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PARTE I: ESCOLHAS TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

3. Extraindo consequências metodológicas do arcabouço conceitual

Após esse diálogo com os aportes teóricos que embasam nossa pesquisa, dediquemo- nos agora a extrair consequências metodológicas das mesmas. É certo que nenhum dos autores cujos conceitos abordamos construíram uma metodologia capaz de nos informar exatamente que passos trilhar para conduzir uma pesquisa nos moldes de suas propostas analíticas. Entretanto, é possível retirar de suas premissas teóricas as bases fundamentais para construir um caminho metodológico que nos permita apreender fatos sociais tendo como ponto de partida as perspectivas dos indivíduos que os vivenciam. E como vimos, essa primazia no indivíduo é consenso entre as duas propostas abordadas. É consenso também a concepção de que a ação humana é contingente, ainda que sujeita a determinados constrangimentos sociais. Entretanto, o interesse de ambos está no modo como esses constrangimentos são vivenciados subjetivamente e como eles se refletem nas ações dos indivíduos.

3.1. Coleta e análise de dados com base em conceitos de Alfred Schütz

O interesse na perspectiva teórica de Alfred Schütz levou o também alemão Fritz Schütze a desenvolver, durante a década de 1970, um método de pesquisa que se tornaria altamente difundido internacionalmente. Trata-se da pesquisa biográfica, feita a partir da entrevista narrativa, um método de coleta e análise de dados que integra a pesquisa qualitativa. A intenção de Schütze era trazer para a pesquisa sociológica as compreensões das tipificações de senso comum, construídas com base no conhecimento cotidiano, reconstrução que se tornaria possível a partir da análise de narrativas, como defende o autor (WELLER e OTTE 2014).

A “entrevista narrativa autobiográfica" desenvolvida por Fritz Schütze (2013) parte do princípio de que a narração está mais propensa a reproduzir em detalhes as estruturas que orientam as ações dos indivíduos. Também denominada de “narrativa improvisada”, busca romper com a rigidez imposta pelas entrevistas estruturadas e gerar textos narrativos sobre as experiências vividas a fim de identificar as estruturas sociais que moldam essas experiências. Como defende Weller (2014), pesquisadora que vem buscando uma aproximação entre os aportes teóricos de Alfred Schütz e Fritz Schütze, o estudo de narrativas ajuda a esclarecer como determinadas ações são projetadas, executadas e retrospectivamente acessadas pelos

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indivíduos, de modo que se possa compreender os motivos que os levaram a determinadas ações.

De acordo com Santos (2014) outro pesquisador que também tem buscado a aproximação entre esses dois aportes teóricos, a abordagem de narrativas biográficas permite ainda a construção de tipologias de interpretação do mundo da vida, considerando o modo como os indivíduos manuseiam seu “estoque de conhecimento”, elemento importante no processo interpretativo cotidiano do sujeito.

Quanto ao procedimento de análise de narrativas, Schütze criou um método composto por alguns passos que muito nos auxiliou no processo de investigação. O passo inicial é a

análise formal do texto, no qual diferenciamos o conteúdo indexado (passagens narrativas) do

conteúdo não indexado (passagens explicativas ou argumentativas). Em seguida, procede-se uma descrição estrutural do conteúdo, no qual se identifica os círculos temáticos. O próximo passo é chamado de abstração analítica, onde se procede a análise do conhecimento do entrevistado (teorias desenvolvidas pelo indivíduo sobre sua vida e identidade, teorias explicativas para determinados acontecimentos ou escolhas). Em seguida, parte-se para a

comparação contrastiva, no qual se desvincula do caso individual, comparando-o com outras

entrevistas. Neste momento, compara-se temas recorrentes, situações concretas ou avaliações, realizando comparação mínima (entre casos e modos de ver semelhantes), bem como

comparação máxima (entre casos e modos de ver contrastantes). O último passo consiste na construção de um modelo teórico. Com base em procedimentos da teoria fundamentada

(“grounded theory”) busca-se elaborar modelos teóricos mais gerais acerca da trajetória biográfica de indivíduos oriundos de certos grupos ou contextos sociais.

Como referido anteriormente, parte do banco de dados que integra a pesquisa Jovens

Fora de Série compõe-se de um conjunto de entrevistas narrativas que também exploramos

em nossa pesquisa. Inspirados nesses procedimentos de análise propostos por Fritz Shütze elaboramos alguns passos para tratar os dados qualitativos à disposição.

O primeiro passo foi assistir novamente as 19 entrevistas, uma por uma. Após, realizar transcrições minuciosas (ou revisar algumas que já haviam sido feitas pela equipe de pesquisa). Em seguida, procedemos a leitura e identificação formal do conteúdo (separando, por exemplo, conteúdo indexado). Em sequência, procedemos uma primeira redução, ordenando a narrativa em círculos temáticos. Após, fizemos uma segunda redução, que chamei de “súmula temática”, uma tabela onde foram inseridos blocos contendo: informações de perfil, frases recorrentes, contexto familiar, trajetória de truncamento, motivos de truncamento explicitados, motivos de retorno, projetos explicitados, justificativas para os

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projetos, informações sobre trabalho, sociabilidade, lazer e circulação na cidade, informações sobre maternidade/paternidade, concepções sobre a escola e o ensino e desafios biográficos identificados (ver anexos). Depois partimos para a etapa de comparação contrastiva entre as narrativas.

