus semântico, parece estabelecido que a materialidade entra na percepção como espaço de uma performance (a ser realizada pelo observador de segunda- ordem, o que opera as tais distinções posteriores). O nosso tema aqui, então, se transforma no seguinte: o aparato conceitual acadêmico, teórico-analítico, poderia abrir-se para a não- identidade, sem forçá-la, sem recobri-la de uma camada semântica? Marjorie Perloff, como indicamos (cf. supra I.4.1), insistiria na tendência à hipóstase e à reificação da teoria. Contudo, essa está longe de ser a opinião dos demais autores que apresentamos.

Já dissemos que McGann e Drucker desenvolveram ferramentas para testar uma série de hipóteses com relação ao problema dos diferenciais, das inflexões, da interpretação e dos novos media. Se a resposta à nossa pergunta parece simplesmente dada pelo que já apresentamos (cf. supra I.3.1), não o é. O programa de McGann, embora tenha desde o início a intenção de recobrar o passado em seu caráter de passado, propunha originalmente um exercício escolar de levantamento bibliográfico e pesquisa histórica (MCGANN, 1991, p. 39 ss) – algo que só pode ser pontualmente praticado diante das exigências didáticas mobilizadas pela atual programação curricular.74 Quanta bibliografia seria necessária, perguntemo-nos, para dar um simples curso, mas um em que se levantassem questões relevantes, sobre Camões? Ou

73 Sobre a noção de perlaboração, acreditamos que ela se possa referir também (sendo aí mesmo uma reelaboração)

à categoria do trabalho na Teoria Crítica. Também a noção de experiência como uma forma de mediação que abre para o não-intencional foi um tema comum a Theodor Adorno e a Walter Benjamin. Sobre o mais, discutimos na segunda parte do trabalho (cf. infra II.1.2.1) a anedota que Benjamin emprega para opor experiência e informação (BENJAMIN, 1985, p. 114–119), equivalentes respectivamente à passagem e à síntese de acesso. No ensaio “Pequenas Crises”, embora a experiência a que Gumbrecht se refira passe longe da ideia de uma subjetividade “forte,” que labore a passagem, ela tem por base a mesma ideia de aparição não-intencional ou excepcional de algo (GUMBRECHT, 2006).

74 Vejam-se os ensaios de Aguiar e Silva sobre o ensino de literatura (2010, p. 207 ss.). Embora aí o autor se refira

ao ensino de literatura na escola, invectivando contra a quantidade de obras em detrimento da qualidade do contato dos alunos, suas observações têm uma clara implicação para o ensino de literatura no ensino superior. A tarefa de formar professores com largo conhecimento dos períodos literários, de que se incumbe a universidade em relação aos programas de ensino da escola secundária, se associa ao problema do que está propriamente sendo ensinado.

o mesmo não seria válido, ainda, para um autor menor como António Feliciano de Castilho? Ou mais recente, como Herberto Helder?

The social text, the praxis of theory, and the editorial horizon of interpretation: although each of these (interrelated) ideas can and should be argued in a study like this, they require a clear and straightforward curricular methodology if they are to establish for themselves something more than a passing interest (…) The rule is that the study group will provide the class with a detailed analytical description of (a) a history of the texts that are to be taken up in class, and (b) a history of the receptions of those texts. (1991, p. 40)

O exercício de grupo ilustra antes a possibilidade e a necessidade de ir além das reduções metodológicas que caracterizam os métodos da análise imanente. McGann não propõe, aliás, mais do que uma varredura casual que pudesse lançar luz sobre questões que não se põem no ambiente das leituras ditas teóricas, sejam “gramaticais” sejam “retóricas.” Mas como modelo, porém, havemos de nos perguntar se é interessante, além disso. Há uma razão pela qual a interpretação imanente triunfou sobre a investigação histórica e é uma aposta muito baixa, com efeito, reportar-lhe tão só à facilidade decorrente da capitulação da complexidade sócio- histórica e subjetiva da experiência. Se uma larga erudição não é cobrada para apreensão de meio bocado de categorias analíticas, isso só serve ao propósito das más leituras, que se reproduzem em conformidade com a indústria da academia. Existe, no entanto, um efeito de encanto numa interpretação imanente bem executada, numa crítica que faz um recurso criativo aos conceitos, nas incursões hipotéticas numa direção nova, na reelaboração de uma questão. Há um inequívoco efeito de surpresa que as ferramentas e métodos interpretativos podem provocar, tal como a McGann a historicidade aparecia contra o desbotamento das categorias interpretativas. Surge assim um tema no horizonte da interpretação, seu aspecto performativo – o que já é mais do que a interpretação.