Na parte final de nosso trabalho, selecionamos dois sujeitos dos três entrevistados com depoimentos aprofundados e procedemos “reconstruções biográficas de caso” que deram origem aos dois capítulos que fecham as análises. A “reconstrução biográfica”, é uma variação do método de análise Fritz Shütze, construída por Rosenthal (2014) na intenção de tornar tais os procedimentos ainda mais minuciosos. Primeiro procede-se a análise sequencial dos dados biográficos, no qual são analisadas informações que aparentemente se relacionam apenas de forma indireta à pesquisa (por exemplo, o número de irmãos, informações sobre o nascimento, a formação, dados familiares, mudanças de cidade, histórico de saúde, etc), sempre considerando a cronologia dos acontecimentos da história de vida do entrevistado. Em nossa pesquisa, obtivemos esses dados dos questionários e das entrevistas (com os próprios entrevistados e com terceiros: familiares, professores, empregadores). Esse primeiro passo nos permitiu, por exemplo, descobrir as alternativas com as quais os entrevistados podiam contar em determinados contextos.

Em seguida, procede-se a análise de texto e do campo temático, cujo objetivo é “encontrar regras relativas à gênese da narrativa biográfica no presente da entrevista” (ROSENTHAL, 2014, p. 236). Nessa fase, não interessa como se deu a vivência na época do ocorrido, mas analisar os motivos que levam o entrevistado, conscientemente ou não, a relatar os acontecimentos de determinada maneira e não de outra. Ou seja, que mecanismos determinam a escolha dos temas abordados e sua estruturação, os registros temporais e temáticos de cada período relatado. Nessa fase analisamos, por exemplo, porque determinados fatos foram narrados em detalhes enquanto outros apareceram como breves menções. Em seguida, formulamos hipóteses sobre o significado específico de cada sequência de texto.

Na próxima etapa de análise, denominada “reconstrução da vida vivenciada e análise sequencial”, voltamos à análise dos dados biográficos e os contrastamos com as declarações do entrevistado, momento em que pomos à prova nossas primeiras hipóteses. Em seguida, procedemos uma comparação entre vida vivenciada e vida narrada, a fim de oferecer possíveis explicações para as diferenças entre a perspectiva passada e a perspectiva atual e deixar claras as disparidades em relação à temporalidade e às relevâncias próprias à historia de vida vivenciada pela pessoa. Terminada a reconstrução de caso, retomamos a questão inicial da pesquisa e nos concentramos na explicação dos fenômenos sociais a ele

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relacionados. Isso torna possível, ao final da análise, construir tipos a partir desses casos específicos. Em nossa análise, construímos tipos de temporalidades, revelando seus possíveis intervenientes e implicações sobre a escolarização e sobre os projetos de vida.

3.2.Unindo o “quali” e o “quanti” na sociologia à escala individual

Em nossa pesquisa, também temos lançado mão de dados quantitativos, por compreendermos que essa abordagem de modo algum é incompatível com uma pesquisa que privilegie o indivíduo. Sabemos que um dos usos da metodologia quantitativa é fazer os indivíduos desapareçam, fazendo surgir no lugar desses indivíduos evaporados os determinantes sociais, os fatores que podem explicar a prática estudada. Entretanto, como defende Martuccelli (2012), o fato de colocar os indivíduos concretos entre parênteses (temporariamente) não torna o uso de dados quantitativos incompatível com a sociologia do indivíduo. É possível integrar a metodologia quantitativa em uma sociologia do indivíduo por três razões. A primeira delas é porque as estatísticas permitem apreender as coações que impedem os indivíduos de alcançar um desenvolvimento pessoal completo. A segunda, porque tais métodos podem tornar visíveis as margens de jogo disponíveis para indivíduos sujeitos a essas coações. Em terceiro, porque o questionário também permite estudar o relacionamento de pessoas com as práticas, ou seja, o sentido subjetivo dos comportamentos.

A opção por uma abordagem plurimetodológica faz parte de uma concepção recorrente atualmente no campo da sociologia. Como também defende Lalanda (1998), as técnicas de recolha de informações e as metodologias qualitativas ou quantitativas que as compõem não se opõem, antes se complementam. Tal pensamento tem levado a um consenso hoje sobre a importância e a eficácia das abordagens que combinam o quali e o quanti como estratégia para a compreensão de fenômenos sociais.

A utilização desse procedimento metodológico também está em acordo com as concepções do sociólogo Claude Dubar (1998), para quem a análise de trajetórias sociais exige devida articulação entre os aspectos objetivos e subjetivos do processo biográfico. O autor chama de trajetória objetiva a sequência das posições sociais ocupadas durante a vida, medida por categorias estatísticas e condensada numa sequência geral (ascendente, descendente, estável, entre outras). Já a trajetória subjetiva refere-se à “trajetória pessoal” de um indivíduo, cujo relato atualiza versões de si e do mundo. Por isso, apesar de distintas, as duas perspectivas precisam ser consideradas de um ponto de vista relacional, valorizando-se de igual modo tanto categorias institucionais, determinadas pelas posições objetivas escolares,

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profissionais, familiares) quanto as categorias de linguagem que os indivíduos utilizam para narrar suas histórias de vida em situações de entrevista.

Essa compreensão de que é necessário integrar métodos quantitativos e qualitativos para favorecer maior eficiência à investigação social é premissa que tem guiado a construção e ampliação do banco de dados da Pesquisa Jovens Fora de Série que integramos. O esforço por construir um diálogo entre dados quantitativos (alguns já trabalhados no mestrado, outros inéditos) gerados a partir do survey da pesquisa e os dados qualitativos (colhidos das narrativas feitas pelo grupo de pesquisa) deu origem aos capítulos das unidades que se seguem.

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PARTE II: QUEM SÃO OS “JOVENS FORA DE SÉRIE”? O QUE PENSAM DO