O problema, aqui: a institucionalização do formato discursivo da “análise,” embora introduza nas práticas acadêmicas algo desse prazer performativo, ao mesmo tempo o reduz aos modelos paradigmáticos. Não só os casos de ventriloquismo, mas os poderes da theory em muito se limitam a achados espirituais, como diria Gumbrecht. Já o problema, de que falamos (cf. supra I.3.1), da historiografia é que a ênfase a uma certa concepção dryasdustiana de história talvez apague o prazer de produzir saber, de torná-lo comensurável com o presente. A solução de McGann e Drucker, e já apresentada, se move de uma compreensão primeiramente histórica e então cognitivista de leitura à ‘patacrítica, passando pela deformance:

First, imaginative work has an elective affinity with performance: It is organized as rhetoric and poiesis rather than as exposition and information-transmission. Because this is so, it always lies open to deformative moves. (…) A deformative procedure puts the reader in a highly idiosyncratic relation to the work. This consequence could scarcely be avoided, since deformance sends both reader and work through the textual looking glass. (MCGANN, 2001, p. 113, 116)

O reconhecimento de que a performance interpretativa é sempre já deformativa em relação às possibilidades de engajamento experiencial com as obras leva à ideia, bastante intuitiva, de extrapolar o processo através de uma controlada e rigorosa refuncionalização dos conceitos e procedimentos. Quais conceitos? Quais procedimentos? Aqueles que forem mais convenientes para elucidar a dimensão performativa, para produzir complexidade e enriquecer o contato com o universo literário, aquilo que puder causar algum estranhamento e, numa reflexão segunda, desencadear a reelaboração da obra em causa. Em Radiant Textuality (2001), McGann propõe a associação de práticas interpretativas à literal deformação – reorganização, subtração, modificação e adição de versos, elementos, letras e afins – das obras literárias. A deformance textual, aí, torna-se uma ferramenta heurística. Numa formulação mais radical, Drucker estenografará o programa associado ao “demônio ‘patacrítico,” a figura especulativo- interventiva que instancia o ato interpretativo75:

Trialectics – fragments of Lucretius – 57 B.C. a discourse intervened within a dynamic field of potentialities – a treatise on the third term, work constituted as a relation of subject, object, interpretation-n-dimensional arising – shift from metalogic to meta- rhetoric in a discourse of non–self-identicality – entangled condition of the word – algorithmic unfolding of production within constraints, speculative methods and quantum poetics – autopoiesis and codependent arising – deformance as production, constitutive method – (DRUCKER, 2009b, p. 123)

Para fazer algum sentido do fragmento, escrito em 2002: trialética, não “dialética” em sentido vulgar, porque o que interessa é a potencialidade associada ao terceiro excluído.76 A

75 Alusão ao demônio de Maxwell, que operaria no nível microfísico uma reversão do postulado observacional da

2ª Lei da Termodinâmica, ou, na linguagem da Teoria da Informação, um fator neguentrópico. Na slang do Caos, ou erisiana, escalonamento. O que está em causa aqui é mais a improbabilidade do fenômeno que propriamente o problema ontológico da informação. Outra forma de pensar tanto esse como o demônio de Drucker é imaginar uma figura que ocupe exatamente a dissimetria entre a dimensão ontológica e a epistemológica (cf. nota de rodapé no. 48).

76 Importa recordar as leis do pensamento: o princípio da identidade (o que é, é), o princípio da não-contradição (o

que é não pode não ser), o terceiro excluído (ou algo é ou não é, não há médio termo). Uma “trialética” não é necessária, contudo, diante duma noção forte de dialética, que é a da não-identidade constitutiva de uma única e mesma coisa (“se aquilo que é, é, ele não é,” vice-versa; ou seja, é o princípio dos terceiros incluídos). Na formulação de McGann: “A é igual a A se e somente se A não é igual a A,” i.e., se inclui o terceiro; esse lhe parece o ruído constitutivo das obras literárias (MCGANN, 2001, p. 175). Pensadores tão diversos como N. Luhmann e T. W. Adorno enfatizam a dependência da identidade lógica em relação à não-identidade; Luhmann faz uma recapitulação de certas formas contemporâneas da noção: “The excluded third, or the ‘interpretant’ in the sense of

indeterminação do clinamen de Lucrécio como modelo de um campo dinâmico de possibilidades. A obra deve ser reconcebida como a própria relação entre o sujeito e a obra, daí à n-dimensionalidade. Deve-se postular uma não-identidade anterior, baseada na palavra como condição constitutiva da obra (uma palavra é sempre já saturada de realidade); a metodologia deve visar a potencialidade da obra, de maneira algorítmica, especulativa e interventiva. A autopoiesis e a codependência, a autoconstituição e a indissolubilidade da relação texto-leitor, devem ser visualizadas como condição da crítica. Deformance não é só o reconhecimento do fazer interpretativo do sujeito, mas um modo de produzir algo – e assim se coroa o afastamento de uma compreensão estritamente semiológica e constatativa da obra literária.

Em 2002, passada a década desde suas primeiras reflexões sobre materialidade, Gumbrecht lançou um livrinho discutindo a dimensão oculta de certas práticas materiais no interior dos estudos literários. Não é por desinteresse que não o referimos em nosso introito às práticas literárias, já que o autor não manifestava aí interesse numa poética. Ele pretendia, porém, considerar alguns aspectos da experiência que se dá no ambiente acadêmico da crítica e da edição de textos. Uma curiosa pergunta lançada por Jerome McGann contra a ideia barthesiana do texte como fonte única de prazer, como se a obra não pudesse causar uma particular jouissance, parecia ser performada ali por Gumbrecht. “Philologists murder to

dissect,” McGann concede a pergunta aos partidários do texte, “and where are the pleasures of the text for the editor and the bibliographer?” (MCGANN, 1985, p. 92). Se a coisa morta se

vinga, na dialética da vítima, do seu algoz apaixonado, a verdade é que pode haver um outro

pathos no processo. Aí reenvia o título do livro de 2002, Powers of Philology. Como o autor

define-o, poder se distancia da noção foucaultiana de “relação de poder” como regimento cognitivo, antes, poder parece-lhe implicar a possibilidade de ocupar ou bloquear espaços com o corpo (GUMBRECHT, 2002, p. 6). Mas no que isso diz respeito às práticas filológicas que mencionamos? Para Gumbrecht, tratava-se então de um desejo secreto de manter uma relação física e espacialmente mediada com os objetos culturais, na esteira de uma relação não- interpretativa. Se algo fica daquela sua materialidade aí, é o espaço performativo. A proposta, então, mais tarde associar-se-á à reflexão sobre a Presença (2004b) e sobre a Stimmung (2012a):

I am hoping for non-interpretive ways of dealing with cultural objects that would

Peirce, or the operation of observing in our theory, or the ‘parasite’ in the sense of Michel Serres, or the ‘supplement’ or ‘parergon’ in Derrida's sense, is the active factor indeed, without which the world could not observe itself. Observation has to operate unobserved to be able to cut up the world” (1995b, p. 45). Contudo, a aposição de expressões tão diversas indica antes uma recusa à lógica que a unidade duma noção de não-identidade.

escape the long shadow of the humanities as Geisteswissenschaften, that is, as “sciences of the spirit,” which dematerialize the objects to which they refer and make it impossible to thematize the different investments of the human body within different types of cultural experience. (2002, p. 8)

Já conhecemos a acusação. A novidade aqui é a possibilidade de produzir uma certa relativização do ambiente acadêmico sem empregar os argumentos gerais que a desconstrução produziu com relação aos problemas de semântica textual – e, assim, sem disputas em relação ao valor imputado ao sentido. No cerne dessa relativização não estaria a fantasmagoria da “sociedade como um todo” em seus interesses específicos (não poderia estar) nem a promoção da tabula rasa desses interesses em nome de um individualismo metodológico de curto fôlego:

I am definitely not advocating a situation in which each editor will strive to elaborate his or her “personal” version of the text to be edited. Rather, I imagine that different author roles, used as heuristic devices, produce different types of reading and different communities of readers. Within such communities of readers and in reference to identical author roles, it should be possible to distinguish between more or less adequate editions and interpretations. (GUMBRECHT, 2002, p. 36–37)

Formações menores, comunidades que partilham certas premissas e que divergem, a partir dessas premissas, das que adotam outras. Se isso é, fundamentalmente, o mesmo que já acontece no espaço acadêmico, apesar da disputa por posições de destaque em relação à determinação do valor, o que Gumbrecht quer enfatizar é a mais-valia da adoção de estilos

incomensuráveis na prática acadêmica. Não se trata de propor uma forma correta ou mais

verdadeira de ler, porque ler é só um momento particular de um processo mais amplo de engajamento à literatura. A noção normalmente advogada de multiplicidade semântica não chega para responder ao problema colocado porque, na forma de um postulado, apaga as relações específicas por que a diferença passa.77 Para ser concreta, ela teria antes de passar pelo seu oposto, de medir-se com aquilo que lhe é incomensurável – isto é, surgir como contraparte à determinação do sentido e não juntamente com o postulado de indeterminação. Não como se fosse dado: nem antecipado nem excluído. E isso Gumbrecht localiza nas relações mais fundamentais que estruturam o espaço acadêmico, da edição de textos e a investigação histórica ao output didático. Utopia de eruditos, dissemos (cf. supra I.1.3). A escolasticização assim proposta parece-nos, antes de tudo, permitir a emergência de diversas formas de perspectivar a experiência, de tematizar o não-idêntico de modo a favorecer o teor de verdade, o valor

77 Pode-se ler com uma mentalidade “poética,” atento à dimensão retórica da linguagem de uma obra; pode-se

partir da “gramática,” De Man diria “hermeneuticamente,” visando a dimensão extralinguística da obra. O antagonismo entre as duas formas revela o aspecto partilhado, a redução da literatura a práticas de leitura.

epistêmico que uma obra porta relativamente aos contextos de que participa.

Poderíamos articular aquela tentativa de Gumbrecht de recauchutar o conceito de verdade em relação à experiência literária (cf. supra I.2.3). Como esse teor de verdade não é uma espécie de informação relativa ao contexto histórico, embora De Man (cf. supra I.2) associe a questão à leitura gramatical (em lyotardês: a síntese de acesso) voltada para o referente, mas precisamente a participação histórica da obra na experiência humana, ele não é nem um dado nem um criado. Não é dado: não é a ilusão de que o significante textual reenvia a uma situação histórica ou objeto fora da linguagem. Nem é criado: não a ideia de que, porque o emprego de signos linguísticos só reenvia ao próprio sistema da linguagem, o significante pode ser intencionalmente mobilizado em qualquer significação. Nem representação, nem construção: o que chamamos de teor de verdade é o horizonte da ilusão mesma, que constitui algo de real per se. É a condição objetiva da participação do sujeito na cultura, a ilusão e também a necessidade de ilusão – não pode ser antecipada (porque assim não seria ilusória) nem excluída em razão de seu caráter contingente. A expressão com que De Man desmerece essa compreensão mistificada, sua expressão para esse erro cognitivo, é fenomenalismo e, noutra elaboração, ideologia (cf. supra I.1.4 et I.2.2). E, ainda noutra, estética. Mas na tradição estética o processo é simplesmente aparição – como em Hegel a aparição da Ideia (1993), ou também em Heidegger como desvelamento do Ser (2007).

No entanto, consintamos com a equação entre aparição e ilusão para compreender que o que aparece não é tão só o resultado de uma mistificação linguística mas a possibilidade de reconhecer as forças (o interesse, os preconceitos, o contexto, o ruído) aí implicadas. O saber

especulativo não precisa colocar-se como conhecimento último das coisas, mas aceitar que a

necessidade que lhe é intrínseca é radicalmente contingente, porque ele se reconhece, antes de tudo, como performativo. O conceito de verdade gumbrechtiano retomava essas forças na forma de uma necessidade e de uma compensação de desejos (Gumbrecht, 1989, passim). No fundo, porque há um motivo forte que leva as pessoas a se engajarem de tal ou tal maneira à literatura, porque aí a literatura justificaria o postulado aristotélico como a antecipação de outro estado de coisas, como a visão da possibilidade do existente ser, aqui e agora, simplesmente outro. Mas é mais do que isso. A passagem de uma noção constatativa dos estudos literários para uma performativa deve levar em consideração que o produto inclui em si o seu processo, aqui, de que o erro cognitivo que precipita a leitura no mundo (do desejo e da ilusão) determina a

verdade da experiência. Com o livro de 2002, Gumbrecht leva-nos a considerar esse momento

como vimos, propõem-no mesmo em relação à tarefa interpretativa abjurada por Gumbrecht. Podemos, então, pensar em práticas performativas não só em relação à historiografia, à ecdótica e ao ensino, que favoreçam a passagem daquele não-idêntico que constitui o cerne da experiência, como a viemos discutindo? A razão pela qual Gumbrecht descarta a interpretação é porque ela produz a ilusão de satisfazer certos critérios e, assim, de alcançar alguma coisa, quando o que alcança é infalivelmente questionável. Em grande medida, a interpretação se presta tão facilmente ao fechamento (mesmo quando a aposta previamente dada é na multiplicidade) por conta do seu formato proposicional, a mais simples predicação “isto se refere a...” participando da lógica da identificação e, sobretudo quando mal elaborada, da ocultação do que simplesmente poderia ser outra coisa. Precisamente porque se limita, e juntamente consigo a coisa que gostaria de interpretar, ela antecipa sua própria refutação, tão logo se vislumbre o que ela ocultou. Assim Gumbrecht descarta o problema da identificação do sentido como um problema de formação de zonas de consenso, procurando numa certa anterioridade dessas zonas aquilo que poderia ser, para não dizer “inconteste,” mais interessante do que variar em jogos de linguagem predeterminados. Sínteses de acesso e varredura de sentidos, interpretação e explicação de dispositivos formais não convencem. A pergunta, no fundo, é: a consciência de como nossas operações interpretativas ocorrem, isto é, a objetificação do modus operandi, não poderia abrir para outra coisa? Novamente, o autor oferecia já em 1989 uma resposta: “On the level of self-observation, theoretical thinking should therefore rather

identify, enhance, and foster desire for theory change than impose upon itself the restrictive economies of instrumentality and mimetic correspondence” (1994, p. 390), isto é, quer a

instrumentalização dos enunciados teóricos quer a premissa da correspondência dos enunciados de observação (cf. supra nota de rodapé no. 49) à realidade ofuscam as dimensões concretas da experiência, saturada de contingência, em direção às quais a autorreflexão deve orientar-se.

Essa última observação ecoa nas injunções de Gumbrecht ao “pensamento de risco.” A recomendação gumbrechtiana para uma prática de ensino voltada à concretude da experiência consiste em propor que os alunos sejam confrontados com objetos complexos, que desafiem a estruturação, conceitualização e interpretação. Fundamentalmente, não a transmissão de